quarta-feira, 23 de dezembro de 2009

O Caixeiro

- Estou dentro de uma caixa. – disse-me certa vez um porco-da-índia. Era um daqueles pequenos que se costuma chamar porquinho. - Ora essa, meu caro, tens abrigo, conforto e comida, por que reclamas da vida? - Eu lo disse como quem dá o consolo como argumento.

Depois pensei naquilo e percebi, na lembrança da expressão daquele porquinho, o quão entediante era pra ele aquela vida; o próprio tempo que se declarava naqueles hábitos pueris. E não foi preciso um grande esforço para tocar na grande questão da vida moderna-contemporânea (já que só essa eu conhecia). Vivíamos todos dentro de uma caixa. Andando de dia entre uma caixa e outra, a procura de um espaço que nunca nos era oferecido. Veja lá! Acordava sete horas da manhã e já estava dentro de uma caixa; saia desta e entrava em outra que se locomovia e me levava ao pé de mais outra caixa, na qual entrava e onde permanecia por longas horas. Ao fim do dia, aquele processo se repetia. Eu que pensava que aqueles pequenos furos feitos na caixa eram suficientes para satisfazer a necessidade de oxigênio do pequeno animal. Não eram. Do oxigênio em si, creio eu que aqueles pequenos pulmões se fartavam, mas também os meus pulmões careciam de um sem-número de experiências (fossem elas olor de rosas ou dióxido de carbono) que eu não poderia negar ao pobrezinho, pois, já àquela altura, compreendia o problema do pequeno porco, que não se resumia ao que a biologia me havia ensinado alguns anos antes. Então abri a caixa e o coloquei fora dela. Ele correu pelo chão do meu quarto de lado a outro e, finalmente cansado, parou e adormeceu. Olhei com certo carinho comedido aquele pequeno adormecido e fixei-me bem em seu rosto. Ele tinha cara de Nelson. Talvez eu devesse chamá-lo Nelson. Mas sempre tive o costume de não dar nomes - talvez para não me apegar. Aliás, eu já tinha feito muito por ele lirvando-o daquela minúscula caixa de sapatos. Naquele momento me ocorreu que qualquer que fosse a liberdade experimentada por aquele roedor, ela não duraria muito; apenas o tempo d’ele perceber que se tratava de outra caixa; uma maior, porém não menos restringente.

Eu não era o mesmo no dia seguinte. Um tédio arrogante se impunha sobre todas as minhas observações. E era justamente a única coisa que eu podia fazer ali: observar. Apesar disso, a condição de observador não me concedia nenhum tipo de licença existencial. Minha presença era de fato. Apenas podia observar porque estava ali, porque ali eu era, visto que ser e estar fossem a mesma coisa. Comprei, então, um aquário. Quando chegava em casa, assistia à reprise da minha vida condensada na solidão daqueles animais, como num reality show zoomórfico. Enquanto o porquinho-da-índia sublimava seu tédio conhecendo lugares do quarto, no qual ele agora se sentia livre - talvez por se tratarem de lugares desconhecidos até então (embora eu nunca vá compreender que espécie de liberdade é essa que se baseia em presença num espaço desconhecido)-, 5 peixes nadavam e flutuavam diante dos meus olhos, em um conjunto de hábitos e movimentos que pareciam a mais nítida interpretação de uma peça teatral fora de época, tal era o nível de inexpressividade daqueles seres. Era pior que isso: 5 peixes de cor laranja se misturavam naquela cena e eu não conseguia identificá-los individualmente. Tenho dúvidas, ainda hoje, se eles mesmos conseguiam. Imaginava a confusão mental de cada um deles tentando achar a si próprio entre os outros e o reflexo no vidro.

Em alguns momentos acreditava estar, também eu, sendo observado naquela cadeia metafísica de observadores, que observavam um ao outro, e eram todos observados por um maior. Mas estes eram só os momentos em que eu também acreditava em Deus, que eram poucos e curtos. A maior parte do tempo eu preferia negar, ter dúvidas ou apenas não pensar naquilo. Como eu, pensava que, também aqueles animais, não deviam pensar. Embora muitas vezes eu tenha criado imagens de um grande peixe laranja, criador de todos os mares e de todas as algas, ou d’um gigantesco porco-da-índia que se alimentava de florestas inteiras com a facilidade que abocanhasse pequenos galinhos de mato; e vejo agora, que está escrito, que dessa forma não poderiam ser deuses. Seriam monstros. Delírios agigantados. Mas como os monstros, também os deuses alternam suas façanhas entre criar e destruir, erguer e desmontar. Aliás, acho que somos todos assim; criaturas ou entidades, animais ou deuses, que sejam; nunca um só prédio se ergueu sem que ao menos uma pedra fosse partida.

Pobres animais. Eu os tinha - assim se diz ainda hoje dos animais a que se alimenta e se oferece abrigo. E, a menos que eles também domesticassem pequenas pulgas ou enormes micróbios que habitassem seus corpos, eles não tinham nada. Pensava naquilo e exceto, é claro, pelo fato d’eu ter que acordar todas as manhãs e ir para o trabalho, considerava-me mais sortudo que aquelas criaturas. Bobagem. O que é a sorte? A sorte é a qualidade atribuída ao sorteado, quando este recebe a dádiva da premiação de um sorteio. Mas ali não houve sorteio. Éramos simplesmente 7 criaturas diferentes; um homem, um porco da índia e 5 peixes, mesmo que entre os 5 peixes a diferença fosse menos significativa que a semelhança. Quando aquele meu momento de convívio com os animaizinhos a cada dia terminava, eu, irrefletidamente, voltava para o jogo das caixas. E, para não perder o costume, imaginava quatro mãos gigantes movimentando aquelas caixinhas, que eram minha casa, meu carro e meu escritório, enquanto poderosas vozes sem dono cantavam em uma afinação angelical: “escravos de jó, jogavam caxangá...”Eis, então, a grande coincidência que se revelará nesta história: o tal Zé Pereira trabalhava num escritório bem ao lado do meu. Embora isso seja tão irrelevante quanto desnecessário à história, aquela vizinhança não me era, particularmente, agradável. Esse é o preço que se paga por não se querer pagar preço maior em uma sala de escritório. Talvez eu preferisse caixas de fósforos, se fosse possível conter-me nelas. Mal me continha - com muito esforço - naquela minúscula sala. O que eu podia fazer? Como me livrar daquela prisão tridimensional que eram as caixas? Não bastaria sair de uma pequena para uma maior como acontecera ao ingênuo porco-da-índia.

Eu era a figura domesticada de mim mesmo, dentro do espaço que ninguém criou, embora seja mais fácil atribuir autoria às caixas. Por muitas vezes, cheguei mesmo a acreditar que aquelas caixas eram produto de um desenvolvimento natural do espaço, como eram as cavernas e os oceanos. Mas logo que batia de frente com alguma parede, cuja absoluta arbitrariedade da existência a escondia de meus olhos ingênuos, percebia que se tratava de um instrumento de opressão. Um instrumento de opressão controlado, visto que as portas forneciam passagem e as janelas alguma ilusão de liberdade, pelo menos à vista.

Cheguei em casa mais um dia e, como todos os dias, observava aqueles pequenos quase com a imparcialidade de um Deus. A forma como aqueles peixes estavam imersos numa caixa com água fez-me pensar que, também os humanos, se fossem vistos de fora, por extraterrestres, pareceriam estar imersos em alguma coisa. Respeitando, é claro, a diferença de densidade entre o ar e água, estávamos em situações muito parecidas. Assim também as paredes da caixa deles, como muitas vezes as das nossas, eram invisíveis ao pé de sua ignorância batizada.

Eu os alimentava diversas vezes. Queria ver a expressão de prazer do animal que sacia a sua fome. Era inútil. Eles não tinham expressão. Comiam o vigésimo quinto grão da ração exatamente da mesma forma que comiam o primeiro, e o quadragésimo. Minha mãe costumava dizer, quando eu era pequeno, que se você não parasse de alimentá-los eles comeriam até morrer. Eu ignorava a profecia e do alto de uma visão deveras displicente, pensava: Talvez o significado da vida de um peixe estivesse na quantidade de comida que ele ingerisse; eles estariam, assim, sempre buscando atingir o tal ponto; o nirvana; a chamada overdose. Quando o destino se completava, eles emergiam desfalecidos e seus corpos boiando com a barriga estufada eram a prova cabal da completude de sua existência enquanto peixes. Era uma teoria pouco crítica e um tanto romântica, mas eles não pareciam se incomodar com as enormes quantidades de comida que eu jogava dentro daquele aquário todos os dias. Aos poucos, um a um, aqueles foram morrendo. Ao final da terceira semana restavam apenas dois. E na semana seguinte foi-se o penúltimo. Não tinha importância, aquele último peixinho representava todos os outros. E de fato, eu sempre pensei neles como uma unidade. Como é a colméia: um grande organismo ao redor do qual orbitam todas aquelas partes sem individualidade que são as abelhas.

Na semana seguinte, eu já não me contentava mais com apenas aqueles dois: o peixe e o porco. Comprei uma pequena tartaruga, que o vendedor da loja me vendeu sob a alcunha de jabuti, explicando-me que tartaruga era nome usado de maneira mais correta para aquelas marinhas, enquanto estes eram répteis terrestres. Eu aceitei de pronto, mas ainda assim prefiro chamar “tartaruga” a esses pacientes jabutis. Vim depois saber que cágado era, também, nome dado àquela espécie. Talvez o fato d’aqueles animais possuírem tantas nomeações fosse a razão pela qual eu não dava nome aos meus. Eu preferia que a existência daqueles bichos fosse a mais discreta possível. Pois, não à toa, os animais que eu conhecia que tinham nomes próprios, eram demasiadamente arrogantes, como o era o próprio Zé Pereira, que fazia questão de levantar a cabeça e desviar o olhar toda vez que cruzava comigo no corredor do edifício onde ficavam nossos escritórios.

Fiquei muito decepcionado ao entender que tipo de criatura era aquela tartaruga. Passaram-se aproximadamente duas horas até a primeira mudança de posição daquele jabuti desde que eu o havia colocado no chão de meu quarto. Como os peixes (que agora era apenas um) ela não tinha qualquer expressão. Mas o seu espetáculo era ainda mais monótono. Talvez porque a sua caixa fosse ainda mais restrita. Ao primeiro contato físico que tive com a tartaruga, ela se retraiu inteira para dentro do casco. E apesar da forma irregular deste, aquilo não era senão uma caixa. Mas uma caixa sobre a qual eu não tinha o controle. O jabuti, em muitos aspectos, parecia ser dono de sua própria caixa. E aquilo poderia ser um testemunho de liberdade (do animal que podia se esconder da minha observação predatória em qualquer tempo), a não ser pelo fato d’ele estar preso àquela caixa desde o seu nascimento até sua morte. Verdade essa, muito comum aos apreciadores da sopa de tartaruga, que é servida nos restaurantes mais refinados dentro do próprio casco da dita cuja. Aquele tipo de caixa era, dentro de cada contexto, berço, abrigo, prisão, caixão e prato. Embora eu imaginasse ser muito confortável ali dentro.

Acho que não preciso mencionar que o meu quarto, àquela altura, não cheirava tão bem. Éramos quatro animais e três caixas, já que o porco-da-índia dividia o espaço comigo, agora, sem paredes entre nossos corpos. O cheiro das outras 2 se espalhava sem acanhamento pela grande caixa que era o meu quarto. Mas entendia que esse era o preço a se pagar pelo grande circo selvagem que se tornara meu espaço doméstico. Como eu também percebia que aquela minha obsessão pela domesticação estava em vias de se revelar patológica; e não iria parar por ali. Não tardou nem uma semana e lá estava eu, entrando naquele quarto com uma gaiola e dois periquitos. Era um casal deles. Aqueles animais eram vendidos apenas em casais; pelo menos assim me disseram na loja onde os comprei. Talvez fosse uma compensação pela liberdade que lhes fora tomada. Afinal, estas aves, na natureza, com o alcance e o despojo que permite o vôo, eram animais de largas áreas; áreas percorridas por elas de norte a sul, a procura de alimento e descanso. Ora, alimento elas tinham aqui, todos os dias, na mesma bat hora. Já a liberdade, o vendedor (e, porque não dizer, eu também?) pensou que pudesse substituir pela companhia do sexo oposto. Como acontece perceptivelmente com nós humanos, que, não raras vezes, trocamos certa liberdade da vida solitária pela clausura do matrimônio constituído. Mas, e devo considerar, se aquele pássaro pudesse escolher, tenho cá minhas dúvidas se ele não preteriria a vida estável do casamento engaiolado por obrigação, à livre concorrência da vida selvagem. Talvez tenha sido essa escolha entre os homens que tenha anunciado uma suposta vitória do capitalismo no pós-Guerra Fria, quando o fracasso da experiência soviética pareceu sufocar a convicção idealista de muitos dos socialistas mais otimistas. Embora seja uma analogia muito sem medida, onde eu me incorra do risco de desagradar, por um lado, a todos os outros socialistas. Mesmo afirmando em seqüência que a minha escolha pessoal seria aquela do periquito que prefere o cativeiro como certeza à incerta e relativa liberdade do capital e do homem descomprometido, e, nesse caso, eu estaria escolhendo como inimigos os defensores dos direitos dos animais, já que, para eles, nenhuma justificativa para manter um pobre animal em cativeiro seria tolerável. Estes, entretanto, já devem ter interrompido essa leitura na parte em que eu explicava a situação da morte de meus queridos peixinhos. Que assim seja! Não me arrependo. Aqueles passarinhos cantaram para mim como nenhum outro animal naquele quarto. Em troca, eu os deixei experimentar a espaçosa clausura do meu quarto, a minha caixa. Com as janelas devidamente fechadas, vi aqueles animaizinhos alçarem curtos vôos, rodeando todo aquele grande-pequeno espaço entre aquelas paredes que, como a epiderme de um corpo-cápsula, eram o lado de fora do dentro e o lado de dentro do fora. Recuei logo depois, achando melhor levá-los de volta à gaiola, quando, depois de um descuido no pouso, o pequeno porco-da-índia ameaçou uma mortal investida sobre um dos pequeninos pássaros. O porco-da-índia talvez quisesse dizer que aquele chão era agora o seu território, já que a tartaruga se mantinha acuada em um canto dentro de seu próprio casco e eu, o verdadeiro dono daquele território, não tinha como fazer aquele roedor entender tal hierarquia, pelo menos não com palavras. Embora, com palavras, aquele mesmo porco tenha iniciado toda essa narrativa. Pois mesmo que aquele porco me entendesse em argumento, ele jamais aceitaria o parâmetro na ausência do uso da força bruta. E, ora lá, era um pequeno animal inofensivo, não havia necessidade para tanto. Deixei assim aquele indiano orgulhoso, pregado sobre a altivez em suas quatro patas, achando que era, de fato, o dono do pedaço, que com pedaços eu alimentava todos os dias.

Eram belíssimos animais aqueles periquitos. Diferentemente da rusticidade que marcava o porco-da-índia e a tartaruga, e da indiferença determinante que melhor representava o peixe, esses dois eram, além de belos, deliciosamente exuberantes. Exibiam-se simplesmente. Era a condição de sua existência particular. As asas coloridas se redimiam de sua inutilidade naquela cela. Um deles era azul e branco, com pequenas manchas negras ao longo do corpo. O outro era amarelo e verde, e ligeiramente maior que o primeiro. Eu não sabia distinguir entre macho e fêmea, e cheguei a me questionar se o vendedor não me teria vendido, por falta da heterogenia na disponibilidade, dois machos ou duas fêmeas. Mas logo larguei de mão o questionamento. Não faria, mesmo, diferença alguma pra mim. Por alguns dias, cheguei a esquecer que existiam outros animais naquele recinto, embora o cheiro das fezes não me deixasse esquecer por completo. Eles se mexiam com graça e me encantaram por quatro ou cinco noites. Mas toda aquela pompa, postura, soberania, foi-se revelando como excessiva arrogância. Talvez aqueles pássaros se achassem melhores que os outros animais. Talvez eu achasse que eles achavam isso. O fato é que em algum momento senti na expressão daqueles animais essa declarada e excessiva arrogância. Logo enjoei deles; como antes dos outros. Não que eu não nutrisse nenhuma espécie de carinho por todos, mas não superestimava aquelas presenças, como fossem eles parte de alguma verdade que me pudesse preencher, ou um sentido maior para aquele conjunto de formas sem propósito que era a minha vida. Não era isso. Mas, no final das contas, eram apenas animais que eu domesticava...

Aquilo não estava certo. Aquele uso de meu espaço privado não estava a me libertar de forma alguma. Ao contrário, eu estava cada vez mais preso a cada uma daquelas caixas; a gaiola, o aquário... O dicionário dizia dela - a caixa - entre outras coisas: “Qualquer objeto ou peça que resguarda ou contém outra.” Falava também de uma espécie de papagaio feito de papel, mas no largo daquelas muitas definições que dava, em maior parte referia-se a procedimentos financeiros; referenciava em quantidade a importância que nessa vida se dá ao dinheiro. Ora essa, eu já devia saber que é mesmo o dinheiro a linguagem das caixas. Compram-se e vendem-se, pessoas ou caixas. As segundas dão conta da guarda dos dois (dinheiro e pessoas), as primeiras são responsáveis pela manipulação funcional dessas caixas; abrir, fechar, mover, manter buracos na lateral para evitar o sufocamento... Já, aos papagaios de papel, não se necessitava o engaiolamento. Talvez fosse uma forma de liberdade, o papel. As palavras pareciam contidas ali, naquele dicionário, naquele papel. Mas não estavam. Não se podia dizer daquilo exatamente uma caixa. Logicamente, a sua condição física de palavra ficava restrita àquela tinta impressa, mas a palavra existia independentemente daquela impressão. Por outro lado, a caixa daquelas palavras éramos nós, os homens. Elas diziam todas de nós; de nossos feitos; de nossos conhecimentos; de nossa estupidez. Ainda com o dicionário à mão descobri que “canxangá” era nome dado a uma espécie de crustáceo, vulgarmente conhecido como siri. - Piada! – logo pensei. A vulgaridade ali, pra mim, residia naquele tipo de linguagem que dava a um animal tão ordinário uma distinção tão formal. Logo percebi a espécie de recalque que aquele livro submetia às palavras. Não era o papel em si, mas a institucionalização daquele livro fazia dele não menos que uma pequena caixa de palavras. Eu, então, me corrigi. Era o dicionário, também uma caixa. Estava decidido. Todos, ali, presos a uma classificação. Éramos animais, palavras ou caixas. Estávamos todos ligados de forma a dificultar o reconhecimento de qual desses éramos. Animais, palavras ou caixas são todos palavras, ditas ou escritas por animais, presos como as próprias palavras em caixas, feitas por animais - palavra.

Tudo isso depois se mostrou quase como profecia. Aqueles animaizinhos morreram todos, cada um ao seu tempo. As suas caixas ficaram esquecidas dentro de outras caixas. Das palavras que restaram, falam deles apenas com uma suave nostalgia, que não se chega a fundar em saudade. As grandes caixas permanecem contendo pequenas pessoas, e mesmo as que se acham grandes. Como o Zé Pereira, que não é grande, e muito menos “grande pessoa”. Mas apesar das minhas convicções, de não dar nomes aos meus animais, tenho ainda hoje uma pequena ressalva. Penso com certo arrependimento, se eu não teria devido chamar aquele pequeno porquinho-da-índia de Nelson. Ele tinha uma cara de Nelson...

quinta-feira, 17 de dezembro de 2009

Pra que ser perfeito?

A Pergunta parece uma piada, mas eu levo a sério.

Eu quero ser Perfeito.

(Pausa para bebida. O que beber? Qual a bebida tem esse nivel de existencialismo?

Uísque.

Será que eu tenho copo de Uísque em casa? não. o mais próximo é uma xícara. Tem uma barata morta dentro.)

O que é a perfeição?

Besteira essa discussão. Eu sei que não vou ser pefeito. Mas eu quero ser perfeito.

Por onde começar?

(Duas pedras de gelo e uma balançada. um gole longo e seco seguido de uma longa exalada de ar)

Justo. A primeira direção é da justiça.

Independente de ser bom ou ruim, ser justo é o primeiro passo.

O justo não precisa ser bom, mas não pode ser ruim.

O que leva a segunda direção:

(O gole é mais longo. o ar é exalado em menor volume)

- Bondade.

Se você não sabe o que é mal e o que é bom, tudo bem.

Honestidade, você pode até questionar o que é, mas acho que é simplesmente não enganar ninguém propositalmente.

Quem não sabe o que é honestidade, sabe o que é enganação.

Sou justo, sou bom, sou honesto.

E trabalhador.

Cumpridor dos horários e das responsabilidades relacionados á minha fonte primordial de renda.

Raramente fico o doente, pelo menos não o doente o bastante para não trabalhar.

As vezes falho, mas nunca fujo.

Sou leal.

Faço questão de corresponder as expectativas por mim prometidas. Ou pelo menos procura-las ardentemente.

Talves existam perfeições melhores que as minhas. Com certeza tem gente mais perfeita do que eu.

Mas pra que tudo isso?

Da mesma forma me tratam como merda.

Posso até ser perfeito, mas sou um merda.

(Mas uma xícara. "E a barata?". barata?)

Eu nunca tive a preferência pra nada. Eu sou aquele que não atraplha nem ajuda. O perfeito. O merda.

Esse Uísque me deu vontade cagar.

quarta-feira, 9 de dezembro de 2009

...que tudo que a antena captá, meu coração captura...

Semana passada, pus meu televisor no conserto. Isso porque sou dessas criaturas antiquadas que ainda crêem no conserto de certas coisas, embora minha crença não se estenda para muito além dos aparelhos eletrônicos. De qualquer modo, compreendo perfeitamente o protesto que sempre me chega aos ouvidos nessas horas, de que sai “muito mais em conta” comprar logo uma nova. Mas penso isto: - que diabos de ser humano eu seria se não desse à velha tevê uma segunda chance?

Quando cheguei à loja, percebi logo que a clientela do lugar, se sua idade fôsse posta em média, cercaria a casa dos 65 – isso contando com o descenso significativo dos meus quarenta e poucos já contabilizados na média. E porque, então, deveria ser diferente? As novas gerações sempre tão acostumadas aos descartáveis, jamais entenderiam o ofício dêsses trabalhadores manuais, que se já não vislumbram nova profissão, certamente engolem sequiosos a expectativa do desemprego - senão em alguns meses, em poucos anos, com algum otimismo. O caso é êsse: disse-me o rapaz que ficaria pronta em dez ou doze dias. “Uma semana ou duas” – acrescentou como se quisesse me certificar de que “dez ou doze” não tem lá a matemática precisa que computam os da velha guarda que por ali costumam passar. Em tôdo caso, saí satisfeito, já que temia ouvir de sua boca, como a sentença inexpugnável de um médico da família quando diz: “não tem mais jeito!” Ora lá, que são dez ou doze dias - e ainda que sejam catorze, quinze ou dezesseis - quando se tem a solução ao alcance? Quisera eu que essa irretorquível lógica tivesse alguma mínima inteligibilidade para os jovens de hoje.

Passaram-se quatro e cinco dias; seis e sete; e esse oitavo no qual me encontro agora. E se dei toda essa volta para arribar em novo problema, foi porque não poderia ter passado sem o transcurso que se deu, já que faço imperativo que vejam a pessoa esta que sou, para que assim, também, minhas palavras se possam ler com contexto e vizinhança. Fiz-me o prato de acôrdo com a comedela de que dispunha. Nada, porém, de exageros. Dos exageros, basta-me esta abaciada pança que me vale - ainda que eu debique feito passarinho – a fama de esgalamido entre os colegas de trabalho e, também, toda a gente que se põe a julgar meus hábitos alimentares apenas pelo que consegue ver (embora meus 98 quilos não sejam, assim, coisa menor à vista). Mas que diabos! Isso nada tem a ver com a história... Jantava serenamente à mesa depois da senda praticada repetidamente durante o dia, quando inconsulta solidão invadiu-me o ânimo. Soube logo do que se tratava. Jantava todos os dias à frente do televisor e, naquele momento, passava sem essa. Logicamente, não foi uma súbita saudade. Havia sentido sua falta durante a semana, especialmente nas horas de janta, quando me punha sozinho com meus pensamentos, já que o comer me é automático e dispensa a maior parte do intelecto de que gozo. Mas um náufrago qualquer saberá reconhecer que a solidão do oitavo dia é sempre mais inflamada que a do sétimo. E chego aqui porque tenho isto a dizer:

Não raro chega-me aos ouvidos calorosas reclamações ao teor conteudístico das programações televisivas e, geralmente, abstenho-me do questionamento. Penso: “não se aprende mesmo nada com a tevê”. E, no entanto, percebo agora que nada do que faço ou procuro fazer diante do aparelho que tenho em casa está, de fato, relacionado a qualquer forma de aprendizado. Ora, a constância do ruído; as ataviadas figuras dos programas que se repetem; a luz intermitente e as alterações luminosas dadas com as trocas de quadro e, sobretudo, a excessiva leviandade de nossa relação com o suposto conteúdo da praça são, em propósito, o argumento definitivo para que afirmemos dela –a televisão – não um difusor de conteúdos, mas a companhia mundana a qual escolhemos por arbítrio circunstancial, porque nem sempre verdadeira é a máxima do antes só que mal acompanhado. A solidão, pois, que eu ali sentia era aquela mesma proporcionada pela ausência do amigo diário, que viajou e não volta até a próxima semana. E se convém a chancela dessa metáfora, logo, não se deve ter em parâmetros análogos o juízo que dela, a televisão, se faz? Que tipo de criatura avessa é capaz de mal julgar um amigo sob o epíteto de que não tem conteúdo? Aliás, muito comum é o determinado de que as mesmas pessoas que criticam com suma eficiência o conteúdo dos programas que lá passam pela televisão, sejam aquelas que ostentam os mais néscios partidários.

Lembro-me, agora, de uma canção certa feita me vinda aos ouvidos, que culpava a televisão pelo excessivo emburrecimento daquele que a cantava. Mas burro êsse de bom senso, que é capaz de reconhecer-se na completa ignorância; ou, então, tão burro é que não podemos tomar-lhe as palavras ao pé da letra e, nesse caso, deve mesmo é sê-lo de intelecto acima da média – deste modo também versado em paradoxos. Tudo o que sei é isto: que emburrecer é coisa pr’aqueles que têm propensão ao trato e, de qualquer modo, não acredito que venha a ser esta a função do amigo presente, mas outra: a de acalmar com a ternura de sua mais severa inaptidão e, no pior dos possíveis quadros, fazer tornar-nos mais tolerantes a essa.

(Quatro dias depois...)

Liguei para a loja e o rapaz respondeu-me que eu teria que esperar por mais dois ou três dias. Indignado e ignorando as ressalvas em que se teve marcado aquele “uma semana ou duas”, impetrei-o sem dó: “Você não tinha dito ‘dez ou doze’? Não quero saber! Ou essa televisão fica pronta hoje ou eu processo essa bodega por quebra de contrato oral!” – acho que nem preciso dizer, mas essa aprendi foi com a tevê.

quinta-feira, 26 de novembro de 2009

Trópico de Capricórnio

Cheguei cedo demais. Vi-me obrigado a sentar num banco e esperar naquela sumptuosa praça onde a magnificência do tamanho e o apelo dos ornamentos pedia que o bairro à volta fosse um nobre baixo. E era. Não importa, que fosse paris, seria ainda assim uma praça fedorenta. Resta esse toque de molesto às praças, a saber, o expedito irrevogável de que as praças fedem. Como haveria de ser diferente? Veja, trata-se de um lugar público. Mas não como um museu ou biblioteca, em cujos portões elevados e olhos vigilantes dos cidadãos mais rigorosos faz-se exigência e coibição à intrusão perniciosa de um indigente que se faça passar por intelectual mendigo enquanto arruma seu colchão em papelão grosseiro em frente a uma delicada obra de arte ou num corredor onde morassem grandes clássicos da literatura medieval, por exemplo. Não, as praças são públicas porque seus bancos dispõe-se de forma indulta e acolhedora tanto aos bem tratados traseiros da gente que ali a volta habita uma impecável residência, quanto aos lençóis sujos e mal cheirosos daqueles que, por falta da cara espécie, fazem dali por tantas noites abrigo. E, não obstante àquela hora eu não pudesse ver os tais desvalidos que a noite ali moravam (dormiam, urinavam, comiam, transavam e, talvez, até defecassem) eu podia sentir o cheiro, como numa nota derradeira sobre o contraste localizado entre a imagem que eu via e o odor que ela encerrava. Isso porque a manhã já trazia os seus raios mais violentos de sol e a um que ali se largasse indefeso e desprotegido, o amargo calor trataria de castigar com severa insistência, fazendo-me crer que os bem aventurados inquilinos daquele espaço a céu aberto, esperariam pela noite a cair para retornar ao leito do qual eram, em todo caso, a quinta-essência, qual seja aquela de que se destila um perfume.

Mas era uma praça, sem dúvida, majestosa. Majestosa era o adjetivo adequado àquele arranjo de paisagem e arquitetura. À frente do banco sobre o qual eu me debruçava em um sóbrio e degenerado Henri Miller, erguia-se um elegante chafariz. E tal qual a acre personalidade daquele que eu tinha em mãos e me fazia lendo, pus-me uma questão que há um momento me sobreveio como o palpitar agudo de um nojo. E tanto menos, naquele momento, o mal cheiro seria o precipitador de meu vômito, caso viesse mesmo a vomitar. Não vomitei, mas explico aqui o porque de tal insinuação. Vá lá que os chafarizes tenham sua beleza tangenciada pela imponência e conjunto que envolvem, o caso é que bem mais provável que isso era o fato de que desde muito tempo os nobres que os construíam haviam esquecido de explicar às novas gerações a serventia e a moral daqueles ataviados cuspidores de água. Mas, ainda que a nova geração - essa que muitas vezes recorria ao apelo às preocupações com os recursos naturais do "planeta" - jamais viesse a entender o orgulho e a necessidade daqueles fidalgos chafarizes, nenhuma retaliação se fazia aparente e nem nunca se fez. É provável que aos olhos dos mais exigentes ativistas, aquele desperdício passasse batido, enquanto, quem sabe, um notável ecologista passeasse desalarmado com seu cachorro Astolfo por entre os jardins refrescantes daquela praça.

Eis a tradição em que se encosta esse pretensioso ornamento, o chafariz: Atávico como um obsoleto instrumento, que agora serve apenas ao uso saudosista e epigráfico dos descedentes de seu antigo senhor, o chafariz faz reverência a dinastia do rei; figura no centro do espaço, como em menção a importância do símbolo que encerra e expõe uma contradição muito patente aos de espírito mais crítico e de coerência mais conservada - que apesar de toda pompa da qual a classe burguesa ainda se cerca, os reis já deviam há muito terem deixado de existir. Ora lá, que as coroas se tenham transformado em cartolas, e os dourados mantos em ternos sofisticados, e talvez o fato de que nunca haveremos de expurgar totalmente o problema das classes, mas nada disso redime aquela cena anacrônica e patética em que se vê o homem sentado em poltrona de ouro maciço ostentanto sobre a caixola o galardão injustificado ornado em ouro e nada menos que alguns diamantes.

E, no entanto, temos notícia de que na Inglaterra, pioneira e propulsora da primeira e mais impactante revolução industrial, ainda se ostenta com vasta arrogância a onerosa superfluidade de uma família real. Sei até que por um breve período, à força de umas quantas poderosas armas teve-se lá o governo republicano daquele tal Oliver Cromwell, mas ao rigor dessa atual em que há uma velha senhora que sai às ruas aclamada e é chamada “rainha” apenas por haver nascido, faço-me obrigado a acreditar que esses ingleses são mesmo uns idiotas. E que me perdoem os Beatles e os Rolling Stones, mas não posso tomar de todo aquele que faz corte a um tal soberano, que não seja esse um completo idiota.

Mas isso não vem ao caso. E até entendo que hajam por aquelas bandas chafarizes desse porte ou mais, afinal, a história tem lá sua ordem de dominados e dominadores, mas ainda repugno certos arcaísmos como aquele que, no centro da praça, fazia menção a um gosto de classe de pelo menos um século passado.

Ao lado da agua cristalina e de virtuosas formas daquela fonte, pessoas sem alguma expressão tragavam um ócio empoeirado junto com aquele cheiro degradante da deliberada praça; que carregava, ainda, no nome, um santo a mais pra sua inegável nobre linhagem. Se me fosse permitido comparar, eu diria que sentar-se num banco naquele lugar e observar os gestos e as frases, dos homens e das fontes - que ali se igualavam -, era como mirar a estampa do mérito de uma inteira história de dominação ardil e à força na face dos imbecis bisnetos dessa gente sem alma que levantara castelos; bisnetos esses que, agora, passados os tempos da guerra em que tiveram alçadas suas riquezas, passeavam pela alameda da praça com seu discurso pastoso e pretensamente humanista em que “liberdade” e “democracia” se distanciavam da prática usurária de seus articuladores e resumiam-se hipocritamente em nomes como “bem comum” e “justiça”. Eu teria cuspido nessa gente se minha saliva já não tivesse secado com o sol quente e a poeira do lugar. Como não cuspi, bastou-me o silêncio para constatar que foi só isso que fiz: pensar. E isso apenas. Bastaria dizer que o ócio que nessas praças nos invade é como a morte que chega com o inverno, acompanhada da eterna melancolia do invalido ou da desgostosa meditação do vagabundo. E No fim das contas, eu mesmo com o livro aberto nada li que não fosse a vida em si mesma, e com a mente desenganda que estava quase perdi a hora. A entrevista era às 2 e o local a 10 minutos dali.

quarta-feira, 11 de novembro de 2009

Vinho tinto e vela...com classe.

Faltou luz. – Que merda! – Eu reclamo silenciosamente. Minhas noites já são tão monótonas mesmo com todo aparato tecnológico de que disponho pra me entreter.
Tecnologia de merda! Nada funciona sem energia elétrica.

Pior ainda, a geladeira não funciona sem energia elétrica. Todo aquele lixo de comida congelada que eu comprei ontem vai pro caralho. Foda-se também! Não há lá grande diferença entre essa porcaria estragando no meu estomago ou na geladeira.

Puxo uma garrafa de vinho que já começa a suar na estante inferior da porta do refrigerador. “Carménère” – diz o rótulo. “Uva sofisticada” – eu penso. Dará toque refinado ao bolo fecal que já já vai se embolar no meu intestino – isso se não descer tudo numa rajada. As sobras da janta também me encaram lá do fundo da prateleira de cima, ao centro. Arranco-as do frescor viscoso que a geladeira ainda conserva - Janto de novo e que se foda! Coloco o prato na mesa e fecho a geladeira. Tudo isso com apenas uma das mãos já que a outra se banha na cera endurecida de uma vela que dá visão ao pobre cego entediado que sou.

Debaixo da cera a pele queimada, agora, maneja o garfo que vai ao encontro do macarrão – Penne ao alho e óleo – e volta e meia espeta um engordurado filé de frango à milanesa que vai direto à boca para ser partido pelos incisivos do porco preguiçoso que dispensou à refeição uma faca. Hahauhaha! Gargalho de boca aberta, deixando escapar uma ou outra fagulha da massa. Recupero o fôlego com um gole generoso no vinho que enchia até a borda uma rechonchuda caneca. Rio de mim mesmo, iluminado ao canto pela vela à metade que me queimara a mão de melhor uso, a mão direita. Rio especialmente pela ironia da coisa. A janta que tenho em mãos é resquício de uma primeira refeição que fiz logo no começo da noite. A fome, em todo caso, é protocolar e se lança desavergonhadamente sob a justificativa rasteira de que pouco importa o pecado da gula se a comida iria estragar de qualquer modo. No entanto, é essa refeição porca e grosseira que me tenta arrancar do tédio imperativo dessa noite iluminada por uma só vela.

A vela me olha. Acostumada aos romances de uma casta mais polida que a minha, a chama delicada que se inflama no pavil já carbonizado deve me ver como um glutão. A imagem me incomoda. Molho polegar e indicador na boca suja de comida e os pressiono contra a chama em retaliação ao mal julgamento que fizera de mim. A vela, obviamente, se apaga. A mão larga o garfo no prato e, tateando no escuro, segue instintivamente até a caneca. Um gole daquelas. “Carménère” – relembro. Uva sofisticada. Realça o amargo do alho que a essa altura já me empesteia o hálito.

Hahauhahasg asgha! Me engasgo no meio da gargalhada e uma corredeira de vinho tinto me escorre pelas narinas. Resolvo acender a vela novamente pra ver o estrago. Manchou a cueca. A única peça que ainda me cobria a pele – menos mal. A chama da vela se infla. Vadia orgulhosa! Me olha, dessa vez com despeito, e pisca como se tentasse me diminuir na frente dos meus pensamentos. Mal sabe ela que escrevo tudo em minha cabeça enquanto ela lumeia e cisca conforme as correntes de ar que entram pela janela. E mais, já tenho um final prontinho pra ela.

Esvazio a caneca num gole só. Levo o prato, o garfo e os restos até a pia. A vela acompanha. Carrego-a na mão até o chão do chuveiro. Firmo-a lá com a cera que escorre. E o som chiado da chama se apagando com a violência torrencial de uma boa e certeira mijada me soa como uma canção de ninar.

Essa noite durmo como criança - disso tenho certeza.

sábado, 17 de outubro de 2009

O Grande Gatsby

Saiu extenuado do trabalho. Alienado de seus próprios pensamentos subiu no ônibus que esperava a quase 15 minutos. Sentara-se num banco estrategicamente localizado na parte central do veículo. Cansado da vida que ali trazia no dorso de um paletó surrado, dirigiu enfaticamente os olhares pela janela, por sobre o ombro esquerdo que se escorava na parede lateral do ônibus. O mundo parecia uma coisa distante, mas estava ao alcance uns cinco ou seis metros, na calçada que corria na direção oposta à sua.

O ônibus “vazio” trazia uns poucos passageiros os quais ele ignorava como se nada existisse naquela redoma senão o movimento constante, dirigido de dentro pra fora e de fora pra dentro do ônibus. A catraca estalou mais uma vez e seu pescoço virou-se. Os olhos de indiferença, os mesmos que se afastavam do mundo com um gesto evasivo do olhar compulsivo e inanimado, fixaram-se na louridão dos cabelos da mulher que chegara. Havia acabado de atravessar a catraca e se sentara do lado dele. Era alta e corpulenta, e tinha a pele morena queimada, quase mulata. Provavelmente a cor dos cabelos era o artifício impróprio de algum agente abrasivo; tinta de cabelo ou um descolorante. Algo que dava, com franca beleza, o ar da vulgaridade que também trazia na roupa. A calça – justíssima – dava sentença merecida àquelas ‘senhoras’ coxas, assim como o decote exagerado mostrava a parte superior dos seios como a vitrina que na confeitaria mostra seus doces através de uma placa translúcida.

Teve ele uma ereção. Instintivamente, puxou um livro que havia na pasta; abriu-o e pois os olhos em cima enquanto à esguelha mantinha à vista aquelas coxas e seios. O livro que se abriu, em todo caso, dizia apenas de uma atenção renovada, que agora não mais atravessava a janela. Mas o texto que o livro enredava nem sequer semântica tinha. Eram letras embaralhadas que serviam de corrimão aos olhos lascivos e imorais daquela libido iletrada.

Conforme julgou o desconforto daquele membro ereto na posição que estava, escorreu pelo assento jogando os joelhos pra cima e os apoiando no banco da frente. O pênis deslizou pela virilha e, à força, atravessou o elástico da cueca que o sufocava. Gemeu com os olhos como se algo naquele livro fizesse sentido. Deteve, então, o livro em apenas uma das mãos enquanto a outra, rompendo por entre as pernas levemente erguidas, deslizava até recostar-se no obelisco que se eriçava. Acariciou-o com certo receio, imaginando penetrar a pandora protegida por aquelas coxas salgadas que ao seu lado escondiam-se embaixo de um tecido ordinário. Percebeu, no entanto, que aquelas carícias que ocultava para si, reverberavam num movimento muscular visível também sobre os bíceps. Esperava, por isso, que o ônibus entrasse em movimento para que o despudor dedilhado por sobre o tecido da sua calça fosse confundido com a turbulência do ônibus, que trepidava com a mais sutil arrancada e só repousava quando parava na ponto. A mulher olhava para frente, mas ele imaginava-a olhando a sua performance dissimulada e ela, mordida entre os dentes, tinha nessas imagens o mesmo aspecto sujo e depravado daquela vagina depilada que ele recriava mentalmente envolta de seu pênis.

Volta e meia, esquecia de olhar para o livro e quando se dava conta virava uma página, como se aqueles parágrafos já desgastados tivessem lhe servido os prazeres de uma história contada (e de certa forma serviam). Como não pudesse mais esconder o líquido denso daquela conduta imoral, ejaculou seguidamente - quatro vezes. Gozou tão despreocupadamente que julgou ter a mulher notado o fato. Não importava; ao contrário, isso só tornava mais triunfante aquele excesso.

Coincidentemente ou não, o livro se encontrava aberto em uma ultima página de um capítulo que findava com um pequenino parágrafo. Ele leu:

“Cada um de nós desconfia que possui pelo menos uma das virtudes cardinais – e a minha é esta: sou uma das poucas criaturas honestas que jamais conheci.”

Ele não sabia do que se tratava. Não sabia que livro era. E nem quis saber.

quarta-feira, 30 de setembro de 2009

LIP's

Entraram no quarto e procederam com olhares de reprovação. Parecia um lugar imundo. A cama, desarrumada, revelava sob o lençol que se abarrotava em um canto, as espumas envelhecidas e os tecidos rasgados do colchão que lhes serviria o encosto. Ao lado da cama três pacotes de preservativos largados, abertos e, provavelmente, usados (e não faria o menor sentido se não estivessem). A janela entreaberta oferecia, pelo vão que sobrava, a vista de uma cidade suja e deserta, ainda que brilhassem os letreiros das estâncias do outro lado da rua.

Ele foi até o banheiro, que estava alagado, mijou apoiado sobre as pontas dos pés. Ela largou-se na cama que os dois, antes, haviam ajeitado (esticaram o lençol e o viraram do avesso). Ele, então, deitou ao seu lado e os dois olharam para o teto onde viam seus reflexos num espelho que o cobria, de canto a canto do quarto.

- Espelho no teto me dá uma sensação estranha? - ela disse, sem jeito, como não tivesse nada mais interessante a dizer. Não que algum tipo de embaraço a tomasse, mas era o todo daquele ambiente arquitetado para o sexo que se fazia constrangedor. A sensação de estranheza, em todo caso, se refletia no teto e nas paredes, na janela e no corpo do rapaz que deitava ao seu lado.

Ele virou lentamente a face em direção a ela e começou a acariciá-la. Passou a mão direita sobre as delicadas maças do rosto daquela menina, cuja tenra e morena pele quase se desmanchava ao toque. Ela fechou os olhos.

Ele desabotoou o vestido, soltando um a um os botões do tecido que escondia o dorso juvenil daquele corpo. Empurrou o tecido - já sem os botões como impedimento - para o lado e expôs, àquela semi-luz que entrava pela janela, o mais belo seio que já havia visto. Tocou-o, menos pelo prazer do toque que por não acreditar na concretude daquele ser deliciosamente encaixado no tórax. Levantou a aba do outro lado do vestido, descobrindo também o outro seio. Deixou-se cair sobre aqueles dois, beijando-os compulsivamente. E, enquanto sua língua se espalhava sobre um mamilo enrijecido que se esticava ao beijo, ela acariciava sua cabeça. Na verdade, puxava-lhe os cabelos com força conforme o curto corte que o rapaz exibia permitia puxar. Demoraram alguns minutos nesse processo até que a mão dele deslizasse por entre as pernas da menina, fazendo-a gemer sussurrando acima de sua cabeça. A calcinha, já molhada também por fora, era de um algodão grosso que ocultava, com tanta cobertura, a verdadeira textura daquele pedaço de pele. Não precisou avançar. Ela, percebendo a distância que aquela pequena peça de tecido abria entre o toque de um e o "sentir tocado" do outro, segurou sua mão e a levou vagarosamente para dentro da calcinha. Molhou-se o dedo todo com aquele líquido que escorria e penetrou-a.

Ela não aguentou muito tempo e pediu baixinho:

- Eu quero sentir você dentro de mim. -


Penetrou-a lentamente, primeiro; atendendo a um pedido dela que se dizia "um pouco apertada", para depois seguir com força, até que os dois respirassem pela boca tentando salvaguardar o fôlego daquela investida um tanto agressiva. Ela pediu a ele, como quem pedisse um delicioso favor:

- Goza dentro de mim? – E depois com tom de exigência. – Goza! Goza!

Ele ignorava a semântica. Entedia tudo como fosse parte de um jogo ao qual é necessário que se entregue. Mas ignorava o que realmente diziam aquelas palavras. Ela queria que ele gozasse, simplesmente. Ele, em todo caso, apenas gemia.Até que ela lhe disse:

- Preciso te contar uma coisa. Eu não vou gozar. Eu nunca gozo. - Disse como se fosse a coisa mais natural do mundo e esperava que, assim, desse a ele a liberdade de ter o prazer do coito sem por ela esperar.

Ao contrário, aquilo impactou nele onde a fraqueza era mais exposta. E ainda que se esforçasse para não tomá-lo como pessoal, ainda que tentasse absorver a naturalidade que a menina exalava ao dizer o que disse, foi como se lhe anunciasse uma incapacidade particular de levá-la ao orgasmo, como se apenas no gozo pudesse a razão do sexo estar justificada. - "Bobagem" - pensou ele logo depois. - "Se ela não goza nunca deve haver no sexo algum fundamento de prazer qualquer, senão ela simplesmente não o faria." - E ele sabia mui bem a qualidade precisa daquele argumento, pois também ele tinha no gozo o privilégio de apenas uma ou outra foda que desse - e sentia prazer mesmo assim, pois não o sentisse, teria parado há tempos.

Continuou a penetrá-la com força. Ela, entre um gemido e outro, pediu a ele que gozasse, mais uma vez. Ele – que também sabia que o gozo muito provavelmente não viria – ignorava os pedidos e adicionava mais força ao movimento cada vez que um pensamento dessa improbabilidade do coito vinha à cabeça. Pois ainda que o gozo não chegue e que o advento capital da reprodução não possa justificar qualquer acepção natural do sexo como essa dádiva evolucionária, é sempre a um fim que se caminha, ainda que se faça apenas a passeio; é o andar que pressupõe a parada e não o inverso. E se o fim representado pelo “cansaço” assumido não era tão desprezível assim, também não parecia a ordem mais natural da coisa e roubava do ato um certo conforto psicológico, desses que se traduzem mais na expectativa do destino que propriamente na chegada em termo. Pois ele continuou como se pudesse gozar, como fosse de fato ejacular, dentro ou fora daquela cálida vagina – mesmo que a razão o dissesse o contrário. E, tão logo se deixou perder na suavidade daquela pele e no calor daquele pequenino corpo suado, pôde novamente pender para o irracional que o movia sem qualquer nota.

Como o coito não veio, de um lado ou de outro, os dois se perderam entre as carícias vulgares do sexo e aquelas mais fraternais, quase assexuadas. Prosseguiram a cena com um conversa doce enquanto se olhavam com certa ternura. Ele aproximou seu rosto do dela mais uma vez; ela fechou os olhos (costumava fechar - não havia um sequer beijo ao qual desse ela o mérito do olhar). Ele a beijou. E ela, “em troca”, devolveu-lhe o beijo – o mesmo beijo.

Eram os dois desse um tipo de espíritos vaidosos que pensam que dar prazer é sempre mais digno que receber. Desses que às vezes esquecem que a completude das coisas serve-se sempre pelos dois lados. Que é preciso sentir prazer em dar para que dar seja também o fulcro do recebimento. Pois, ali, tinha-se uma ironia notória: o prazer que os dois recebiam era mais pelo fato de julgarem o prazer do outro que pela experiência mesma e fisiológica que seus corpos proporcionavam.

quarta-feira, 23 de setembro de 2009

Cinco Últimos Parágrafos de Cinco Livros Não Escritos

Já passava da meia-noite, e aquele maldito café vienense ainda entupia-se de gente. Markos insistia que permanecêssemos por lá. O cansaço era grande, meu corpo ainda não se recuperara dos excessos da noite anterior. Deixamos as mochileiras belgas no quarto do albergue e fomos aproveitar a última noite na cidade. Imaginei que fôssemos encher a cara à beira do Danúbio ou algo assim, mas meu amigo insistia que era tomando aquele café que viriam a nós as grandes idéias de uma nova concepção de mundo. "O segredo tá no café, e não volto pro Brasil sem pelo menos um Manifesto", repetia ele, e a cada vez que dizia isso eu lamentava não ter ficado no albergue com as mochileiras. Entre uma orgia com mochileiras belgas e a fundação de uma nova concepção político-artístico-filosófica, a escolha não era fácil, e a cada minuto parecia pender para as belgas. Finalmente convenci meu amigo de que, o que quer que tivesse motivado Schönberg, Wittgenstein e Musil, não era o que se encontrava em nossas xícaras. No dia seguinte, com litros de café destruindo nossos estômagos, estávamos no avião de volta pra casa. Sem qualquer nova concepção de coisa nenhuma, e sem orgia, já que ao retornarmos para o quarto as mochileiras já estavam dormindo, nuas, com um dildo por perto garantindo que havíamos sido substituídos. "Viena de Arschloch é Schwanz", resmungava Markos, como quem diz que a vida já foi mais bela.

(Viagem a Viena)


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Com este tratado, acredito ter abarcado a totalidade dos problemas filosóficos e, ouso dizer, solucionado boa parte deles. Àqueles que não puderam me acompanhar na cadeia de raciocínio que subjaz o texto, sugiro uma nova leitura, após a qual tenho certeza de que angariarei de vós nada que não a plena concordância. No que tange a comunidade científica, antecipo meu "Não há de quê" aos agradecimentos futuros por minhas contribuições. Afinal, uma vez apresentada tal derradeira ontologia, resta a vocês alimentar vossas contas bancárias e as bocas de vossos rebentos com bolsas de pesquisa saudáveis e divertidas, posto que agora podem brincar de ciência normal sem mais incorrerem no risco de novas crises.

(Tratado Geral da Natureza das Coisas e Muito Mais)


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(Texto autocensurado pra evitar futuros aborrecimentos)

("Retaliação" em Retaliação e Outras Estórias)


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Ao chegar na lanchonete, contemplei meu destino: lá estava o anão salvadorenho, com seu irônico sorriso, como uma nanica e bigoduda Gioconda. Saboreava seu caldo-de-cana enquanto cantarolava junto com uma versão antiga de Guantanamera que tocava no rádio. Todas as peças se encaixavam agora. A Operação Dromedário nunca chegou ao fim. Eu estaria para sempre preso àqueles dias de sangue e terror em Itaquaquecetuba-mirim. Tentei dar meia volta antes que fosse avistado por ele, mas era tarde. A magnum 44 tinha ficado na escrivaninha do hotel, mas avancei sobre ele com um providencial cortador de unhas que havia esquecido no bolso do casaco. Tomado pela sanguinolência, dilacerei seu diminuto corpo. Antes do suspiro final, ainda pude ouvir sua voz rouca, despedindo-se da vida: "Y antes de morirme quiero echar mis versos del alma..."

(Operação Dromedário)


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Pouco antes de amanhecer, senti seu corpo se afastar de mim. Com meus olhos ainda embaçados pelo sono, a observava se vestir enquanto procurava ansiosamente por algo a roubar em minha estante, seja como compensação pela noite meia-boca que lhe ofereci, seja por cleptomania. Acabou me furtando, entre outras coisas de menor valor, uma edição original em russo de Brátya Karamázovi do Dostoiévski, que ela certamente escolheu pela capa bonita, dura mas conservada. Eu sabia que a pilantra não falava russo e provavelmente acabaria vendendo aquela preciosidade por uns trocados. Eu também não falo, é verdade, mas pelo menos sei o valor inestimável daquela edição - ou seja, sei que é um valor que não dá pra estimar. Pior do que a subtração do acervo, contudo, foi ouvi-la derrubar tudo o que não convinha aos seus interesses. Passei o restante do dia reorganizando tudo, além de ter que refazer o meu catálogo. Ela não entenderia. Ninguém entende. Para tudo há um lugar, uma ordem, uma um código. Para tudo, uma posição que não se abandona. O que faço não é só um trabalho, é uma atitude diante da vida, algo que os alemães chamam de Lebensgefühl e os psicólogos chamam de Transtorno Obsessivo-Compulsivo. Os filósofos não fizeram mais que interpretar o mundo; está na hora de ordená-lo nas prateleiras.

(O Biblioteconomista)

quinta-feira, 17 de setembro de 2009

Razão e proporção: a singular matemática da desculpa

Entrei na van, que estava vazia, e me dirigi à ultima fileira - como fazia já no colégio e como ainda hoje faço nas situações mais diversas - sentando no assento à extrema direita (que difere dos outros por não ter banco algum à frente). Interrompendo a progressão das fileiras anteriores, vindo essas em seqüências de 3, a última fileira apresenta 4 assentos - isso porque não se pede ali o espaço deixado ao corredor que vem da entrada até a penúltima, já que, ao rigor das limitações do espaço em profundidade da van, interrompe-se o caminho ali num último renque de 4 bancos.

Mas permaneceu a van vazia por pouco tempo. No ponto seguinte preencheram-se quase todos os espaços restantes, persistindo, entre as exceções, um ou dois assentos à frente e os três lugares à minha esquerda. Não é que minhas feições desagradáveis espantassem os passageiros, preferindo estes, assim, evitar o inconveniente de ter-me como referência em um campo de visão periférica (o mais tangente que fosse), mas o fato d'eu estar sentado ao corredor devia fazê-los ponderar o ingrato exercício de olhar-me na cara e pedir-me licença, quando nos bancos que precediam tinha-se a livre passagem, já que se haviam ocupadas as janelas e, logo assim que entravam os novos passageiros, os que estavam ao corredor - educadamente - passavam ao banco à esquerda, deixando livre o assento mais acessível ao sujeito que acabasse de entrar. Mas se já eu evitava esse educado gesto, era porque me imaginava lutando contra os joelhos e as pernas que eu teria pela frente caso viesse a saltar antes que aqueles que chegaram depois. Enfim, pouco depois - na terceira ou quarta parada, talvez - uma linda morena entrara e sentara ao meu lado, deixando à sua esquerda os dois últimos assentos vagos. Imediatamente fez arder em meu ego o questionamento: Porque será que ela se manteve ao meu lado quando tinha, logo mais à esquerda, espaço para distanciar-se de mim com, ao menos, um assento de distância? Mas logo me dei conta de que, provavelmente, balizava-se ela pela mesma prática lógica que eu quando decidi ocupar o banco mais acessível ao corredor. E isso, aqui, pouco importa, porque esta história não se desenrolará em espécie de romance platônico entre a linda morena e o personagem que narra, visto que menos de 8 segundos se deram entre o instante em que ela sentou-se e o momento decisivo da chegada dos novos passageiros - esses sim dariam argumento ao enredo que aqui se apresenta. Assim, pois, ainda nesse mesmo ponto, uma corpulenta senhora subira na van e, vacilante, viu-se a morena obrigada a tomar o acento à extrema esquerda, prevendo impossível passar aquela mulher pelo vão entre o banco da frente e as suas delicadas pernas. A senhora entrou e eu me espremi na parede do carro abrindo espaço suficiente para sua passagem. Sentou-se ao lado da bela morena deixando um reduzido espaço entre as volumosas pernas recém chegadas e eu. Um espaço considerável e talvez até confortável se o passageiro que viesse a ocupá-lo tivesse proporções de um pigmeu ou fosse magro daqueles a que chamamos, pejorativamente, esqueléticos. O caso era que a mulher que vinha logo a seguir - e subira ela já sem quaisquer dúvidas de que o lugar ocupado seria aquele – possuía fartas ancas e um amplo quadril, o que me fez torcer o nariz (mas não torci de verdade) imaginando o desconforto que me faria companhia durante o resto da viagem. Fez um enorme esforço para passar, contando ainda com um esforço meu proporcional para abrir-lhe passagem, e sentou forçando as fronteiras estabelecidas entre o meu corpo e o corpo da senhora ao seu lado esquerdo.

Não era gorda - e nem a senhora, aliás. Eram desses tipos em que a idade toma para si a incumbência de reforçar o estoque de energia – esse muito necessário se vivêssemos em uma selva ou num pós-guerra em país derrotado, mas absolutamente inútil em uma sociedade industrial e bem capitalizada como aquela. Mas apesar da corpulência ponderável, também a mulher parecia sentir o desconforto moral justificado pelo reconhecimento de que sua garupa excedia razoavelmente os limites atestados pela linha divisória que havia entre os bancos. Mas eu mesmo não pude culpá-la já que o problema, ali, era maior na razão total entre as ancas dela e da senhora ao lado e o espaço insuficiente dos assentos supostamente cabidos a elas, fazendo espremer-me contra a parede do carro ao meu lado direito e, muito provavelmente, também à moça sentada à esquerda na outra janela, embora eu já não pudesse mais vê-la uma vez que, apesar do recurso da visão periférica, ela desaparecia completamente atrás dos corpos avantajados das duas mulheres que se punham entre nós.

E o desconforto que sentira a mulher alguns pontos mais tarde a fez desculpar-se comigo quando, em curva acentuada, fez-me sentir seu peso de forma mais intensa. Isso, também, porque estávamos colados desde o início e qualquer movimento seria, de fato, impossível. Comovido com a necessidade de re-tratamento dela, vi-me obrigado a respondê-la desse modo:

- Não há porque desculpar-se. Não é sua culpa se a razão entre os espaços dos assentos e os tamanhos dos nossos traseiros, nós que dividimos essa fileira, não cumpre por re-estabelecer o equilíbrio, já que também absurda é a consideração de que nossas nádegas devessem ter o tamanho exato dos assentos que ocupamos. O problema aqui é que, ao acaso, não competiu tomar nossos corpos na perfeita ou justa medida da largura do veículo. A culpa, pois, não é sua. É um caso absolutamente circunstancial.

Incompreendendo a sentença, ela me devolveu:

- Hã?!

E vi-me obrigado a redimir minha clareza descritiva e de rigoroso objeto no trivial jargão (em tom conciliador): - Essas coisas acontecem...

E ela se virou satisfeita para frente e continuou a viagem muito mais tranqüila, não pela concordância com o desconforto que eu atribuía meramente à circunstância, mas por se ter feito educada e demonstrado que nada poderia fazer para redimir-se de suas largas e incisivas ancas. Percebo que a faculdade para comunicar e receber comunicação de sentenças que estão, em complexidade, para além de amenidades como perguntar as horas ou pedir um cigarro não está dispersa na massa e se encontra, talvez, restrita a um grupo diminuto de indivíduos que se empenham e conseguem lograr em tal objetividade. Imagino que aquela não faça parte desse estreito grupo. Mas ainda que fosse gorda realmente, eu jamais a poderia culpar, com alguma diligência, pelo meu desconforto.

sábado, 12 de setembro de 2009

A lapa dos desjustados

Já há algum tempo a Lapa vem perdendo sua aura de “lugar de desajustados”. Os desajustados a continuam frequentando, diga-se em respeito, mas já não parecem mais a alma desse negócio de lá, como antes pareciam. Dito isso, vocês devem supor que eu, como imperfeito caractere até no desajuste, já não me sinto tão à vontade por aquelas bandas – e, de fato, a suposição calha. O preço da cerveja subiu vertiginosamente – eis a verdadeira alma do negócio. Já ouvi dizer que era coisa de sexo, drogas e Rock’n Roll. Suspeito que o rock’n roll fique de fora dessa vez. O resto pode ser quantificado e trocado por notas de 10. De 5 ou de 2, muitas vezes. Depende mesmo é da disponibilidade que você tem das notas.

Me lembro que 5 ou 6 anos atrás, a movimentação cessava ali na altura do arco-íris, onde se via o último cabelo loiro bem tratado e último vestido da moda. A partir dali começava a contra-lapa. A “lapa dos mal vestidos”, pra quem gosta de um jargão mais jocoso. Eu me sentava no banco de cimento na sinuca da lapa e estava perfeitamente aberto ao calor absurdo do lugar; acontece que é um lugar pequeno, com muitas mesas e algumas tantas pessoas. O som também era caótico. Eclético. Ruidoso, talvez. Mas reinava uma tolerância discreta que hoje já não mais se vê. Estamparam, na frente do lugar, uma política da boa vizinhança. Da vizinhança boa, digamos. Assim: que entrem os bons vizinhos, eles e os seus bons bens. É tudo muito rasteiro, subliminar. Um letreiro vermelho reluz em neon o nome do estabelecimento. Um nome que, no entanto, já sabíamos todos ainda quando era escrito na parede interna do lugar, com tinta preta. Começaram a cobrar entrada: foi o que me disseram. Mas já aboliram essa prática... pouco importa. A cobrança é ainda feita de uma forma menos vulgar. Um segurança se mantém de pé a frente do lugar, com cara de poucos amigos. São poucos, sim, mas eu pouco duvido que eles tenham mais grana que a média geral dos antigos frequentadores do local.

Me senti impelido a andar mais um pouco. A antiga lapa não me oferece mais o mesmo conforto, o abrigo. Seguindo a Mem de Sá, me deparei com esse lugar indeciso. Eu não conhecia. Achei que a lapa terminasse ali na altura da “casinha da cachaça”, nos limites da Gomes Freire. Não, não. Não mais. Parece que o desenvolvimento acentuado arrastou aquela margem mal assalariada um pouco mais pra direita. Tudo bem, talvez não sejamos tão mal assalariados assim alguns de nós. Mas importa mesmo é a imagem que fica. Bom, o amigo que me acompanhava também ficou surpreso com a disposição do lugar. As mesas se enfileiravam no fundo, quase no mesmo esquema espacial da antiga sinuca, que ainda existia - não pra mim. Santiago sugeriu que entrássemos. Largamos fora as cervejas que trazíamos a mão (isso porque nos proibiram de entrar bebendo, já que aquelas garrafas não houveram sido compradas ali mesmo no estabelecimento) e entramos. Tudo bem, a política é ainda a do lucro, mas como eu disse: “o que vale é a imagem”.

Uma cerveja e três fichas: como reza a remessa que se tem em vista quando apenas dois se metem ao jogo. Ao nosso lado direito 4 mulheres se derretiam ao som sabe-se lá de que variados gêneros musicais que fugiam de uma jukeboxe alimentada pelos mais distintos espíritos que ali fulguravam. Lembrava-me a antiga sinuca, onde o desmedido ecletismo (que se podia ver em uma musica do Led seguida por um funk grosseiro e em, talvez, uma ou outra da legião urbana que figurassem entre clássicos do Steve B) assumia a naturalidade de um diálogo entre Jesus Cristo e Napoleão numa casa de tratamento psiquiátrico. Junto às 4 mulheres um tipo magro e efeminado compunha a cena aos esfregões com as histéricas dançantes, enquanto Eu e Santiago locupletávamo-nos com a crônica, como se uma nostalgia nos invadisse a alma a todo instante nos lembrando que o mundo era também feito de absurdos inofensivos como aquele. A cerveja escorregava pela minha goela como fosse a manteiga descendo por entre os dentes do garfo aquecido; o copo de Santiago, esvaziava-se a cada 45 segundos. Entre uma musica do Red Hot e outra da Claudia Leite – que se fazia ali contingente e, por isso, nem de longe machucava os ouvidos sensíveis da maior parte dos “roqueiros”, que eram, talvez, maioria no lugar – as meninas puxaram as bolsas e saíram.

Chegaram outras duas. Lésbicas. Não preciso aqui descrevê-las. Deixo à imaginação de vocês o que se toma na média por duas lésbicas. Uma delas perguntou alguma coisa a Santiago. Ele sorriu e respondeu. Não consegui ouvir o diálogo, mas certamente não envolvia qualquer componente sexual. Preciso dizer que lésbicas não fazem sexo com homens? A essa altura, paráramos com a sinuca: 9 fichas jogadas, placar: 5 a 4 pra mim. Nada tão disputado, joguei a ultima ficha com vitória já garantida. Sem me gabar. Santiago não é lá muito bom nesse jogo.

De repente, um grupo de 5 se instala na mesa que deixamos à espera. Um casal clássico: a gordinha de preto e o cabeludo roqueiro e magricela; uma ruivinha saliente que se esfregava constantemente no amiguinho viado. Não me entendam mal, é que eu não conheço palavra melhor que essa pra apresentar um viado; e uma baixinha atarracada de pele morena e cabelo encaracolado. Atarracada porque a gravidade parecia ter efeito mais intenso no corpo dela, que se mantinha mais próximo ao chão fazendo-lhe a largura parecer mais visível à volta do tronco. Eu diria gordinha ou fofelete se ele tivesse um pouco mais carne. Não era o caso.

Começou o show. A ruivinha dançava orbitando lascivamente o rapaz que eu outrora chamara viado. Chamarei novamente, me desculpem – ele era mesmo viado. Consciente de que aquele não me oferecia qualquer concorrência, fixei meu olhar na garota. Ela satisfazia, também, as exigências de um certo tipo “roqueira”. Blusa branca estampada, shortinho preto curto, onde, no limite, descia uma meia-calça escura com um ou outro pequeno rasgo. Na perna direita, no entanto, a meia-calça começava um pouco mais tarde, deixando uma pequena faixa de pele exposta. Era a minha deixa. Comentei o caso com o Santiago. Ele retorquiu: “Será que é proposital?” Respondi-lhe que se fosse, ela ganharia mais alguns pontos. Levantei-me e fui até ela.

- Diz uma coisa. Esse pedacinho de perna exposta é proposital mesmo ou o acaso de uma meia-calça mal posicionada? – Disse cheio de lascívia.

Ela sorriu. – É que a meia desse lado ta um pouco mais frouxa. É sem querer, acredite. – Me disse mordendo os lábios. Aihh, aquela vadia...

Nesse meio tempo a amiga atarracada se aproximou com meia garrafa de Brahma. A ruivinha tomou da mão dela, virou a garrafa e disse que viraria ainda que estivesse cheia. Senti como uma indireta. Puxei uma Brahma e entreguei na mão dela. Ela tentou virar. Foi até a metade. Com muito esforço virou o resto em mais dois ou três goles. Senti que o “casal clássico” conversava alguma coisa a respeito com Santiago. Me virei pra eles e a gordinha disse:

- Cara, ela faz essas coisas. Fica provocando e as pessoas acabam dando bebida pra ela, mas isso não vai dar em nada.

Me senti ofendido. Não porque ela fosse a tal provocadora. Ela era e eu sabia. Mas porque julgou o casal que eu não seria suficiente pros meus próprios objetivos para com a garota. Respondi-lhes em defesa:

- Eu entendo. Mas to tranqüilo. Faz parte da brincadeira né? Como é a medalha dada a um Usain Bolt por uma façanha qualquer como correr muito rápido. Digamos que a cerveja é a justa medalha que ela merece. – E voltei a sentar ao lado do Santiago.

Ela não merecia. Não mesmo. Que se foda, ou vai ou racha!

Santiago reiterou o argumento do casal: “Ela é uma ‘teaser’, cara. Uma provocadora.”
Há algum tempo que se seguia música após música a voz do Eddie Vedder vindo das caixas de som. Algum fã qualquer do Pearl Jam, jogou 5 ou 6 fichas e nos encheu com, talvez, meia hora de “Ten”. E a vadia dançava que dançava. Não me olhava diretamente. Mas fazia cara de quem queria olhar. Vocês entendem o que eu quero dizer? É um olhar sem olhar, mas com sorriso, saca? Ela andou até jukebox procurando algum título especifico. Cheguei do lado dela e sussurrei no seu ouvido alguma coisa indecente. Talvez o conteúdo nem fosse indecente, mas era possível saber a indecência pelo meu tom de voz. Ela saiu. Deixou a espera uma musica do Prince. Maldita vadia. Saquei dois reais da carteira e coloquei a musica. Com os outros dois créditos restantes coloquei duas músicas do Dire Straits. Porque não queria perder muito tempo ali e essas estavam logo na cara, mas também porque satisfazia a noção do ecletismo que pedia o lugar logo após o Black sexual do Prince (se não me engano era Kiss).

Ela ficou excitada. Percebeu que tinha ganho aquela também. Se sentou ao lado do amigo viado. Eu tomei lugar na cadeira do outro lado, do lado dele. Comentei com ele: “Ela é uma teaser, né irmão? Sacana...” Ele se riu e confirmou. Ela percebeu que conversávamos e entrou no meio pegando a mão dele e acariciando-a sensualmente. Explicou logo depois que os dois moravam juntos. Que ele a via de calcinha regularmente. Uma imagem um tanto desnecessária naquela conversa perdida, não fosse a intenção dela, a de me provocar. Pensei: “Basta.” Puxei a mão dela até a entrada do bar, onde a calma era mais convidativa. Ela se deixou puxar. Segurei-a pela cintura e ela então se esquivou. Me disse: - Eu tenho namorado, não to interessada em nada disso!

Eu forcei mais um pouco e soltei essa: - Olha, eu não me importo. Se você quiser chama ele e a gente faz uma sacanagem juntos! – Ela riu um pouco sem graça e me empurrou com mais veemência. Disse, dessa vez com ênfase: Não! Não quero. – E voltou pra lá onde estavam os amigos. Segui de volta. Quando cheguei, a cabeça de Santiago tombava para o lado enquanto ele se esparramava na cadeira. Estava dormindo. Dei-lhe um tapa no braço que semi-apoiava a cabeça tombada e ele acordou no susto. Perguntou: “E aí?” Eu respondi: “Me deu toco.” E ele, em perfeita sincronia com os meus pensamentos: “Vadia!”. Finalmente alguém com algum bom senso, além de mim, naquela porra.

Quando o grupo se preparava pra ir embora, a amiga baixinha veio ter comigo. Não lembro bulhufas do que ela disse. Sei que a puxei pela cintura e roubei um beijo sem muita força. Ela se deixou beijar. Parei por uns segundos e percebi: Ela se queria beijada. Beijei novamente. Mencionei que era preta? Pois é. Não era “preta preta”. Mas um “preta” que bem se mostra sob a alcunha do “moreninha”. Entende? O bronzeado era natural e o beiço carnudo. Bom, perdi o voto de uma mais minoria, eu sei. Mas a honestidade ta aí, pra quem quiser ler. E sabe o que mais? Tomei a morena por troco - é essa a verdade. E a ruivinha que lá se foda, sabendo que a cerveja e as três músicas estavam pagas e bem pagas.

Eles se foram. Santiago voltara a dormir:

- Acorda seu puto! Vambora...

Vinte reais a menos no bolso e a mesma sensação da saída na sinuca da lapa de 5 anos atrás na bagagem. Doidera mermão! Vinte reais... Nada proletário demais, mas, também, nem assim tão burguês. A lapa dos desajustados...

quinta-feira, 10 de setembro de 2009

Do Nominalismo

Eram pouco mais de sete da noite. Entrei em um pequeno restaurante chinês na Zona Sul do Rio de Janeiro. "Entrei" seria forte, já que na verdade as mesas ficavam na calçada, e não saberia dizer em que medida essa disposição das mesas no meu caminho não foi determinante na minha decisão de interrompê-lo para saciar minha fome por ali mesmo. "Restaurante" também seria exagerado, dado que na verdade se tratava de um botequim de orientais, que oferecia a culinária chinesa menos por uma intenção mercadológica de promoção da gastronomia de sua terra natal que pela falta de familiaridade com a nossa culinária.

O restaurante - por assim dizer, a título de pragmatismo terminológico - era gerenciado por um homem, que cuidava do caixa, e tinha como único funcionário um outro rapaz, também oriental., que fazia as vezes de garçom e, vá lá, "chef". O gerente-caixa, que devia lá ter seus quarenta e tantos anos, estimados pelo rosto e a barriga, parecia sempre ralhar com o garçom, um rapaz esguio que não ultrapassava os vinte e cinco anos. O gerente/caixa reclamava alto com o garçom, na língua materna, e as outras pessoas espalhadas pelas mesas não disfarçavam o desconforto - não exatamente pela agressividade do patrão, mas pela completa impossibilidade de se inteirar o assunto. Talvez ele estivesse só reclamando da ineficiência do garçom em atender à demanda daquele horário, mas talvez ele estivesse reclamando do descuido do rapaz por não ter jogado fora um rato morto que apareceu no fogão.

Enquanto aguardava pacientemente o garçom atender os demais fregueses, me pus a observar os pedidos da mesa ao lado. Um homem, sentado sozinho à minha esquerda, pediu um yakisoba de frango. O garçom repetia o pedido enquanto anotava: "Yakisoba de flango e coca-cola". Fiquei a pensar se na hora de anotar o pedido, considerando a anotação exigia a compreensão somente dele mesmo, a anotação seria em português ou chinês.

Nisso, uma revoada de pombos imundos vinda sabe-se-lá de onde pousou e se alojou na calçada, promovendo outro explícito incômodo na povoada freguesia. O garçom, sem demora, correu para cima dos pombos gritando "Sai, flango! Sai, flango!". Os outros fregueses se divertiam com o equívoco do rapaz. O homem à minha esquerda não.

Nisso, o garçom percebeu minha mesa vazia, se voltou para mim e perguntou pelo meu pedido.

- Só uma coca-cola. Sem limão.

"Coca-cola", aqui ou na China, ainda é coca-cola. Mas àquela altura, algo me dizia que era melhor não saber o que aquele rapaz chamava de "limão".

terça-feira, 8 de setembro de 2009

A Questão do Tamanho e o Tamanho da Questão

Percebi que a questão da obesidade tem sido abordada aqui com uma notável e negativa ênfase. Ponderando-se as críticas levantadas, me sinto, como gordo, no papel de comentar sobre o assunto, tendo em conta o respeito que nutro pelos meus colegas deste repositório de idéias.

Acho que qualquer gordo esclarecido tem duas certezas: a primeira, de que é um gordo; a segunda, de que sua gordura, ao menos depois dos dois ou três anos de idade, vai aos poucos deixando de ser um motivo de atração física pelo caráter de “fofura” e vai se tornando um problema social – não na medida em que o indivíduo afeta a sociedade, mas, antes, a hostilidade da sociedade sobre este indivíduo. Quando falo em “gordo esclarecido”, é justo para separar-me do joio, isto é, daquelas pessoas que se recusam a se reconhecerem como gordas. Tais pessoas, de fato, seriam de forma justa objetos de toda jocosidade de que a maledicência nossa é capaz. Não pelo gosto ou desgosto por suas (ou melhor, nossas) redondas formas, mas por fazerem uso de todo expediente retórico no esforço vão de disfarçar pelas palavras o que é explícito aos olhos.

Uma vez reconhecendo-se como gordo, cabe agora ao cidadão pensar-se não no modo mais usual, como membro de um corpo social que na maioria das vezes sente certa repulsa estética por ele, como implicitou meu amigo Henrique em seu divertido texto sobre a ressaca alguns posts abaixo; mas reconhecer-se principalmente enquanto um cidadão que pela natural iniciativa de viver em centros urbanos e habitar espaços públicos, comete um suposto e involuntário abuso, como explicitou meu colega Davi em sua experiência rodoviária, e articulou narrativamente meu colega Bruno. É importante ressaltar também que não falamos aqui daquela beleza pneumática da Renascença, esse tipo que ainda resiste a qualquer imperativo estético contemporâneo baseado em ossos e músculos. As moças descritas nas crônicas de meus colegas, tal como eu, não portam somente a gordura pontual e comedidamente distribuÍda em pontos específicos da silhueta, tal qual a faixa de gordura que inevitavelmente aparece anexada a um delicioso pedaço de filet mignon. Ao contrário, somos excesso do mediano, ocupamos o espaço extra no mundo, um espaço do qual prescinde uma pessoa esquálida - mas que é a justa medida de uma pessoa de proporções medianas.

Por ser gordo desde a mais tenra infância, percebi o quanto minha forma física provocava um desconforto onde quer que eu estivesse. A minha educação exigia dos professores um esforço constante em conciliar uma educação sobre os problemas na manutenção de minha forma física com um trabalho de auto-estima. Por contraditório que fosse tal projeto pedagógico, fui percebendo que eles tentavam ao mesmo tempo me fazer me sentir bem comigo e querer mudar. Considerando que meus pais, idiotas funcionais, se limitavam seguir recomendações dessa gente (professores primários e psicólogas infantis), passei a minha infância e parte da minha adolescência vítima desse estrabismo pedagógico. Por outro lado, esse destacamento em relação ao grupo de alunos também me permitiu desenvolver, sem maiores esforços, uma visão sobre meu próprio lugar neste grupo, e em, maior medida, o meu lugar na sociedade em geral.

Não ignoro, em momento algum, o desconforto que causo em lugares onde cada vez parece mais restrito o espaço para a ocupação de uma pessoa, quer estejamos falando de um banco de ônibus ou van, quer estejamos falando dos assentos de um teatro, de um banco de praça, de uma discoteca, de uma academia de ginástica. Ao contrário do caso dos homossexuais, em que a eventual repulsa que ainda provocam se restringe aos momentos de expressão pública de sua sexualidade, no caso dos gordos tal repulsa incide em um aspecto que independe do indivíduo querer expressar ou não, posto que repousa sobre a presença mesma do indivíduo em um espaço determinado para pessoas com setenta, sessenta ou cinqüenta por cento de sua compleição física.

Quando Davi – seja ele o autor do post autobiográfico ou o personagem da narrativa fictícia de Bruno – acenava para violação que um obeso comete ao ocupar um espaço maior que o determinado para ele, cerceando o direito de outra pessoa ocupar um espaço determinado para ela, podemos daí nos perguntar: e quanto ao direito de um homem exercer completo controle sobre seu corpo? E quanto ao direito de qualquer homem, como cidadão, habitar um espaço público e fazer uso dos recursos públicos da mesma maneira que os demais, posto que paga proporcionalmente os mesmos impostos? Quando meu ilustre colega mede os direitos dele, é inevitável atentarmos que ele está ali cometendo um grave e comum equívoco, típico daqueles a quem ele costuma dirigir suas críticas: o de olhar o outro como quem se olha em um espelho.

A bem da verdade, estamos aqui lidando com a situação, não exatamente rara, da dificuldade de uma justaposição de direitos em situações nas quais estes aparecem conflitantes. Por conseqüência, a dificuldade está em se formular uma resolução para o impasse que se faz quando cada parte escolhe lançar mão de um direito como argumento da correção de seu ponto, sem que se viole qualquer dos direitos levantados. Poderia-se responsabilizar o Estado (ou, no caso, as empresas de transporte público) por oferecerem um banco que, por garantir dois lugares, não permite a ocupação destes lugares por duas pessoas quaisquer, mesmo as mais obesas. A pergunta um pouco mais geral imbricada a esta, e que está longe de se restringir à obesidade, é: há lugar no mundo para tantos direitos?

Considerando a dificuldade que inevitavelmente emerge da discussão sobre o conflito entre proclamados direitos, e até mesmo na fundamentação ética e moral de tais direitos, concluo manifestando o meu alívio por ter um carro, uma cama king-size, e uma natural aversão a aglomerações.

segunda-feira, 7 de setembro de 2009

Davi e Golias

O ônibus parou no ponto. Um homem grande e gordo atravessou a roleta com alguma dificuldade e vasculhou com os olhos a procura de um lugar vazio. Lá onde repousava um rapaz magro de cabelos crespos e óculos, viu o que fosse, talvez, o único lugar não ocupado de todo o ônibus. Percebeu também a expressão de preocupação do rapaz que, antecipando a situação, imaginara como seria desagradável aquele homem enorme sentado ao seu lado. Estranhamente o rapaz se deslocou do assento de corredor que estava para o da janela. O gordo veio em sua direção e o pobre coitado suspirou, mostrando descontentamento com a chegada do novo passageiro.

Imaginem a situação. Quando o último lugar vago encontra o uso em potencial de pessoa excessivamente corpulenta, quem há de ser culpado por esse crime? Talvez o indivíduo que projetou tal que os bancos de ônibus se dispusessem em assentos duplos.
Mas também devemos considerar a moléstia que sofre a pessoa gorda em situações como esta toda vez que se depara com a expressão facial aborrecida daquele que o acompanhará durante toda viagem. É uma atrocidade na qual se revelam vítimas os dois lados. Embora muitas vezes a criatura não-gorda não tenha suficiente senso de humanidade para compreender que talvez os gordos não sejam culpados de sua própria obesidade, algum dispositivo bem mais cruel pode se desenrolar nos cantos obscuros da fisiologia ou da genética particular desse indivíduo. Enfim...

Sentou-se o gordo ignorando toda hostilidade que seu vizinho emanava através do semblante empedernido que tinha o jovem, como quem não se quisesse sensibilizar com os defeitos – assim julgados por súbita e inexplicável autoridade pelo próprio rapaz – do outro que vinha ao seu lado. O procedimento de mudar-se para a janela tinha lá uma explicação assaz razoável, apesar de tudo. Via-se agora que sobrava quase meia banda de traseiro do gordo pra fora do banco. E isso porque o jovem esbelto escorava-se nas paredes do ônibus oferecendo resistência aos avanços do corpo que vinha tomar-lhe parte do espaço. Estivesse ele do lado de lá, certamente teria pelo menos metade do corpo exposto ao corredor desprotegido do ônibus.

Nas curvas mais íngremes a corpulência daquele calvo homem atirava-se para o lado contrário por conta da resultante centrífuga que, desconsiderada pela maior parte dos passageiros, tomava o aspecto de propositada maldade do motorista dentro da cabeça perturbada daquele jovem espremido. Já quando a inércia se reestabelecia no trajeto retilíneo o rapaz percebia inconformado que seu algoz o havia tomado alguns centímetros do assento sob o pretexto circunstancial da ação daquelas invariáveis forças vetoriais que a física tão bem explicava, mas que jamais na escola ou nos livros aparecia a figura do gordo exemplificando o constrangimento e o desconforto os quais Newton, houvesse experimentado o problema, certamente faria incluí-los quem sabe numa quarta ou quinta das leis que o fizeram ser tão conhecido.

Reconhecendo, assim, o avanço inimigo e tomando a linha divisória dos bancos - que se mostrava visível para ambos especialmente no verso dos bancos que tinham a frente – forçava novamente o quadril e com gestos e olhares de desconforto toda vez que o gordo encostava em seu corpo, fazia notar certa repreensão, intimidando a grossa cintura do homem a retroceder alguns preciosos centímetros. Quando não bastou o procedimento e o gordo, recuando as ancas, deixou por cima dos quadris as banhas laterais e o braço tocando seu contíguo, o jovem tomou de mão a mochila, abrindo-a e tirando de lá um livro, que abriu serenamente projetando os cotovelos e demarcando novamente a separação das poltronas, agora também tendo em vista o espaço aéreo com referencia feita a linha imaginária que se projetava de baixo pra cima a partir dos assentos.

E essa celeuma durou quase meia hora e quando chegou ao seu ponto, o jovem se levantou e disse muito arrogante: “Com licença, eu preciso saltar. Acho que você vai ter que se levantar.”

O careca se levantou, o jovem saiu e a história acabou.

Quando mais tarde entrevistei esse jovem, questionando-o se não seria, de fato, menos desconforto ter aceitado metade do corpo pra fora do assento, permanecendo ele sentado ao corredor, que toda aquela inconveniência da briga pelo espaço com as proporções de um homem careca, obeso e já lá com seus quarenta anos de idade, ele me respondeu que não era uma questão de conforto, mas uma questão de direito. E disse-me: “Devia mesmo ele sentir-se constrangido e, quem sabe, aprender alguma coisa com isso. Pois se todo tempo eu tentei exprimir gestualmente aquela violação que ele infringia ao espaço público temporariamente cedido a mim, foi mais por responsabilidade moral que por algum egoísmo sem nota. Tivessem já lançado algo como um ‘Guia do gordinho educado’, eu não precisaria expor-me àquela situação desgostosa.” E disse ainda que se não fosse tão controlado teria falado ao gordo ao seu lado: “você não precisa chamar mais atenção para outros defeitos, né?” Frase que, ainda agora, confesso ter dificuldade em reconhecer-lhe o cunho disciplinador.

Devo confessar – até um pouco envergonhado de minha tributária parcialidade – que não poderia jamais dizer sem alguma desonestidade que o jovem não estava lá nos seus estritos direitos. Compreendendo, agora, que existe muito mais entre a razão e o direito do que supõe a nossa vã filosofia.

quinta-feira, 3 de setembro de 2009

Anarquismo no Busão

Catete, cinco e quinze da tarde. Saio correndo de casa, sanduíche de filé de peixe na mão, a título de almoço. Entro no um-sete-zero Gávea-Rodoviária. Uma vez resolvidos os protocolos - dinheiro pro trocador, "Não tenho menor", passa na roleta, se atrapalha pra guardar o troco - corro pro primeiro lugar vazio pra terminar o sanduíche que tinha guardado na mochila. Saí cedo de casa, vou chegar cedo no trabalho, de repente pego até um pedaço de Malhação antes do expediente. Vejo um vizinho entrando no ônibus, me concentro no sanduíche. Ele passa direto. Menos mal. Ao meu lado, no ônibus, uma senhora de largas proporções toma quase três quartos do banco. Mas ela já estava na janela, e quando um gordo senta na janela, não há o que fazer, porque ele se escora na parede, deixando ao passageiro que chega depois o que sobrar do espaço, e sem possibilidade de negociação - verbal ou não. Acho, ainda, que no contexto das diversas disputas contemporâneas por espaço no mundo [Paquistão, Iraque e Gaza são só âmbitos maiores de uma questão que toca esferas bem mais restritas] a obesidade tem assumido muito pouca importância.

Abriu uma vaga na última fileira, naqueles bancos de trás. Me sentei com um grupo de trabalhadores que pelo semblante - e o cheiro - estavam certamente retornando da labuta. Sem demora, tirei novamente meu sanduíche da mochila pra terminar meu almoço. No que, para minha surpresa, ouvi do rapaz ao meu lado:

- Pô, me dá uma parte desse sanduíche aí...

Depois de uns poucos segundos estático, surpreso pela inesperada abordagem, recompus-me e, num misto de embaraço e firmeza, respondi que não, que era meu almoço.

- Mas eu trabalhei o dia todo, um sanduíche desses ia descer benzão...

- Mas esse é meu, brother.

- Vacilo...

- Pô.

E ficou a me olhar até a estação de trem da Central do Brasil com aquele jeito proudhoniano de quem diz "a propriedade é um roubo!". E eu olhava de volta com aquele jeito malufiano de quem diz "roubo mas faço!". Castelo, Praça Mauá, Marechal Floriano, Central do Brasil. O rapaz salta do ônibus. Eu sigo em frente, tranquilo. Tenho ainda meia hora até o início do expediente, pra fazer um trajeto de dez minutos até o colégio.

Poucos metros à frente, um engarrafamento monstruoso paralisava o resto do caminho. Só chego ao trabalho uma hora depois. Escuto os resmungos da diretora, assino o ponto, a advertência, enfim, os protocolos todos. Talvez tenha desconto no salário. Mas não tem nada não. É só mais um jeito de Deus dizer que é anarquista.

quarta-feira, 2 de setembro de 2009

Full Circle

Dois mil e trezentos anos atrás, Aristóteles escrevia o Órganon, o primeiro tratado filosófico-científico sobre a Lógica. Nesse meio tempo, a Lógica se desenvolveu como área da Filosofia e aos poucos como uma ciência própria, dando origem à lógica formal do século XX, que originou a lógica computacional, que permitiu o desenvolvimento de uma tecnologia que permite hoje a qualquer pós-moderno ignorante escrever um texto em um blog sobre os malefícios da ciência, da tecnologia e da lógica.

Ressaca

s. f.

1. Movimento violento das ondas sobre si mesmas, quando vão de encontro a um obstáculo; refluxo das vagas.

2. Porto formado pela preia-mar.

3. Ant. Retaguarda.

4. Fig. Volubilidade.

5. Gír. Mal-estar depois de embriaguez.

Como numa prova Múltipla escolha.

e. Mal-estar depois da embriaguez

Os dicionários não sabem nada. um simples "Mal-estar depois da embrizaguez" não é uma ressaca. Ressaca não é um mal estar.

Ressaca é quando você acorda sem saber exatamente onde está.

- Que quarto é esse?

- Que cama é essa?

Você se espanta com sua nudez. Se espanta com a nudez ao lado. Aquela grande massa envolta em pele branca. Por mais cruel que seja é impossivel não pensar num grande mamiféro marinho como nos documentários da TV á cabo. É ela. você sabe quem é. A dor de cabeça, as náuseas. Tudo isso é muito fácil. Você lembra de todas aquelas piadas e anedotas sobre beber de mais e acordar numa cama com uma surpresa.

- Pelo menos não é um traveco.

Bom saber que mesmo embriagado você tem seus limites. E não é uma desconhecida. Você sabe bem que é. Começam os flashs da noite de ontem. A saída do trabalho: o primeiro bar, chopinho, frango a passarinho; o segundo bar, Bhrama garrafa, Linguiça calabreza; o terceiro bar, Itaipava garrafa, amendoim; a barraquinha de cachorro-quente, Latão de Skol, um X-picanha. Ela tava lá também. Insinuando-se. você mantendo a sua frieza, fingindo não perceber. Você é um cara legal, não quer deixar na cara que você não quer nada com ela, é uma menina legal, merece um cara legal, talvez não o tenha nunca. Mas o álcool desce sorrateiro, muda seus conceitos, seus princípios, sua moral.

É quando a solidão constante e a libido há muito atrasada começam a falar mais alto. Não vai fazer essa cena na frente de ninguém. Entre isso e essa manhã dolorosa, com essa visão estarrecedora, apenas um flash de um beijo sem vergonha no taxi.

Ela acorda e olha para você sorrindo. Você sorri de volta.

- Fiz Merda.

Ela avança em sua direção e te beija. Agora é tarde, não dá mais se pra se arrepender. você é um cara legal, não pode demonstrar o aumento das náuseas, deixa fluir, e vai as poucos assumindo seu papel de homem.

"Verás que um filho teu não foge à luta"

Tá no hino nacional, por menos patriota que seja você faz seu papel de Brasileiro.

É uma cena dantesca, não vamos entrar aqui em pormenores. Quem já teve uma ressaca sabe do que estou falando.

Você monta, se equilibra, é como colocar uma bola em cima de outra, a de cima bem menor que a primeira, uma bola murcha. Você sustenta seu corpo nos próprios braços, como se fosse fazer uma flexão, fecha os olhos e usa a criatividade, mas por um momento você abre e enxerga aquele umbigo gigante, do tamanho de um pires talvez, mas com certeza mais fundo, te faz lembrar um documentário sobre buracos negros que você viu na semana anterior. O Vômito quase vem. Você sai de cima, por sorte ja tinha concluído sua parte. Você vira de lado e se masturba, fingindo estar utilizando seu método de contracepção, se concentra e consegue expelir umas poucas gotas no lençol. Acabou.

Nem tanto. Voce vira pra ela e vê aquele enorme sorriso. Você é um cara legal. Faz sua parte. Sorri de volta, dá um beijo apaixonado, e levanta pra ir ao banheiro.

Dá uma mijada longa e barulhenta. Toma um banho gelado. Você sabe que não vai se limpar tão rápido.

Você volta ao quarto. Ela ja está quase dormindo de novo. Você se despede carinhosmente, procura suas calças, sua blusa, suas meias, seus sapatos, faz a contagem de tudo que você trouxe nos bolsos, você não quer esquecer nada. Sem provas. Sem crime. Você sabe que não é assim, a principal testemunha, juiz e réu desse julgamento é você mesmo. Culpado.

Na esquina você para no bar. Pede uma coca-cola. Garrafa. 300 ml. Tira 4 dipironas do bolso e bebe com o refrigerante.

Se isso fosse um dicionário esse seria meu verbete para ressaca.

A Saga do Homem-morcego no. 1

Em algum universo paralelo - de um paralelismo impensável, mas tão possível como qualquer desses que figuram no desconhecimento recíproco de retas que não se cruzam jamais - onde algo menos que alguma imaginação sórdida e insensata não seria capaz de inventá-lo, existe uma cena muito particular que a nós, que nos fundamos cepticamente em nosso próprio e estreito universo, parece absurdamente engraçada. Mas, em verdade, é a tragédia quem melhor a nomeia. Pois eis que o Batman (sim, o homem-morcego herói e burguês tão bem conhecido) por um problema qualquer no motor de seu Batmóvel e na dificuldade de reposição das peças de tão elaborada engenharia, esperava numa fria madrugada na Central do Brasil o ônibus 565 – Lapa-Gotham City.

Batia o pé seguidamente numa ansiedade irônica, queria chegar logo em casa.. digo, na Batcaverna. Olhava seguidamente em seu relógio que, não fosse o disparate daquele objeto servir propósitos tão variados como o de escalar prédios e paralisar criminosos, muito irritado estaria com ele o próprio Batman, já que aquela complexa ciência contida em uma pequena pulseira fazia de quase tudo, mas não dava as horas como ali se pedia. Mas não era por estar atrasado para algum compromisso marcado que sua mente ansiava, era o desconforto da demora quando aquele mauricinho fantasiado nunca antes havia pego um ônibus. Ora, eram já lá pelas 4 da madrugada, os bandidos todos já estavam de volta as suas casas (pois apesar do que se diga em contrário, criminosos também dormem) e esse poço de físicas virtudes que é nosso comprometido herói, como todos já devem saber, pelo auspício de uma técnica brilhante aprendida com sabe-se lá quem, só necessita de alguns poucos minutos de sono. Mas ainda que durma de cabeça pra baixo, mais absurdo que isso certamente é pensar que ele esperava o ônibus na Central do Brasil e que o motorista de algum ônibus, desses capengas que passam por lá, saiba o caminho e siga o rumo da tal Gotham City.

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A parte mais comovente da história – e a única que importa realmente, diga-se de passagem - é que a certa altura, já tomado pelo frenesi do desconforto da espera (já nem medo nem frio o poderiam atingir – um porque tinha ele o famoso cinto de utilidades capaz de deter com perícia inescusável qualquer “indelicado cidadão”, o outro porque seu uniforme que cobre dos pés a cabeça é feito de tecido singular a prova de frio, de fogo e que não mancha com vinho), percebeu a trágica irrelevância de sua atuação como herói. Assaltado por uma espécie de culpa pequeno burguesa, Batman se viu desolado ao tomar consciência do fato de que enquanto ele gasta seus milhões de dólares em jatos turbinados e capas de cetim a prova de balas, milhares de pessoas partilham desesperançosas a inoperância do sistema público de transporte coletivo. Pensava em seus grandes inimigos e nas dificuldades que um Coringa, por exemplo, passara ao encostar-se por horas num desses pontos mal cheirosos onde se espera por um ônibus que leve aos subúrbios empobrecidos de Gotham. Pois convenhamos (e naquele minuto também o Batman conveio), o pobre Coringa, cruel, delinqüente e enlouquecido que seja, não teve como o próprio Batman as oportunidades das classes mais ricas daquela cidade. Ora, ora, ora! O Batman, aquele mesmo que pensava salvar o mundo quando impedia que um duas caras explodisse uma bomba, ou quando adivinhava uma xarada nebulosa de homônimo vilão, percebia agora que nunca considerou distribuir sua riqueza entre os pobres. Não da forma como antes pensava fazê-lo, nas pesquisas absurdas de sua empresa que quase nunca faziam mais que inventivas e letais carabinas ou, de modo inverso a proposta, armava, com sombrios poderes, novos e perigosos inimigos. “Não! Não dessa forma!” – Pensava ele agora e invejava um precursor seu chamado Robin Hood. A ironia dessa inveja, a saber que se tratava de um herói bastante mais humanista que ele próprio Batman, residia na estranha coincidência de seu fiel escudeiro (tal qual Sancho Pança) - criatura tão subestimada apesar do qualificativo prodígio – tratar-se, no nome, de um cognato daquele herói de contos medievais. Pois bem! Uma criança, como era Robin, não deveria arriscar a vida em tão pretensiosa labuta, menos ainda sob a porfia exploratória de burguês egocêntrico. Deveria estar na escola, estudando como os de sua idade para que o exemplo da falta de oportunidade de um Coringa não lhe fosse parâmetro. Pelo menos assim pensava naquele instante o homem-morcego angustiado, do alto de uma moralidade que só pode emergir em momentos de desconforto.

Mas foi apenas até cessar o desconforto que se teve ele acometido por esse tipo de pensamento – “Radical de esquerda”, segundo ele próprio apressava-se em rotular. Um porque o ônibus logo depois chegara. Dois porque vinha vazio - àquela hora os moradores de Gotham já estavam em casa, dormindo e de portas bem trancadas, já que, apesar do Herói que ostentam, sabem tratar-se de lugar bastante violento. Violento, aliás, como a noturna cidade do Rio de Janeiro em que Batman esperava sua condução – sem medo, mas com olhos bem abertos por baixo da mascara de borracha. E, tão absurdo quanto a história, é uma outra em que se veria o famigerado Pingüim com suas delirantes tramóias ali nas redondezas da Central, Cinelândia e afins. Sabe-se que é por lá que residem os mais valentes “vilões”, e mesmo um mamífero (apesar da alcunha) como aquele recusaria atrever-se a armar lá por aquelas bandas.

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Sentado num banco macio de ônibus a caminho de casa, Batman voltaria a pensar nas suas aventuras homéricas e em suas épicas de lutas armadas. O ônibus parou e o herói encapado subiu de peito estufado, deu boa noite ao motorista e de cara com o trocador descobriu o porquê daquela comédia ter sido anunciada, tão precocemente, como tragédia. E foi o desfecho que teve: Pôs a mão naquele letrado cinto (visto que a armadura não tinha bolsos) e percebeu que havia esquecido a carteira, sentindo, pela primeira vez, a absoluta impotência daquele bumerangue que lhe veio à mão.