quarta-feira, 19 de outubro de 2011

A casa de Heráclito

Aquele pó louco na manhã confusa fazia sua garganta esmerilhar-se dentro do pescoço. O banheiro estava em obras. A poeira que ele engasgava era um pedaço da antiga casa pulverizado pela força bruta de um martelo sob a mão de um impiedoso capataz. Levantara e fora até a cozinha em busca de um copo que consigo trouxesse água e alguma paz às paredes laringíneas de sua frágil goela. Mas também os copos se ressentiam de uma espessa camada daquele pó que antes houvera sido a parede que separava o banheiro de um hall que corria até a sala. Levou o copo à pia e abriu a torneira. Lavou-se o copo sozinho com a água que descia e enxugou-se por um abrupto saculejo, como numa nota da beleza prática e engenho que na atribuição de mérito à gravidade, fazia separar gotas de água de vidro e, onde antes a poeira se encostava, descansava agora apenas um estreito véu de umidade que calava também, com suma delicadeza, a aridez e aspereza da mão que segurava. Levou o copo ao filtro e encheu-o até quase a boca. Derramou pela garganta abaixo, fazendo varrer, até onde se tinha alcance, aquelas pequeníssimas particulas de matéria dura. E pouco a pouco as obras avançaram. Reformou a sala, os quartos e a cozinha, bebendo cada cômodo nas manhãs que se seguiam. Mas a casa, se reerguendo, permanecia.

Disse Heráclito que um rio que corre nunca é o mesmo, mas jamais ousou ele dar nomes distintos a cada um desses que passou a sua frente pelo mesmo caminho.

terça-feira, 11 de outubro de 2011

Carta ao amigo.

Aterroriza-me ler a tua crônica, talvez porque a vida que dela emana seja a mesma que em mim espreita.E embora eu sinta por você o silencioso agudo do insatisfeito, no qual a triste figura de um não-herói se deita, não sou o demagogo que lamenta pelo outro o tom obtuso do seu imperfeito. Preocupa-me mais que qualquer nota sua, a derrota semi-nua de minha quão patética tentativa de alcançar êxito. São essas as minhas vãs moléstias, mortificantes a cada pensamento baixo de que eu não deveria ser tão egoísta ou que, apesar da menor conquista, eu não chego ao cume e nem mesmo o vejo, pois o mais sutil desejo já me encobre essa tão cansada vista. Ah, caro amigo! Há muito tempo já somos capazes de entrever o surdo pesar dessa custosa rotineira."Foda-se a poesia", você me diz com graça. A que faz rir, no entanto, não é a graça santa do rebelde encanto."Foda-se também essa!" Incisivo e direto como, assim, supõe o desiludido obreiro. Faremos tudo do jeito pouco nobre que compõe nossas pouco honrosas novas aspirações, sem mais o assumido desfastio daquelas velhas ingênuas canções. Só a nossa raça escrota, um tanto burguesa, e se cheia de éticas, cheia mais ainda de novas considerações. Pois sabemos, malgrado o emergente mérito que atribuimos a esse conhecimento, que não somos novos. Somos, sim, os velhos usos de nós mesmos, que nós mesmos renovamos como quem renova as cordas de um violão quebrado. Mas, enfim, percebemos ser o claustro dessa dissonância a metáfora crônica de uma necessária mudança. Deveríamos ter crescido. Envelhescemos apenas.

Agora, resta o desgaste que nós fazemos regar como quem trata uma violácea aldracema que cresce junto a pouca luminosidade no jardim improvisado no apartamento empoeirado, entre uma garrafa de cerveja vazia e a sujeira de três dias passados. Resta também esse fundo raso de uma singela poesia que entrecortamos como a deliciosa torta de limão que à geladeira decompõe-se através dos dias, pois, sozinho que estamos, só comemos pedaço a pedaço. São pequenas colheiradas que nos fazem reis e não duram mais que alguns curtos minutos. Voltamos a desgraça da boca vazia tão logo a tevê nos anuncia. Anuncia-nos, em todo caso, que jamais seremos por ela anunciados. Chamamos então o cotidiano de prosaico. Fica mais fácil, assim, ler o assombroso e megalomaníaco que nos estampa a prateleira sem acharmo-nos, contudo, criaturas meras e insignificantes. Comparamos às deles, nossas vírgulas, nossos pontos. E, ainda que cheguemos a patente conclusão de que diferem apenas pelo empenho dos inalcançáveis anos, que nos remediam a ignorância com novas e vulgares peças; com frases súbitas na nova arte dos segundos e da pressa, são, ainda assim, vírgulas e pontos mais brilhantes que os nossos mais mirabolantes textos. Tem as pausas e os acentos mais capazes de introduzir-nos ao júbilo que as sintaxes mais profundas e desesperadas que possamos dar ao apelo de uma tão ignorante alma (como também é a nossa). Então, "foda-se". Diz-nos o que, entre nós mortais, mais se apega a imagem que desenha o espelho. Pois pior que entre os rosas parecer vermelho é pintar a cor mistral de um poeta eleito, num retrato de um pano sujo ou de uma suja flanela feito.