quinta-feira, 26 de novembro de 2009

Trópico de Capricórnio

Cheguei cedo demais. Vi-me obrigado a sentar num banco e esperar naquela sumptuosa praça onde a magnificência do tamanho e o apelo dos ornamentos pedia que o bairro à volta fosse um nobre baixo. E era. Não importa, que fosse paris, seria ainda assim uma praça fedorenta. Resta esse toque de molesto às praças, a saber, o expedito irrevogável de que as praças fedem. Como haveria de ser diferente? Veja, trata-se de um lugar público. Mas não como um museu ou biblioteca, em cujos portões elevados e olhos vigilantes dos cidadãos mais rigorosos faz-se exigência e coibição à intrusão perniciosa de um indigente que se faça passar por intelectual mendigo enquanto arruma seu colchão em papelão grosseiro em frente a uma delicada obra de arte ou num corredor onde morassem grandes clássicos da literatura medieval, por exemplo. Não, as praças são públicas porque seus bancos dispõe-se de forma indulta e acolhedora tanto aos bem tratados traseiros da gente que ali a volta habita uma impecável residência, quanto aos lençóis sujos e mal cheirosos daqueles que, por falta da cara espécie, fazem dali por tantas noites abrigo. E, não obstante àquela hora eu não pudesse ver os tais desvalidos que a noite ali moravam (dormiam, urinavam, comiam, transavam e, talvez, até defecassem) eu podia sentir o cheiro, como numa nota derradeira sobre o contraste localizado entre a imagem que eu via e o odor que ela encerrava. Isso porque a manhã já trazia os seus raios mais violentos de sol e a um que ali se largasse indefeso e desprotegido, o amargo calor trataria de castigar com severa insistência, fazendo-me crer que os bem aventurados inquilinos daquele espaço a céu aberto, esperariam pela noite a cair para retornar ao leito do qual eram, em todo caso, a quinta-essência, qual seja aquela de que se destila um perfume.

Mas era uma praça, sem dúvida, majestosa. Majestosa era o adjetivo adequado àquele arranjo de paisagem e arquitetura. À frente do banco sobre o qual eu me debruçava em um sóbrio e degenerado Henri Miller, erguia-se um elegante chafariz. E tal qual a acre personalidade daquele que eu tinha em mãos e me fazia lendo, pus-me uma questão que há um momento me sobreveio como o palpitar agudo de um nojo. E tanto menos, naquele momento, o mal cheiro seria o precipitador de meu vômito, caso viesse mesmo a vomitar. Não vomitei, mas explico aqui o porque de tal insinuação. Vá lá que os chafarizes tenham sua beleza tangenciada pela imponência e conjunto que envolvem, o caso é que bem mais provável que isso era o fato de que desde muito tempo os nobres que os construíam haviam esquecido de explicar às novas gerações a serventia e a moral daqueles ataviados cuspidores de água. Mas, ainda que a nova geração - essa que muitas vezes recorria ao apelo às preocupações com os recursos naturais do "planeta" - jamais viesse a entender o orgulho e a necessidade daqueles fidalgos chafarizes, nenhuma retaliação se fazia aparente e nem nunca se fez. É provável que aos olhos dos mais exigentes ativistas, aquele desperdício passasse batido, enquanto, quem sabe, um notável ecologista passeasse desalarmado com seu cachorro Astolfo por entre os jardins refrescantes daquela praça.

Eis a tradição em que se encosta esse pretensioso ornamento, o chafariz: Atávico como um obsoleto instrumento, que agora serve apenas ao uso saudosista e epigráfico dos descedentes de seu antigo senhor, o chafariz faz reverência a dinastia do rei; figura no centro do espaço, como em menção a importância do símbolo que encerra e expõe uma contradição muito patente aos de espírito mais crítico e de coerência mais conservada - que apesar de toda pompa da qual a classe burguesa ainda se cerca, os reis já deviam há muito terem deixado de existir. Ora lá, que as coroas se tenham transformado em cartolas, e os dourados mantos em ternos sofisticados, e talvez o fato de que nunca haveremos de expurgar totalmente o problema das classes, mas nada disso redime aquela cena anacrônica e patética em que se vê o homem sentado em poltrona de ouro maciço ostentanto sobre a caixola o galardão injustificado ornado em ouro e nada menos que alguns diamantes.

E, no entanto, temos notícia de que na Inglaterra, pioneira e propulsora da primeira e mais impactante revolução industrial, ainda se ostenta com vasta arrogância a onerosa superfluidade de uma família real. Sei até que por um breve período, à força de umas quantas poderosas armas teve-se lá o governo republicano daquele tal Oliver Cromwell, mas ao rigor dessa atual em que há uma velha senhora que sai às ruas aclamada e é chamada “rainha” apenas por haver nascido, faço-me obrigado a acreditar que esses ingleses são mesmo uns idiotas. E que me perdoem os Beatles e os Rolling Stones, mas não posso tomar de todo aquele que faz corte a um tal soberano, que não seja esse um completo idiota.

Mas isso não vem ao caso. E até entendo que hajam por aquelas bandas chafarizes desse porte ou mais, afinal, a história tem lá sua ordem de dominados e dominadores, mas ainda repugno certos arcaísmos como aquele que, no centro da praça, fazia menção a um gosto de classe de pelo menos um século passado.

Ao lado da agua cristalina e de virtuosas formas daquela fonte, pessoas sem alguma expressão tragavam um ócio empoeirado junto com aquele cheiro degradante da deliberada praça; que carregava, ainda, no nome, um santo a mais pra sua inegável nobre linhagem. Se me fosse permitido comparar, eu diria que sentar-se num banco naquele lugar e observar os gestos e as frases, dos homens e das fontes - que ali se igualavam -, era como mirar a estampa do mérito de uma inteira história de dominação ardil e à força na face dos imbecis bisnetos dessa gente sem alma que levantara castelos; bisnetos esses que, agora, passados os tempos da guerra em que tiveram alçadas suas riquezas, passeavam pela alameda da praça com seu discurso pastoso e pretensamente humanista em que “liberdade” e “democracia” se distanciavam da prática usurária de seus articuladores e resumiam-se hipocritamente em nomes como “bem comum” e “justiça”. Eu teria cuspido nessa gente se minha saliva já não tivesse secado com o sol quente e a poeira do lugar. Como não cuspi, bastou-me o silêncio para constatar que foi só isso que fiz: pensar. E isso apenas. Bastaria dizer que o ócio que nessas praças nos invade é como a morte que chega com o inverno, acompanhada da eterna melancolia do invalido ou da desgostosa meditação do vagabundo. E No fim das contas, eu mesmo com o livro aberto nada li que não fosse a vida em si mesma, e com a mente desenganda que estava quase perdi a hora. A entrevista era às 2 e o local a 10 minutos dali.

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