domingo, 24 de janeiro de 2010

És um senhor tão bonito...

23:47

- Branco. Maldita cor!

Faz semanas desde a última vez que escrevi algo que não tenha destinado à lixeira ou apagado sem dó. Sei lá que são comuns essas crises de inspiração entre os escritores do gênero, eu mesmo venho passado por crise ou outra sem precisar recorrer ao expediente de uma bala nas têmporas, mas desta vez é diferente. O Sr. Morelli acaba de me ligar do escritório central para lembrar-me que o prazo expira amanhã e ronda-me os nervos a trágica sensação de que nunca mais conseguirei escrever uma história.

A editora é pequena, mas costuma se orgulhar da fama que tem, de que lança novos escritores todo ano. Lancei meu primeiro livro (e único, até então) em agosto do ano passado. Não fosse a iniciativa do Sr. Sálvio Morelli, aquelas páginas soltas ainda estariam atravancando o movimento de papel, aqui, nas minhas prateleiras. O livro não vendeu bem, mas isso já era esperado. O caso é que fiquei comprometido de entregar até a data de amanhã um opúsculo, coisa de cinco mil palavras, para compor uma coletânea que a editora lança todos os anos, exibindo novos trabalhos dos autores que tenham publicado no ano anterior.

Até agora não tenho nada. Comecei inúmeras vezes, mas em nenhuma delas vislumbrei valer a pena continuar. A verdade é que tudo que venho escrevendo já desde há algum tempo me parece terrível. Nem ao menos nos nomes consigo acertar. Soam-me todos falsos ou exageradamente ordinários. Eu mesmo não culparia um gênio como Göethe se os primeiros nomes do jovem Wether fossem, como os seus próprios, Johann Wolfgang; ou, ainda, se houvesse dado o nome de Fausto a todos os seus personagens. Dar nomes, em verdade, sempre me pareceu difícil, mas agora, tampouco, consigo imaginá-los anônimos. Enfim, nomes são sempre nomes. E ainda que os tivesse muito faltaria a constituir uma história. Afinal, nunca um pai deixou de dar nomes aos próprios filhos sob a desculpa patética da falta de inspiração. Os nomes se arranjam, ainda que à força, se arranjam...

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23:49

O Sr. Morelli é um bom homem e lhe sou imensamente grato pelo que tem feito por mim. Mas é, ainda assim, um homem de negócios. Trabalha com resultados. Deve estar se lixando pouco para crises de inspiração, ainda mais as minhas (é sabido que os escritores por profissão só se podem dar ao luxo de uma crise de inspiração após, ao menos, um primeiro best seller). Amanhã mesmo mandará um empregado qualquer tomar-me o texto em mãos. Se não o tiver mandará arrancar-me – à força – as vísceras, o coração e talvez um rim. Não pudesse ser pior, a essa angústia se acaba sempre seguindo uma violenta orgia alcoólica, mas isso é coisa de que eu não quero falar a respeito. Tenho por certo que um rim fará mesmo muita falta. Já as vísceras e o coração não têm serventia há algum tempo.

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9:42

Acordei há pouco. São nove e quarenta da manhã, mas ninguém veio, ainda, à minha porta buscar o maldito texto - texto que não existe, é claro. Estou considerando entregar um relatório das minhas atividades de escritor em crise de inspiração. Algo como: “Enquanto as idéias não vinham esfregava uma lapiseira sobre o papel em branco em uma página de fundo de um livro largado na estante. Acho que era um livro de auto-ajuda, não tenho certeza, já não tinha a menor paciência para letrinhas miúdas àquela altura.” Mas não. O Sr. Morelli não é afeito a experimentalismos. Eu ainda lhe poderia argumentar que este tipo de escrita por encomenda se assemelhava um tanto com o aspecto dos relatórios que profissionais de áreas menos criativas são obrigados a entregar todos os meses, às vezes todas as semanas. Mas o Sr. Morelli não tem sensibilidade para metáforas ou simbolismos, menos ainda um humor requintado. Homens de negócios não costumam ter senso de humor, essa é a verdade. Estou, então, de mãos vazias, como bem se vê.

Já até posso imaginar a minha cara lavada ao abrir a porta ao mandado da editora, dizendo-lhe que espere cinco minutos enquanto procuro uma versão corrigida do dito “trabalho” em meio à nebulosa bagunça que é meu quarto. Ou ainda a vergonha estampada quando revele ao suposto encarregado que nada tenho a lhe entregar, pedindo que volte outro dia, como diz o homem educado quando não tem ou não quer dar uma esmola, ou um pão, a um que lhe bate a porta.

É-me fácil imaginar possíveis futuros nos quais sou o derrotado escritor sem palavras, mas uma simples história, ficçãozinha qualquer, isso não vêm às idéias nem por um decreto. Maldita profissão! Geniozinho bastardo esse seu!

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10:20

O dia se alonga minuto após minuto e como se o tempo já não me fosse raro, tornam-se cada vez mais improdutivas, conforme se estendem as horas. Vejo, assim, que o problema não é o tempo - e não é mesmo. Ora, ora, que alívio – desse modo tenho a vida inteira pra ruminar minha absoluta falta de criatividade ou, então, morro logo em dez minutos como prática de covardia bem executada. O Sr. Morelli não teria a história escrita, mas poderia quiçá escrever uma sobre essa inesperada fatalidade. Não me daria crédito de autor, isso é fato. Mas, certamente, lhe ajudaria vender ao menos alguns exemplares de meu livro, que estão até hoje a ganhar poeira nas prateleiras daquela editora.


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10:33

Senso de humor! Trago ainda algum em meio a essa angustiante espera de minha degola. E uma garrafa de vodka, também. “Devias beber bourbon”, disse-me certa vez um amigo, explicando-me que era essa a “bebida dos grandes escritores”. Não considerei o caso, pois nunca parei, de fato, a tentar descobrir que bebidas embriagam os grandes escritores. Também porque não me apetece Bourbon. Não importa. Isso tampouco me dá uma história. Pois se bastasse apenas Bourbon para erguer grandes escritores, nossos clássicos da literatura seriam tão numerosos quanto às vítimas da cirrose que invadem nossos hospitais todos os dias.

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18:45

Ando de um lado a outro, da sala ao quarto, do quarto ao banheiro. Lavo as mãos obcecadamente por mania ou nervosismo, ou mesmo por superstição, não sei ao certo.
Os olhos me doem e a cabeça. É a ressaca. – Maldita ressaca! – Não tenho muito que fazer agora, senão esperar. - Chegaram! Seja o que Deus quiser!

***
19:00

As onze da matina meus olhos latejavam - queriam sair pelas órbitas. Eu não tinha absolutamente nada sobre o papel. Meu tempo estava se esgotando, e eu insistia em acreditar que ainda era possível escrever qualquer coisa. Isso porque me restavam umas poucas horas (supondo que, se eu não sabia ao certo a hora em que viriam, devia dar-me o beneficio da dúvida, atribuindo a este tempo incógnito o lenitivo de “umas poucas horas”) e, ainda que eu escrevesse uma crônica barata, umas poucas páginas seriam o suficiente pra ser eu considerado um escritor indigno, um literato sem criatividade ou, simplesmente, um mero representante da mediocridade que assola nossa época de raros talentos. Mas nunca o trabalhador sem caráter que se poupa ao esforço por comodidade ou indiferença – pois, de fato, esse eu não sou. Também por isso decidi sair à praça.


***

19:01

Um tanto atordoado pelo calor da manhã, vasculhei a praça à vista de um lugar calmo, um banco vazio ou qualquer pedaço de chão que me prometesse a dádiva da inspiração instantânea. Algo como uma fonte de onde as histórias jorrassem e fosse preciso apenas embolsar uma ou outra. Na falta de uma dessas, sentei-me num banco próximo ao jardim principal, donde um grande círculo gramado continha umas quantas arvores e, à volta, um calçado de paralelepípedos oferecia o caminho sereno aos flaneurs de plantão.

Papel e caneta a mão e era isso. Apenas isso. Nada que justificasse a caneta o passeio por sobre a superfície branca. Rabisquei uns desenhos abstratos e dali em meia hora já estava me pondo a desenhar a paisagem num esforço representativo que era quase nulo, visto que se nem desenhista eu era, menos ainda dispunha da calma necessária ao pintor de paisagens que se entrega aquela visão como se ele próprio não existisse. Eu, em todo caso, existia. E era por existir mesmo que todas as minhas preocupações se faziam atuantes. Dissimulei aquele esboço paisagístico rabiscando violentamente com a caneta por cima das arvores tortas que eu desenhara na folha. Botei de lado papel e caneta e me entreguei aquele imenso vazio que eu simbolizava tão bem no texto que tinha até o momento.

Sem que eu percebesse um tipo raro havia sentado ao meu lado naquele banco desconfortável (era mesmo desconfortável, devo dizer) e se punha lendo um livro de páginas amareladas, da capa dura e caindo aos pedaços, mas que eu não pude identificar por conta das letras miúdas (também, eu devo considerar que não enxergo lá essas coisas). Um senhor alto e magro. Bastante magro, mas cuja barba avolumava-se por sob o queixo e fazia compor uma certa excentricidade condizente com os trajes, de uma elegância aristocrática embora surrados e um tanto encardidos, daquele senhor.

Percebendo que o fitava o senhor arrancou os olhos das paginas e os direcionou a mim. Esbocei um sorriso sem graça, amarelo (não como as páginas do livro, um amarelo metafórico, em todo caso, já que eu os escovava todos os dias). E o senhor voltou serenamente as suas páginas secretas como se eu nem mesmo estivesse ali. Pensei, então, no texto que o devia absorver; algo profundamente instigante - devia ser - para tomar-lhe a atenção com tanta eficácia. E tentava novamente reconhecer uma frase ou mesmo desvendar um autor ou um título, procurando por sobre o braço direito do homem alguma palavra que me revelasse aquela obra. O senhor, então, deixou escapar os olhos das páginas amareladas e, mais uma vez, direcionou-os a mim, dessa vez com uma ausente severidade como se me repreendesse a curiosidade, mas ao mesmo tempo indulgente, sem ostentar o papel de uma figura opressora. E tornou os olhos ao livro.

- Lendo?! – perguntei, sem jeito, ao senhor.

A resposta me veio sem uma palavra sequer, precisou apenas consentir com as sobrancelhas ao alto e um leve acenar da cabeça.

Eu o invejava profundamente posto que se largasse tão despreocupadamente a uma história já pronta diante de si, enquanto eu permanecia perdido atrás (ou ao lado) de uma história desconhecida, “inteiramente” incompleta e “possivelmente” inexistente. E murmurei comigo mesmo: “Sorte a sua.” Como em resposta ao aceno com o qual o senhor confirmara laconicamente a obviedade retórica e desnecessária da minha pergunta. Tinha por certo que aquelas palavras não haviam passado de puro pensamento quando o senhor evadiu-se por completo de seu livro e veio a mim com aquela pergunta um tanto jocosa:

Não sabes ler?! – Surpreendeu-me, ali, determinado humor que eu jamais atribuiria ao velho, não tivesse eu mesmo testemunhado. Respondi logo, sem a mesma sutileza do homem:

- Claro que sei! – Eu realmente não tinha a presença de espírito que naquele momento se pedia, mas meu interlocutor sobrava com a sua. Disse-me:

- Então a sorte é sua também. Aliás, sorte de todos aqueles que dispõem de olhos e sabem ler.

- Não é isso. – Ponderei ao velho. - É que me falta tempo. Se o tivesse agora sobrando, estaria, de certo, como o senhor. Debruçado a um livro, possivelmente com as páginas já amareladas como as do seu. – E ele, novamente, exibiu aquele tácito humor, de sutiliza irrepreensível:

- Ora, o velho aqui sou eu. E, ainda assim, tenho tempo para os livros e as praças e toda essa atividade humaníssima que alguns preferem chamar a ócio. Tu que és jovem, então, devias dispor de todo tempo do mundo. Isso se é mesmo que o mundo contém essa quantidade tão significativa de tempo, que valha enunciar com tanto entusiasmo.

Ri, então, com o despojamento do homem. Era mesmo uma criatura formidável. O tom doce da voz era de uma beleza inigualável. O discurso era impecável em execução e conteúdo, e trazia, na forma, o carisma de uma juventude eternizada. No conteúdo, a sabedoria de mil anos vividos. “Absolutamente perfeito”, encantei-me, imediatamente, por aquele ancião. E, ainda sorrindo, prossegui com a conversa:

- É mesmo de se duvidar. Confesso que “todo tempo do mundo” me parece também demasiado abstrato e, a mim também, não me deixa tão desejoso. Me agradaria mesmo se pudéssemos criá-lo. Não acha?! Criasse eu o tempo, como criasse o espaço em perspectiva apenas usando linhas de fuga, ora... Leria todos os livros da terra e ainda mais um pouco. Ainda hoje, me seria muito útil criar um pouco de tempo.

- Se pudesse ser criado, meu caro, aí é que não teria utilidade alguma. – Disse o velho, cheio de sua própria razão. E continuou:

- Veja só. Deus inventou os homens e estes não tem utilidade nenhuma pra ele. Poder-se-ia dizer, de outro modo, que os homens criaram deus. Mas dizem isso apenas aqueles que já não vêem utilidade nenhuma também para esse. Afinal, que utilidade teria mesmo um Deus inventado?! Meu jovem! Criasses tu o tempo, e o tempo te seria tão inútil quanto é a vida para o homem em estado vegetativo. Ficarias perdido em teu infinito particular. Não há tanta beleza nisso, se é mesmo que pensas assim.

Eu não pude contestar o argumento do velho, mas precisei ponderar visto que se tratava da condição mesma de meu ofício como escritor.

- Veja o senhor! Eu, não me posso dar ao luxo desse tipo de pensamento, já que “criar” é todo o sentido de meu trabalho e, devo dizer também, de minha vida. Sou escritor, meu caro, e considero-me escritor não só como honra de ofício. Escrever é a síndrome de minha obstinação nesse mundo. Não fosse isso – criar e recriar – eu consideraria insuportavelmente difícil viver. Como já nos últimos meses tenho considerado. Sei que muitos duvidam que sejam mesmo necessárias as ficções, mas creio nelas e em sua necessidade, porque eu mesmo as tenho como necessárias a minha vida.

- Meu jovem! – intercedeu o velho com uma voz amável e um tom de reprovação. – Não vos disse jamais que as ficções sejam desnecessárias. De modo algum eu vos diria uma coisa destas. Primeiro, porque eu falava de utilidade e, realmente, entendo que, a quem cria, a criatura perde todo valor utilitário. Pois desse mérito, não pode figurar seu valor senão por sua própria condição de objeto criado. Quero dizer, a quem cria vale todo o esforço por criar e isso só é justificativa suficiente para essa sua criatura que nasce. Mais ainda que uma qualquer possível utilidade que a ela se venha supor. E se pudésseis mesmo criar o tempo, que sentido teria para vós esse mundo tão adequado ao tempo de que ele mesmo - o próprio mundo - dispõe? Mas, como escritor que sois, bem entendo que tanto vos deis ao ofício da criação. Aliás, chego mesmo a estranhar que um homem que julga insuficiente o tempo que tem e que se diz tão apaixonado pelo trabalho de escritor, esteja perdido, aqui, nessa praça ociosa, a que se entregam apenas os que se deixam pela vida a passeio.

Com a argumentação digna de um filósofo, o senhor me arrancou daquele dialogo despropositado e me jogou de volta a vida. Aquela vida áspera e angustiante que eu trazia aos ombros, junto com a desculpa trágica de minha falta de inspiração. Lembrei-me, nesse momento que o tempo – esse monumento abstrato ao qual nos referíamos – tinha definições bem mais precisas no mundo prático em que minha desgraça se desenrolava. Vasculhei ao entorno da praça girando o pescoço, procurando um relógio a vista que me pudesse indicar a hora; precisamente, como na prática métrica em que as criaturas de Deus faziam do tempo suas próprias criaturas. E, se aquele tempo específico me era inútil, não era simplesmente por haver sido criado. O caso é que marcavam já quinze minutos para o término do horário comercial - horário que eu supunha limítrofe para entrega do meu improvável trabalho. Improvável, em todo caso, muito menos pelo tempo que escoava que pela falta total de uma idéia sobre a qual escrever.

Levei, então, o rosto às mãos e não consegui esconder o desespero contido de minha existência. Tornei novamente a cabeça ao alto e olhei para aquele sábio senhor que me fizera companhia nesses minutos finais de minha derrota. Disse-lhe:

- Estou arruinado. Não devo mais ter sequer um motivo para esta vida. – O sábio, então, manifestou-se apenas com compaixão aos olhos. Pois se eu ainda parecia sóbrio e calmo, era porque dessa maneira particular é que se manifestava o meu desespero. A fleuma do escritor era a armadura subcutânea que minha doença vestia. Mas soube o velho do que se tratava assim que olhou em meus olhos. Era mesmo uma criatura iluminada. Certamente, também criador de sua própria iluminação. E enquanto eu lamentava por não ser forte ou apto suficiente para essa vida mundana cheia de impedimentos, ele estacionava aquele rosto plácido e inalterado diante de mim e com um leve acenar de cabeça tentava me fazer compreender que se tratava de um tolo lamento.

Estarrecia-me, no entanto, essa equanimidade de alma e conduta que aquele senhor exalava. Logo ele, que, provavelmente, vivera uma vida cheia de privações; ele que (a julgar por seus trajes) soubera como nenhum outro a impiedade do mundo que me inconsolava, mas que a ele parecia perfeito como a morte parece ao coveiro.

E eu, despindo-me da calma, da fleuma e de toda razão de escritor, praguejei. E em troca dos meus pecados ofereci ao deus (que eu mesmo negava) um aceno de reprovação - um gesto obsceno, devo dizer. Mas como último verso, entreguei-lhe mesmo foram essas palavras, que saíram ao ar:

"Foda-se. Eu desisto de tudo. Não há coisa tão dificil como esta, de se viver dia após outro e nunca chegar ao fim, ter sempre o vazio como premissa. Sou já agora uma fruta seca, sem mais nada a oferecer a esse mundo. Estou farto, cansado e é isto. Deu!"

Essas palavras, d'outro modo, não chegaram ao deus imanente ao qual minhas queixas se dirigiam. Não só porque não houvesse um - e, de fato, não havia - mas porque antes disso, aquele probo homem absorveu-as sem hesitação e não deixou que passasse mais uma sequer sem a devida resposta. Sinto mesmo que tomou para si a vergonha do deus omisso, esse que não dava retorno e que a nada dava respostas. Sacudiu a cabeça, um tanto comovido com o meu lamento, mas deixou-se perder na serenidade que seu espírito velava antes de me dizer:

- Não há reprovação tão nobre quanto o silêncio e nem queixa mais orientada que a indiferença. Entendo sua maledicência, filho. Mas estás longe da desistência que anuncias. E, afinal, quão dificil pode ser viver se já está tudo dado de antemão. Pois acredite, e falo isso sem acusar-te de ingratidão, já que também não há a quem ser-te grato. O fato é que não há tarefa mais difícil que a de nascer. A todo resto compra-se o ingresso.

Sombreei seus olhos com espanto renovado. Não pude sorrir posto que estivesse por demais comprometido com aquela cena de homem traído e vítima do circunstancial. Mas dei-lhe em troca um suspiro de concórdia, não simplesmente porque concordasse, mas era também essa a minha maneira de mostrar a admiração em que lhe tinha. Era ele o filósofo, ao meu lado. Enquanto eu oferecia apenas os ouvidos (e a estupidez como contraste, é claro); ele me dava o conforto das sábias palavras, as quais dizia em frases concisas e melodiosas, mas também as que implícitas estavam.

Pois era mesmo nascer a mais difícil tarefa. E ele o anunciava como quem contesta ao nada o valor de potência e atribui a cada partícula incompreendida a capacidade do nascimento. Como se a probabilidade existisse antes mesmo do fato e o nascer de uma criatura encerrasse em si o não-nascer de milhares e incontáveis não-criaturas, veladas pelo simples acaso do não nascimento.

Não me tentava fazer sentir-me homem de sorte, visto que ele também de antemão a negasse. Eu era, pois, sob a conjectura daquele discurso, o valoroso ente que penetrara - por mérito próprio - a obscuridade do nada absoluto e atravessara ileso até alcançar a luz de uma consciência tangível. Um mérito duvidoso, confesso. Mas também nas dúvidas havia esse silencioso remir de uma existência latente. Duvidar significava estar vivo e isso aquele senhor me disse em palavras que, em verdade, nunca chegaram a sair de sua boca. Eram também elas criaturas não-existentes que justo eu – o escritor sem história – fazia-as existir, eu mesmo, a partir de uma economia secreta do discurso do velho.

O ancião, nesse momento, mostrou-se a mim transparente. Sorriu-me como quem antecipa o final ao próximo; como quem dá a vida como presente ao outro e a morte, a si próprio, como trocado. Desfez-se, então, da transparência que ainda o vestia - a que até então o acomodava sob minha vista incrédula -, e desapareceu no ar como desaparecem as sombras ao meio dia. E se ele mesmo já não existia, o fundamento de sua razão ontológica permanecia. Se veio ele, das profundezas do inexistente, comunicar-me o que eu de todo já sabia - ou devia saber - restava-me então um questionamento:

"Se eu penso nele, logo ele existe?"

Pois se eu nunca mais cheguei a considerar a morte ou a desistência como solúvel, após aquilo, foi porque estava agora preso a essa particular existência como jamais estivera. E mesmo que as tantas zilhares de não-criaturas (as que não chegaram a nascer) não me pudessem contar a angústia perene de sua ilimitada inexistência, eu poderia contá-las, a cada qual delas, as agruras da vida pungente, ainda que elas não me pudessem ouvir.