sábado, 28 de agosto de 2010

Trompe le main

Mulheres lindas. Tudo que se movimenta no cenário urbano sobre duas lindas coxas. Vestidas a caráter, já que é o próprio cenário quem sugere o texto.

Secretárias, executivas, garçonetes...

Também as meninas. Perfeitamente ajustadas em suas roupinhas de colegial.

Desse modo elas se dispõem ao uso. Desse modo meu desejo as contempla: em plena abertura, ainda que em discreta observação.

Vestidas.

Aliás, eu nem nunca soube de caso algum onde o homem haja-se retirado da batalha após o inimigo despido. É de se supor – concluo – que pouco importa como elas são peladas.

Muito mais atento às silhuetas que ao código genético, meu desejo vai muito além de uma mera atribuição evolutiva, como a vontade de procriar. Meu desejo é desejo, antes de ter nome e antes de ser carne.

Mulheres lindas.

Lindamente vestidas.

Entre os ombros e os calcanhares, algum tecido que lhes caia sobre o corpo e que lhes esconda uma faculdade inata qualquer. Belas tetas ou uma bucetinha bem delineada.

Curvas.

E quando no momento da masturbação as realizo em uma imagem semi-sólida que se põe diante de mim, estão ainda vestidas. Despidas as faço apenas na medida do ajuste para uma penetração adequada e bem imaginada.

A imaginação deve seguir os desígnios da boa representação, assim como a pintura antiga. Parraso, por exemplo, fez de sua pintura o próprio embrulho, a própria imagem de que estava a pintura embrulhada. Ora, aquilo que se esconde também na imaginação é porque não há necessidade alguma de ser revelado.

Mas quem melhor pinta um corpo que se quer deflorado é quem sabe que a imagem transborda por todos os lados. E se algum pássaro bicou, de fato, as perfeitas uvas por Zeuxis pintadas, foi porque o espaço a volta se devia ter, também, muito bem representado.

Já eu tenho a imaginação débil. Por isso, sou obrigado a montar esse roteiro em que as moças são conduzidas sob argumentação razoável até o meu banheiro, onde a imagem tecida ao esforço da memória é situada pelo cenário tangível em que posso me satisfazer a portas trancadas.

É mesmo uma pena.

Meu desejo por elas é indissociável da imagem primeira, aquela em que não as tinha. Imagens inacessíveis ao contato do corpo declarado.

Na rua.

No ônibus.

No banheiro feminino, através da janela deixada pela porta entreaberta – E seria essa mesma a moldura desse quadro capturado. Não se poderia roubar a paisagem ao fundo sem que o contexto do desejo também se alterasse. Seria um outro desejo, portanto. Um desejo distinto...

Bem aventurados aqueles que se masturbam em público, pois, ali, a imaginação os toca na origem e na origem ela é também tocada. O meu pudor, no entanto, não me permite esse recurso hábil - embora o testemunho diga o contrário em meus registros escolares.

sábado, 7 de agosto de 2010

O Colosso de Rhodes

Entre julho e agosto daquele ano, qualquer um que circulasse pelos arredores do Castelo, desde o Museu de Belas Artes até o Tribunal da Justiça Eleitoral, teria a desfelicidade de encontrar a velhinha em questão. “Desfelicidade” não porque fosse velha e, certamente, não por desgosto a senhora – que tão mal não fazia a ninguém – mas pelo súbito questionamento ao termo humanidade com o qual se depararia um que fosse, assim,  afeito a questionamentos.

O andar vagaroso acusava a debilidade do corpo, que se mantinha arqueado numa rigidez tão plena que nos fazia imaginar os ossos petrificados na forma de parábola tal que o olhar da mulher não poderia subir acima dos ombros de um que alcançasse pelo menos um metro e setenta de altura. Mas era o aspecto ímprobo das roupas da senhora que dava a tonalidade miserável e a tez anti-social da personagem. De fato, abuso seria até mesmo chamar “roupas” àqueles trajes, que se constituíam de dois pedaços de tecido – possivelmente antigos lençóis, puídos pela usura do tempo – enrolados desde os ombros até a cintura, um de cada lado, de forma que se cruzassem ali na região dos quadris, descendo pelas pernas conforme alguma espécie de saia pouco ajustada. Do improviso oportuno, ainda que o tétrico e o trágico tão prontamente se exprimissem naquela figura – que tão engenhosamente ajustara as “roupas de cama” ao corpo -, sobrava-lhe alguma dose de comicidade e seria permitido até rir da senhora, não fossem os últimos traços de dignidade roubados por um único tablete de balas halls que a velha trazia não mão esquerda estendida, como se o oferecesse em troca de algumas moedas para as quais a mão direita se mostrava em espera, segurando, um pouco abaixo dos ombros, um copo plástico descartável.

Os cabelos brancos, que se podia pensar serem cinzas dado o estado de encardimento em que se encontravam, interrompiam-se nos ombros e pareciam ignorar os pesarosos movimentos da cabeça, petrificados tal como os ossos que sustentavam aquela carcaça. Os olhos baixos escapavam por baixo das pálpebras semi-cerradas e alcançavam timidamente os olhos dos passantes. Haveria o passante, no entanto, de fazer certo esforço e inclinar-se um pouco diante da senhora se pretendesse encará-la, quem sabe, em aceno de humanidade que se pediria acompanhado do gesto de colocar algumas moedas no copo que a mão segurava - e isso, ignorando o tablete de halls que se estendia junto à outra mão, como que oferecido como objeto de troca na transação que se sugeria. Então, a velha sacudiria – não sem alguma dificuldade – o copo em reposta de agradecimento e continuaria sua peregrinação na mesma forma esculpida em que o corpo se apresentava - duro como o mármore -, sem que os braços deixassem a posição do trato, estendidos até quando o caminho era vazio e silencioso – como a própria protagonista da história - numa tarde de domingo no centro do Rio.

O recurso era claro. As esmolas eram parcimoniosamente mendigadas, já que na mão esquerda o tablete de halls, visivelmente amarrotado pelo manuseio constante, se queria afirmar como produto de venda. Não era, e o mais insensível dos homens poderia reconhecer o mecanismo pelo qual a senhora intentava se resguardar de algum acanhamento de cunho moral. Bem, talvez não o mais insensível dos homens...

Certo dia, parou-se diante da velha um rapaz de terno e gravata com o rosto liso, marcado, talvez, apenas pela ingenuidade dos seus vinte e poucos anos, tirou do bolso a moeda de maior valor e depositou no copo da senhora. Mas antes que a cena estivesse terminada, surpreendentemente, o rapaz levou a mão direita ao pacote que se comprimia na mão esquerda da velha e segurou. A fotografia em que velha e rapaz compartilhavam estáticos o mesmo tablete de halls, dividido entre a mão esquerda da senhora e a mão direita do jovem, durou cerca de dois segundos, quando veio, então, seguida de duas ou três tentativas, por parte do jovem, de tomar o pacote da mão da senhora. A velha apertou como nunca aqueles dedos frágeis e inflexíveis e reteve as balas na mão. Foi quando o rapaz se deu conta do mal entendido, largou o pacote em questão e seguiu constrangido o seu trajeto até o escritório em que trabalhava. Constrangido não pela luta que se teve em segundos pelo pacote de balas, mas pela ausência de bom senso que o assaltou naquele momento. Afinal, aquele tablete de halls não era – ou não deveria ser – apenas mais um produto para venda através do qual esmolaria a velha, recebendo ofertas superestimadas por um mísero pacote de balas que não valia, de fato, mais que alguns centavos. Era ele, vertical e ereto como se queria a velha, o próprio símbolo de sua dignidade perdida. Um correlato material não apenas da juventude, que se esvaiu no corpo agora arqueado, mas a estandartização de uma moral empedernida, vazia e sem sentido; pilar de sustentação de um último sopro de consciência da velha, que se não era louca, lúcida tampouco era.