sexta-feira, 23 de fevereiro de 2018

O Juizo




A realidade é um sentimento ao redor do qual posiciono as coisas que vejo, que ouço e ignoro. Eu sinto o meu corpo, em toda intangibilidade do tato, sinto a cada instante estas células que se comprimem a dar volume a essa forma, que suponho seja como uma linha seguindo por todo e cada um dos pontos dessa epiderme que encontra seu sentido mais diligente no contato com o ar . Exceto pelas solas dos pés, que sentem sobre si o corpo todo, esse emaranhado de células ao mesmo tempo tão estranho e tão íntimo a essa consciência que os reconhece e os dá unidade.

O rúido cumpre, da mesma forma, um desenho sonoro em vista de um objeto que, da ponta dos dedos ao couro cabeludo, também ouve. E elabora a compreender que à imagem que avança a partir de um objeto qualquer fora de si pertence também uma voz. Tal é a conversa silenciosa que a consciência do corpo trava com o mundo. Ao mesmo tempo os conecta e os separa, como a pontuação sintática de um parágrafo cheio de ideias a comunicar.

O corpo é; e assim permite a todos os outros corpos que sejam; e pede gentilmente ao espaço que não seja; ao silêncio que negue; e à ausência que ignore. Encontram todos seu lugar no mundo, esse cômodo tão estreito que contém apenas o que se sente, se ouve e se vê, mas nunca além das bordas desse campo sem dimensões que o corpo lhe empresta. Damos a ela um nome e, prontamente, ela é também. A realidade. Ai de quem duvide!

Ainda assim, nada explica o prazer ou o desgosto. Pois o juizo é uma fantasia absurda. A ele não importa quem seja e quem seja ausência. E o corpo é dele refém, a todo instante que é de si consciente. Sente o frio que congela a pele, mas gosta. Sente o aroma do café ebulindo e, no entanto, detesta. Não importa o que seja a realidade, cabe sempre ao juizo uma nota de aprovação, um valor-sentimento, uma legenda, resumindo tamanha complexidade a um capricho deliberado.

E tudo mais - tempo e espaço e essência - não tem em si outro significado que não o de serem, em dado instante, de um juizo objeto. Diga-me o que quiseres do tempo, eu te direi como me sinto a respeito. Descreva-me o mundo pelas lentes da mais meticulosa ciência e, ainda que eu nada compreenda, terei uma nota de gosto a dar. Porque meu acesso ao mundo não se dá pela pele, pelos olhos ou pelos ouvidos. Também não se dá pela palavra – essa que tão frequentemente nos entorta os sentidos. O mundo é, afinal, a voluntária e inegociável constante de um nele sentir-se como deveras se sente.

O átimo, o íntimo e o étimo, de todo modo, são todos ótimos.



segunda-feira, 12 de fevereiro de 2018

O coração do mundo




Andava pela rua cabisbaixo, cansado, faminto. A passada em stacatto das pernas articuladas em sincronia com os braços soltos, pendulares, e entre um lance e outro de vista, um pensamento em sincronia com o a fome dos desejos populares - aqueles mesmos do encanto com as imagens em tela.

Na sua frente, um aparelho celular chama sua atenção numa bancada num corredor de barracas enfileiradas, em uma zona de comércio ao ar livre, sem muros. Percebe-o ao mero alcance da mão. Poderia simplesmente pegá-lo, e, afinal, não basta apenas querer? Não, não basta… e retorna ele a olhar para o chão e, com a cabeça baixa, segue seu caminho. A esperaça de um futuro melhor em recompensa pelo comportamento “correto”, mantém a passada em curso - sem desvios ou imprevistos.

beatius est magis dare, quam accipere... A recompensa é a ilusão dos ovinos.


Não que o impulso seja a premissa de toda ordem de uma tal natureza, mas, muitas vezes, é a esperança o grilhão que convém questionar.