sábado, 14 de janeiro de 2012

O herói de papel

Aquele era Bruce Wayne de frente para sua escrivaninha excessivamente ornada no melhor estilo Luis XV, e é de se imaginar que tenha pertencido ao próprio, uma vez que o atual dono, homem cuja fortuna só não era maior que a vaidade, não teria razão nenhuma para tê-la – a escrivaninha – não fosse de fato uma peça rara e de valor histórico.

Acima da “pequena mesa” um computador reluzia em contraste evidente com a antiguidade que o suportava e se mantinha ao alcance da vista do homem, que lia com atenção modesta as páginas policiais do principal jornal de Gotham quando Alfred, seu mordomo e conselheiro, bateu a porta delicadamente três vezes. Bruce fez dizer que entrasse e tão logo o senhor alcançou com a perna direita o piso do aposento, perguntou-lhe o patrão o que lhe queria dizer ou mostrar. Nesse instante, o mordomo tirou do bolso da calça um pequeníssimo pendrive preto, que combinava propositadamente com seu uniforme de serviço, encaixou-o no computador e de lá extraiu um arquivo de extensão .BTE (BatText Editor), isso porque esse figurão das indústrias Wayne era demasiadamente orgulhoso de sua influência e poder para dispor de uma ferramenta popular como o Microsoft Office. Aliás, fazia alguns anos que uma disputa particular se acirrava entre a Microsoft e as Indústrias Wayne, que brigavam pela hegemonia do mercado de softwares da cidade de Gotham.

Bom, abrindo os arquivos, Wayne se deparou com dois links (http://www.elephantiase.blogspot.com/2009/09/saga-do-homem-morcego-no-1.html e http://www.elephantiase.blogspot.com/2011/05/saga-do-homem-morcego-no-2.html ) que quando explorados levaram ele ao pouco conhecido blog de um jovem escritor brasileiro. Com alguma dificuldade o milionário venceu o português que se apresentava nos textos, mas identificando logo a primeira vista os títulos, que pareciam indicar que o enredo ali tinha como razão ele mesmo, o multimilionário que à noite, em nome da justiça (de alguma justiça), se travestia de homem-morcego. Seguindo a leitura, uma primeira risada escapou-lhe por entre os dentes. Não fora, todavia, um riso de graça. Um ecoar um tanto macabro, em verdade, dava aquela risada ares de uma legítima reprovação, mas também porque o pé direito alto, como era o da mansão de Bruce Wayne, favorecia aquela sonoridade em particular.

O texto, afinal, dizia desse mesmo Batman, cujos olhos agora ausentes da moldura de uma máscara enfrentavam aquelas inventivas palavras a respeito de um super-herói burguês mal contextualizado nos arredores da Central do Brasil. Teria ignorado completamente a menção ao lugar se sua memória não houvesse encontrado a lembrança de filme homônimo, que alguns anos antes havia sido recomendado a ele por Alfred, esse sim um profundo conhecedor da cultura brasileira, do que se justifica, aliás, que tais textos tenham chegado ao conhecimento do oportuno mordomo.Finda a leitura, delegou ao seu prestigiado funcionário: “Prepare minha Bat-Nave!”

Ora, o sagacíssimo autor havia sugerido, a certa altura do texto, que os maiores vilões (maiores mesmo que seu arqui-inimigo Pingüim) eram aqueles que circulavam pelos arredores da Cinelândia. Não querendo crer nisso e na intenção de provar que aqueles eram criminosos ordinários, fez dirigir-se para lá o poderoso Batman, afim de derrotar esses oponentes em vista - apenas utilizando seus braços e pernas. Julgou, com efeito, que não seriam necessárias nem ao menos as ferramentas de seu famoso cinto de utilidades, mas levou-o, assim mesmo, posto que além das estimadíssimas ferramentas que se dispunham naquele cinto, tinha ele a função, comum a quase todos os cintos, de segurar-lhe as calças. E como todo bom super-herói sabia que nenhum outro meio digno há para manter no homem (Super-homem que seja!) as calças no lugar onde devem ficar, ainda quando as cuecas lhe forram por cima. Lembrou-se, então, novamente de seu eterno adversário Pingüim que recorria ao expediente de suspensórios para manter-lhe as vestes junto à cintura, e pensou: “Tais suspensórios só não lhe são a maior perversão porque o delinqüente carrega e manuseia um guarda-chuvas mesmo quando o clima árido anuncia completa impossibilidade de precipitação.”

Vestido à caráter, chegou Batman ao local. Desceu da nave e andou até o centro da praça na Cinelândia e esperou que os inimigos se anunciassem com seus caracteres apodrecidos e suas vis intenções. Não precisou esperar muito, pois logo apareceram três “senhores” mal encarados e não fizeram nem mesmo menção a anúncio formal de seus nomes e seus talentos, partiram sem piedade pra cima do homem-morcego que foi brutalmente espancado; roubaram-lhe a carteira (que dessa vez viera no bolso junto com as chaves da Bat-Nave) e rasgaram-lhe todo o uniforme. Demorou a entender como anti-heróis como aqueles, sem elaborada alcunha, frases mirabolantes acompanhando seus ágeis ataques, poderes ou armas de digno refinamento conseguiram-lhe vencer em tão grosseira investida. E como ele, o caro leitor deve agora se estar espantado não apenas com o resultado da peleja, mas, sobretudo, com a facilidade da resolução.

Eis, pois, a razão das coisas conforme esse honestíssimo autor lhos anuncia: aquele não era Batman, e por baixo daquelas vestes o homem não se chamava Bruce, nem tinha Wayne por sobrenome. Atendia pela alcunha de Dudu na agência bancária em que trabalhava e se, naquele instante, vestia-se conforme um Batman no centro de uma Cinelândia escura e quase deserta era porque comprara na semana anterior a fantasia e fora levado até ali por um táxi desde o Rio Comprido onde morava, e quando o próprio taxista se houve espantado com o traje de seu passageiro, teve por bom e inocente julgamento concluído que o homem se encaminhava para nenhum lugar que não uma festa a fantasia. Mas a verdade é que o bancário, elegendo-se como homem da justiça e tomado por surto que o fizera identificar-se com o temido e autoritário Batman, tinha em mente razão mais nobre, ainda que cômica ou patética, que aquela previsível de uma mera festa a fantasia.

E embora dois de seus agressores prescindissem de todas aquelas qualidades que fazem dos vilões homens de aparência tão singular, o terceiro deles matinha para com os preceitos do “bom vilanismo” o hábito indumentário, pois aquele homem usava uniforme. Irônico é que o uniforme fosse do Sport Club Corinthians, também cantado por seus torcedores como “Coringão”, que faria lembrar a um verdadeiro Batman da alcunha de seu célebre oponente nos desenhos ou histórias em quadrinho. Mas menos que a derrota do bem sob a astúcia do mal, o que incomodava ao homem era a ocasião de, em pleno Rio de Janeiro, um meliante qualquer circular como um local com a camisa de um time paulista. Daí, encerrando quaisquer dúvidas sobre a procedência desse homem-morcego em questão. Das semelhanças que pudéssemos ver nele para além da vestimenta trajada (agora em frangalhos) fica, na melhor das hipóteses, sua predileção pela noite que o fazia, quando não trabalhasse cedo na manhã seguinte, ficar até tarde acordado.

quarta-feira, 11 de janeiro de 2012

Chega de bandido pra prender (Eu tenho uma idéia!)

O garoto de óculos carrega sua câmera enquanto procura um ângulo privilegiado para fotografar o Teatro Municipal do Rio de Janeiro, na Cinelândia. A pele excessivamente branca e o olhar de estranhamento para com seu entorno acusam a procedência do menino: trata-se de um estrangeiro. Com todas essas características que o distinguem da maior parte das pessoas que circulam a sua volta, o rapaz parece um alvo em destaque para um marginal oportunista que o observa há uns 6 ou 7 metros de distância, sentado num banco quase em frente a um restaurante sobre o qual se estende um grande prédio amarelo – o “amarelinho”.

O garoto, apesar da tenra juventude estampada na pele e nas roupas, não é tão jovem quanto se supõe e os auspícios de uma percepção que se molda sobre seus sentidos, bastante acima da média, parece indicar a ele que o marginal o irá abordar em alguns segundos. Não há nada a temer - pensa o rapaz. Na mão uma câmera profissional que se apoia sobre o pescoço com o artifício de uma fita, talvez seu maior patrimônio naquele contexto; na carteira, algumas dezenas de dólares se misturam a três notas de 50 reais, dinheiro pouco importante para ele que vê a vida muito além dos luxos e prazeres proporcionados pelo dinheiro; e no bolso, bem ao lado da carteira, um passaporte onde se atesta seu mais distintivo caractere – seu nome. Parker, conforme ele o apresentou mais cedo ao recepcionista do hotel onde está hospedado em Copacabana, - Peter Parker!

Ora, já quando o marginal o alcançava com olhar imperturbável há uns 3 metros de distância, se dirigindo para uma abordagem seca e intimidatória, o jovem com a câmera antecipava cada passo seu e considerava 72 maneiras distintas de imobilizar o algoz, cada qual acompanhada de uma frase jocosa ou uma tirada bem humorada, marca registrada dessa virtuosa criatura que vivia sob a identidade de um jovem fotógrafo, embora nem tão jovem e bem menos virtuoso no emprego que oficiava com máquina que na chancela de um herói popular e de humor característico que era quando do uso de uniforme e máscara.

- O uniforme e a máscara! - Pensou consigo contrariado. Não os havia trazido e qualquer manobra que tivesse em combate de seu iminente inimigo o faria sucumbir a uma exposição imprópria e indesejada. O marginal se parou ao seu lado e mandou essa: - Ôh gringo! Passa a carteira e os dólar! – e como seu interlocutor houvesse demorado em menção a entregar-lhe, repetiu com ares de bandoleiro poliglota: - Vamo logo senão te furo todo! Give the wallet playboy!

Sentia-se agora impotente mesmo sabendo-se capaz de levantar aquele criminoso com uma das mãos, pular sobre sua cabeça e puxar-lhe por trás a cueca (fazendo dela uma algema ou uma camisa-de-força) ou imobilizá-lo quase instantaneamente com uma de suas teias projetadas a partir dos punhos apenas com um posicionar estratégico dos dedos e da palma. Como o bandido não lho requisitasse a câmera, e tomando por medida a insignificância do dinheiro que recheava o objeto em demanda, puxou do bolso a carteira e entregou àquele sujeito mal vestido, sujo e com a barba por fazer já há pelo menos 6 meses. Ali não se demorou o meliante que, ignorando a câmera que agora pendia do pescoço do gringo, partiu em retirada numa passada calma e irreverente (a “ginga brasileira” como lhe diria mais tarde um policial para o qual relatasse a ocorrência nosso herói reticente).

Os 15 minutos que se seguiram àquele roubo foram os piores da vida recente de Peter Parker, que se sentindo impossibilitado de exercer seus domínios e talentos na prática da justiça, conforme entendia ele assegurando a necessidade de restituir à vítima os bens perdidos e entregar os infratores à punição e ao trato policial, teve vontade de correr atrás do ladrão e espancá-lo até que suas mãos brancas sem uniforme cobrissem-se do vermelho do sangue do homem, como um tecido vivo que se lhe moldasse na forma exata das mãos. Entretanto, no instante em que esse pensamento lhe tomou em assalto, logo lhe veio à cabeça a imagem de Venom e Carnifícinia (dois antagonistas seus que tinham por traço justamente essa flexibilidade como de uma vestimenta de lycra ou helanca que tomasse com perfeição a forma do corpo fosse este o de um esbelto guri ou de um mórbido obeso a segurar um hambúrguer em cada uma das mãos) e seu ódio logo deu lugar a um sentimento mais brando, resignado. Tomou em orientação relativista os problemas sociais que afligem aquele país e, por certo, justificavam violência daquela natureza.

Mas o consolo maior e, talvez, o único pensamento que lhe possibilitou abandonar aquele rancor e a frustração que pouco antes se fizera conforme neblina sobre o seu próprio caráter foi a idéia de que, se Peter Parker se dera ao despojamento de uma ou duas semanas ausente das funções e da rotina que o submetiam a empenho e preocupação constantes em sua cidade de origem, seria impendente e indispensável que também o homem-aranha tirasse alguns dias de férias.

quinta-feira, 5 de janeiro de 2012

O beijo

- Você é a garota mais bonita que eu já conheci – o rapaz disse encabulado, já que a timidez que o fazia comprimir os ombros estava em pé de igualdade para com o desejo que o impelia a fala. A menina sorriu e hesitou responder. Ao mesmo tempo que via como fraqueza a insegurança do rapaz, sentia o lisonjeiro encanto porque houvesse vindo tão cândida criatura lhe dizer aquilo. Timidamente também ela respondeu – Obrigada. Note-se, todavia, que a sua timidez era charme e nada mais.

O rapaz, do outro lado, inflou-se de uma segurança súbita como um botão de rosas que subitamente desabrocha diante das pedras, da terra e de algumas árvores dessas que conservam com o mundo uma percepção estendida pelas décadas e séculos, e levou suas mãos até as mãos da menina, tomando-as aos olhos e, retomando o olhar novamente ao rosto dela, disse-lhe: - Queria poder olhar pra você todo dia, o tempo todo. – a pausa que fez antes de continuar não fez senão dar eco e profundidade às palavras que se iriam seguir – teu sorriso me faz lembrar como podem vir mais belas coisas de uma boca do que palavras.

Não é que a poesia seja para as mulheres, especialmente para as mais jovens como aquela, afrodisíaco mais poderoso que o corpo e os hormônios, mas a vaidade que modula o comportamento feminino mais filistino pede que do outro lado também haja mais composição no trato que o expediente de um beijo tomado à força ou em surpresa. E como os olhos dela agora já eram todos para os dele, o sorriso – que um segundo antes havia sido a tônica e a graça de um encômio insuspeito – dissolveu-se num comprimir de lábios que pedia ao rapaz que avançasse e tomasse em ação a razão de toda aquela empatia. Conforme seu rosto lentamente se aproximava, também o dela fez menção de ir-lhe ao encontro, quando escaparam da boca dele, orgulhoso e impaciente por narrar o momento, as seguintes palavras: “É agora ou nunca”.

No mesmo instante que as palavras vieram ao ar, a menina – de acordo com uma simetria irrepreensível que dava proporção cabível ao demérito do último verso – estendeu às mãos ao peito do garoto interrompendo-lhe o trajeto e inquiriu: - O que você disse? – mas como não fosse necessária a resposta, uma vez que os ouvidos que ouviram com tamanha estupefação aquela sentença eram os mesmos e atenciosos que antes se haviam deleitado com os gracejos e os gabos, declarou sua indignação balançando a cabeça e repetindo duas ou três vezes procurando a entonação adequada – Eu não acredito!

Pois, antes que o menino se pudesse explicar, corrigir ou manobrar sua conduta diante daquele insucesso tão iminente, deu-lhe ela as costas e apenas mais uma palavra – Nunca!

Na poesia, como na prosa, segue que cada palavra – por mais inocente que seja - submete a antecedente; e a frase que se lê ou se ouve num instante deixa para trás no tempo e na memória aquela que lhe precede. Como um cão que farejasse a procura de determinado animal, sentiria seu cheiro mais evidente e presente quanto mais recente fosse ali a passagem do bicho, assim é que um poeta deve encarar seu leitor. Para o caso do cão ser aquele em posse de pena e papel, cumpre que o rastro seja o cheiro que exala do seu próprio rabo e nada mais.