quarta-feira, 11 de novembro de 2009

Vinho tinto e vela...com classe.

Faltou luz. – Que merda! – Eu reclamo silenciosamente. Minhas noites já são tão monótonas mesmo com todo aparato tecnológico de que disponho pra me entreter.
Tecnologia de merda! Nada funciona sem energia elétrica.

Pior ainda, a geladeira não funciona sem energia elétrica. Todo aquele lixo de comida congelada que eu comprei ontem vai pro caralho. Foda-se também! Não há lá grande diferença entre essa porcaria estragando no meu estomago ou na geladeira.

Puxo uma garrafa de vinho que já começa a suar na estante inferior da porta do refrigerador. “Carménère” – diz o rótulo. “Uva sofisticada” – eu penso. Dará toque refinado ao bolo fecal que já já vai se embolar no meu intestino – isso se não descer tudo numa rajada. As sobras da janta também me encaram lá do fundo da prateleira de cima, ao centro. Arranco-as do frescor viscoso que a geladeira ainda conserva - Janto de novo e que se foda! Coloco o prato na mesa e fecho a geladeira. Tudo isso com apenas uma das mãos já que a outra se banha na cera endurecida de uma vela que dá visão ao pobre cego entediado que sou.

Debaixo da cera a pele queimada, agora, maneja o garfo que vai ao encontro do macarrão – Penne ao alho e óleo – e volta e meia espeta um engordurado filé de frango à milanesa que vai direto à boca para ser partido pelos incisivos do porco preguiçoso que dispensou à refeição uma faca. Hahauhaha! Gargalho de boca aberta, deixando escapar uma ou outra fagulha da massa. Recupero o fôlego com um gole generoso no vinho que enchia até a borda uma rechonchuda caneca. Rio de mim mesmo, iluminado ao canto pela vela à metade que me queimara a mão de melhor uso, a mão direita. Rio especialmente pela ironia da coisa. A janta que tenho em mãos é resquício de uma primeira refeição que fiz logo no começo da noite. A fome, em todo caso, é protocolar e se lança desavergonhadamente sob a justificativa rasteira de que pouco importa o pecado da gula se a comida iria estragar de qualquer modo. No entanto, é essa refeição porca e grosseira que me tenta arrancar do tédio imperativo dessa noite iluminada por uma só vela.

A vela me olha. Acostumada aos romances de uma casta mais polida que a minha, a chama delicada que se inflama no pavil já carbonizado deve me ver como um glutão. A imagem me incomoda. Molho polegar e indicador na boca suja de comida e os pressiono contra a chama em retaliação ao mal julgamento que fizera de mim. A vela, obviamente, se apaga. A mão larga o garfo no prato e, tateando no escuro, segue instintivamente até a caneca. Um gole daquelas. “Carménère” – relembro. Uva sofisticada. Realça o amargo do alho que a essa altura já me empesteia o hálito.

Hahauhahasg asgha! Me engasgo no meio da gargalhada e uma corredeira de vinho tinto me escorre pelas narinas. Resolvo acender a vela novamente pra ver o estrago. Manchou a cueca. A única peça que ainda me cobria a pele – menos mal. A chama da vela se infla. Vadia orgulhosa! Me olha, dessa vez com despeito, e pisca como se tentasse me diminuir na frente dos meus pensamentos. Mal sabe ela que escrevo tudo em minha cabeça enquanto ela lumeia e cisca conforme as correntes de ar que entram pela janela. E mais, já tenho um final prontinho pra ela.

Esvazio a caneca num gole só. Levo o prato, o garfo e os restos até a pia. A vela acompanha. Carrego-a na mão até o chão do chuveiro. Firmo-a lá com a cera que escorre. E o som chiado da chama se apagando com a violência torrencial de uma boa e certeira mijada me soa como uma canção de ninar.

Essa noite durmo como criança - disso tenho certeza.

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