quarta-feira, 23 de setembro de 2009

Cinco Últimos Parágrafos de Cinco Livros Não Escritos

Já passava da meia-noite, e aquele maldito café vienense ainda entupia-se de gente. Markos insistia que permanecêssemos por lá. O cansaço era grande, meu corpo ainda não se recuperara dos excessos da noite anterior. Deixamos as mochileiras belgas no quarto do albergue e fomos aproveitar a última noite na cidade. Imaginei que fôssemos encher a cara à beira do Danúbio ou algo assim, mas meu amigo insistia que era tomando aquele café que viriam a nós as grandes idéias de uma nova concepção de mundo. "O segredo tá no café, e não volto pro Brasil sem pelo menos um Manifesto", repetia ele, e a cada vez que dizia isso eu lamentava não ter ficado no albergue com as mochileiras. Entre uma orgia com mochileiras belgas e a fundação de uma nova concepção político-artístico-filosófica, a escolha não era fácil, e a cada minuto parecia pender para as belgas. Finalmente convenci meu amigo de que, o que quer que tivesse motivado Schönberg, Wittgenstein e Musil, não era o que se encontrava em nossas xícaras. No dia seguinte, com litros de café destruindo nossos estômagos, estávamos no avião de volta pra casa. Sem qualquer nova concepção de coisa nenhuma, e sem orgia, já que ao retornarmos para o quarto as mochileiras já estavam dormindo, nuas, com um dildo por perto garantindo que havíamos sido substituídos. "Viena de Arschloch é Schwanz", resmungava Markos, como quem diz que a vida já foi mais bela.

(Viagem a Viena)


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Com este tratado, acredito ter abarcado a totalidade dos problemas filosóficos e, ouso dizer, solucionado boa parte deles. Àqueles que não puderam me acompanhar na cadeia de raciocínio que subjaz o texto, sugiro uma nova leitura, após a qual tenho certeza de que angariarei de vós nada que não a plena concordância. No que tange a comunidade científica, antecipo meu "Não há de quê" aos agradecimentos futuros por minhas contribuições. Afinal, uma vez apresentada tal derradeira ontologia, resta a vocês alimentar vossas contas bancárias e as bocas de vossos rebentos com bolsas de pesquisa saudáveis e divertidas, posto que agora podem brincar de ciência normal sem mais incorrerem no risco de novas crises.

(Tratado Geral da Natureza das Coisas e Muito Mais)


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(Texto autocensurado pra evitar futuros aborrecimentos)

("Retaliação" em Retaliação e Outras Estórias)


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Ao chegar na lanchonete, contemplei meu destino: lá estava o anão salvadorenho, com seu irônico sorriso, como uma nanica e bigoduda Gioconda. Saboreava seu caldo-de-cana enquanto cantarolava junto com uma versão antiga de Guantanamera que tocava no rádio. Todas as peças se encaixavam agora. A Operação Dromedário nunca chegou ao fim. Eu estaria para sempre preso àqueles dias de sangue e terror em Itaquaquecetuba-mirim. Tentei dar meia volta antes que fosse avistado por ele, mas era tarde. A magnum 44 tinha ficado na escrivaninha do hotel, mas avancei sobre ele com um providencial cortador de unhas que havia esquecido no bolso do casaco. Tomado pela sanguinolência, dilacerei seu diminuto corpo. Antes do suspiro final, ainda pude ouvir sua voz rouca, despedindo-se da vida: "Y antes de morirme quiero echar mis versos del alma..."

(Operação Dromedário)


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Pouco antes de amanhecer, senti seu corpo se afastar de mim. Com meus olhos ainda embaçados pelo sono, a observava se vestir enquanto procurava ansiosamente por algo a roubar em minha estante, seja como compensação pela noite meia-boca que lhe ofereci, seja por cleptomania. Acabou me furtando, entre outras coisas de menor valor, uma edição original em russo de Brátya Karamázovi do Dostoiévski, que ela certamente escolheu pela capa bonita, dura mas conservada. Eu sabia que a pilantra não falava russo e provavelmente acabaria vendendo aquela preciosidade por uns trocados. Eu também não falo, é verdade, mas pelo menos sei o valor inestimável daquela edição - ou seja, sei que é um valor que não dá pra estimar. Pior do que a subtração do acervo, contudo, foi ouvi-la derrubar tudo o que não convinha aos seus interesses. Passei o restante do dia reorganizando tudo, além de ter que refazer o meu catálogo. Ela não entenderia. Ninguém entende. Para tudo há um lugar, uma ordem, uma um código. Para tudo, uma posição que não se abandona. O que faço não é só um trabalho, é uma atitude diante da vida, algo que os alemães chamam de Lebensgefühl e os psicólogos chamam de Transtorno Obsessivo-Compulsivo. Os filósofos não fizeram mais que interpretar o mundo; está na hora de ordená-lo nas prateleiras.

(O Biblioteconomista)

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