quinta-feira, 28 de fevereiro de 2013

Gentileza gera gentileza, só que não


Entrei no ônibus com uma sacola na mão. Procurava pelo dinheiro na carteira aberta, um pouco confuso, a considerar que o veículo em movimento não me ajudava o equílíbrio e nem tão pouco a pressão que me fazia, com a atenção intermitente voltada a mim, o motorista, que deveria recolher o dinheiro e dirigir ao um mesmo tempo, enquanto um senhor num banco estrategicamente (ainda que a estratégia permaneça a mim desconhecida) isolado ao lado da roleta murmurava alguma coisa em minha direção. Entre os murmúrios distingui a sentença: “Passa a roleta, procura o dinheiro e depois volta pra pagar.”

Desconsiderei, no entanto, a sugestão. Não apenas porque julgasse desnecessário – e uma vez que eu passasse a roleta, teria que esticar o braço até o último centímetro para dar o dinheiro ao motorista, que deveria retorcer o pescoço e recolher a passagem com apenas uma mão no volante e o carro, provavelmente, em movimento – mas também porque a posição que me ocupava na procura do dinheiro, pedia-me que não desse atenção ao senhor atrás de mim.

Ele balbuciou mais alguma coisa; talvez tenha me oferecido ajuda, mas não tive certeza se oferecia e nem de que maneira me seria a ajuda dele benéfica.

Ao contar meus trocados, reparei que faltavam vinte centavos e tive, então, que puxar uma nota de vinte reais, para a qual o motorista não haveria de ter troco, uma vez que durante a madrugada, as empresas mandam seus funcionários ao trabalho como os mandasse a alguma expedição perigosíssima, não cabendo arriscar dinheiro algum no trajeto. De fato, a nota fora um problema que o funcionário tratou de rechaçar em um acenar negativo com a cabeça. Eu ponderei, assim, que, dos trocados que eu tinha a mão, vinte centavos faltavam para completar o valor da passagem. Ele estendeu a mão e me pediu o dinheiro. Entreguei-o com a sensação incômoda de que o motorista me fazia um favor desnecessário ao me poupar vinte centavos, mas também por conta do senhor atrás de mim que a essa altura já havia inserido inadvertidamente dois ou três comentários ao movimento. Entre eles, sobretudo, pensei ter ouvido algo como: “Você precisa de alguma coisa?”

Quando atravessei a roleta, pus-me de frente a ele, que me sorriu com ironia e me disse: “De nada!”.

Devolvi-lhe o sorriso apenas por dúvida e me coloquei a refletir sobre o comentário. O procedimento, no entanto, era claro. Oferecendo o jargão corrente em resposta a um agradecimento em questão sem, contudo, haver o agradecimento tomado forma, o senhor colocava em evidência o mérito de uma gentileza jamais reconhecida, e com alguma ironia, dizia-me mal agradecido de modo a não deixar dúvidas sobre a sua conduta presumidamente generosa.

Eu teria deixado passar se o desconforto por ficar devendo vinte centavos ao motorista não me tivesse roubado a tolerância que era ali necessária. Já havia passado a roleta e me projetava pelo corredor do ônibus quando resolvi retornar e lhe fiz a pergunta: “O que o senhor disse?” Ele ergueu a cabeça e , cheio de orgulho, repetiu que havia dito “de nada” em razão do agradecimento que eu deveria tê-lo oferecido por conta da gentileza descrita quando do seu envolvimento com a minha situação. Ele, de fato, havia-me perguntado se eu precisava de alguma coisa e nesse instante tive certeza. Eu, todavia, não precisava de nada, ou ainda que precisasse não teria recorrido a um estranho no ônibus. Aliás, os vinte centavos que ficaram por conta do motorista não me deveriam ser, absolutamente, necessários, já que à ocasião eu trazia comigo uma nota de vinte reais, dinheiro suficiente para garantir minha entrada no ônibus. No entanto, não pude negar que alguma gentileza se havia postulado no concernimento do senhor para com um que lhe era inteiramente estranho. Gentileza essa que se poderia retribuir com a gentileza proporcional de um “muito obrigado”. Fiquei, nesse momento, confuso e após ouvir o senhor descrever a ocasião em que me havia feito uma gentileza, senti-me compelido a agradecê-lo e o fiz, mas não sem um sorriso artificiosamente empunhado, como quem não fizesse senão atender a uma formalidade.

Veja lá! Inegável que o senhor me tenha gentilmente oferecido ajuda. Mas é incontestável também que sua ajuda não se tenha feito absolutamente necessária. Pareceu-me, assim, pouco justo que eu lhe fosse obrigado a agradecer quando de mais a mais o senhor perdera todo direito a um agradecimento ao exigir-me tão cinicamente um. Pois se foi a gentileza de por-se a disposição que o fizera digno de algum mérito, fora, por outro lado, a grosseria equivalente em contrário ao requerer-me em situação como aquela um inaudito “muito obrigado”. Pouco importa, e assim como eu havia sido forçado a aceitar a duvidosa gentileza dos vinte centavos postos em desconto pelo motorista do ônibus, fui também compelido a entregar ao senhor ocioso um “obrigado” que deixou de fazer sentido algum quando da sua imediata exigência.

Sentei-me num banco na parte de trás do ônibus, duplamente frustrado. Alguns minutos depois, o veículo passava por debaixo dos viadutos da rodoviária, onde se lia aquelas celebradas frases do poeta Gentileza, dentre elas, a famosa equação do velho também chamado profeta: “Gentileza gera gentileza”.

Pensei mesmo comigo: a economia dos gestos amáveis não é assim tão resumida e requer da justiça um desdobramento a altura para os casos em que não vingar a tautologia. Pois pode ser que o julgamento equivocado de apenas um dos lados determine não haver proporção alguma que justifique a vigência dessa espécie de lei de Talião às avessas.