sexta-feira, 4 de novembro de 2011

Retrato de Corte

Consta n’algum livro de autoria desconhecida incumbido de narrar a história, já há algum tempo incélebre, de um ilustre membro da corte inglesa durante o século XVII, que o tal cavalheiro contratara um renomado mestre da pintura flandrina para compor-lhe um retrato. E, porque fosse muito feio, pediu-lhe o contratante que retratasse a imagem de sua glória, a despeito das imperfeições que o tempo havia cunhado ou que a genética lho tivesse imposto, corrigindo sobre a tela as marcas de sua fealdade, de modo que na representação cumprida figurasse a aparência de um belo homem.

Aliás, não há muito algum espirituoso autor houve publicado um artigo, menos de valor histórico que anedótico – justiça seja feita -, onde se refere a esta mesma história do livro aqui em nota como fosse a primeira cirurgia plástica narrada e de alguma forma documentada pela pintura. E cita esta passagem em que declara o aristocrata da história: “Que Deus tenha-me atado a este fardo, que me tenha esculpido em mármore tão áspero, não apenas ignorando a expressão de sua imagem e semelhança, mas fazendo-me do outro lado à imagem e semelhança de um pobre diabo, nada poderá contra o poder que teve ele próprio investido às mãos sagradas desse pintor. E, se em vida hei degustado o sabor amargo da feiúra, tornar-me-ei belo, d’outra forma, após a morte que me espera - como triunfo último de minha tão eloqüente vaidade.”

Mas também há notas nos escritos que se detiveram em catalogar a errância da obra pintada, que após passar às mãos de seu segundo dono e deparar-se subitamente com a vista de uma bela princesa, esta teve em medida um longo suspiro ao qual se sucedeu a seguinte passagem, também descrita por anônimo literato: “Mas que belo, belíssimo! Irrepreensível é o amor divino que propositado com a beleza dos céus, dotou as mãos singelas de um pintor assim delicado com tamanho talento.” E ignorando o título que conferia nome e nobreza ao rosto ali retratado, tratou de tomar nota do nome que assinava.

Assim, devemos supor que mais resiste ao tempo a beleza da mão que pinta, que a autoridade severa daquela que paga.

quarta-feira, 19 de outubro de 2011

A casa de Heráclito

Aquele pó louco na manhã confusa fazia sua garganta esmerilhar-se dentro do pescoço. O banheiro estava em obras. A poeira que ele engasgava era um pedaço da antiga casa pulverizado pela força bruta de um martelo sob a mão de um impiedoso capataz. Levantara e fora até a cozinha em busca de um copo que consigo trouxesse água e alguma paz às paredes laringíneas de sua frágil goela. Mas também os copos se ressentiam de uma espessa camada daquele pó que antes houvera sido a parede que separava o banheiro de um hall que corria até a sala. Levou o copo à pia e abriu a torneira. Lavou-se o copo sozinho com a água que descia e enxugou-se por um abrupto saculejo, como numa nota da beleza prática e engenho que na atribuição de mérito à gravidade, fazia separar gotas de água de vidro e, onde antes a poeira se encostava, descansava agora apenas um estreito véu de umidade que calava também, com suma delicadeza, a aridez e aspereza da mão que segurava. Levou o copo ao filtro e encheu-o até quase a boca. Derramou pela garganta abaixo, fazendo varrer, até onde se tinha alcance, aquelas pequeníssimas particulas de matéria dura. E pouco a pouco as obras avançaram. Reformou a sala, os quartos e a cozinha, bebendo cada cômodo nas manhãs que se seguiam. Mas a casa, se reerguendo, permanecia.

Disse Heráclito que um rio que corre nunca é o mesmo, mas jamais ousou ele dar nomes distintos a cada um desses que passou a sua frente pelo mesmo caminho.

terça-feira, 11 de outubro de 2011

Carta ao amigo.

Aterroriza-me ler a tua crônica, talvez porque a vida que dela emana seja a mesma que em mim espreita.E embora eu sinta por você o silencioso agudo do insatisfeito, no qual a triste figura de um não-herói se deita, não sou o demagogo que lamenta pelo outro o tom obtuso do seu imperfeito. Preocupa-me mais que qualquer nota sua, a derrota semi-nua de minha quão patética tentativa de alcançar êxito. São essas as minhas vãs moléstias, mortificantes a cada pensamento baixo de que eu não deveria ser tão egoísta ou que, apesar da menor conquista, eu não chego ao cume e nem mesmo o vejo, pois o mais sutil desejo já me encobre essa tão cansada vista. Ah, caro amigo! Há muito tempo já somos capazes de entrever o surdo pesar dessa custosa rotineira."Foda-se a poesia", você me diz com graça. A que faz rir, no entanto, não é a graça santa do rebelde encanto."Foda-se também essa!" Incisivo e direto como, assim, supõe o desiludido obreiro. Faremos tudo do jeito pouco nobre que compõe nossas pouco honrosas novas aspirações, sem mais o assumido desfastio daquelas velhas ingênuas canções. Só a nossa raça escrota, um tanto burguesa, e se cheia de éticas, cheia mais ainda de novas considerações. Pois sabemos, malgrado o emergente mérito que atribuimos a esse conhecimento, que não somos novos. Somos, sim, os velhos usos de nós mesmos, que nós mesmos renovamos como quem renova as cordas de um violão quebrado. Mas, enfim, percebemos ser o claustro dessa dissonância a metáfora crônica de uma necessária mudança. Deveríamos ter crescido. Envelhescemos apenas.

Agora, resta o desgaste que nós fazemos regar como quem trata uma violácea aldracema que cresce junto a pouca luminosidade no jardim improvisado no apartamento empoeirado, entre uma garrafa de cerveja vazia e a sujeira de três dias passados. Resta também esse fundo raso de uma singela poesia que entrecortamos como a deliciosa torta de limão que à geladeira decompõe-se através dos dias, pois, sozinho que estamos, só comemos pedaço a pedaço. São pequenas colheiradas que nos fazem reis e não duram mais que alguns curtos minutos. Voltamos a desgraça da boca vazia tão logo a tevê nos anuncia. Anuncia-nos, em todo caso, que jamais seremos por ela anunciados. Chamamos então o cotidiano de prosaico. Fica mais fácil, assim, ler o assombroso e megalomaníaco que nos estampa a prateleira sem acharmo-nos, contudo, criaturas meras e insignificantes. Comparamos às deles, nossas vírgulas, nossos pontos. E, ainda que cheguemos a patente conclusão de que diferem apenas pelo empenho dos inalcançáveis anos, que nos remediam a ignorância com novas e vulgares peças; com frases súbitas na nova arte dos segundos e da pressa, são, ainda assim, vírgulas e pontos mais brilhantes que os nossos mais mirabolantes textos. Tem as pausas e os acentos mais capazes de introduzir-nos ao júbilo que as sintaxes mais profundas e desesperadas que possamos dar ao apelo de uma tão ignorante alma (como também é a nossa). Então, "foda-se". Diz-nos o que, entre nós mortais, mais se apega a imagem que desenha o espelho. Pois pior que entre os rosas parecer vermelho é pintar a cor mistral de um poeta eleito, num retrato de um pano sujo ou de uma suja flanela feito.

segunda-feira, 5 de setembro de 2011

O Templo de Ártemis



O dia preciso, quando supostamente se deu a cena descrita, não é aqui cabível pela simples razão da improbidade da memória daquele que guardou a história na cabeça até o momento oportuno de colocá-la no plano. Fato é que se deu entre o primeiro e o último dia de agosto do ano corrente. Embora não sendo fato – não a data ou ainda a história conforme os detalhes que a delineiam – nem por isso deixaria de ter lugar entre os autos das narrativas deste que se impõem como autor, e que se pensa capaz de enxergar qualquer imagem que dentro de si se faça constar.

De todo modo, independentemente de qualquer caráter criativo que se faça impendente nesta narrativa, é dado pela própria geografia do espaço em referência que, qualquer um que chegue através da Rua da Lapa, no instante em que enfrenta o local onde essa se cruza com a Joaquim Silva (lá numa esquina em que se faz estabelecer de um lado uma loja de tatuagens), percebe o passante que o corredor formado pelas edificações dos dois lados da rua dá lugar a uma suspeita clareira, assim cabida pela presença de um largo estacionamento, que se vislumbrado depois da meia noite de um dia de semana ordinário estará, provavelmente, vazio, fazendo assim do lugar uma espécie de grande sala dentro da qual o olhar deste que chega se fará rapidamente espalhar.

Oportuno será, com efeito, que a história deste ponto se inicie. E se iniciará conquanto o assistente aviste a senhora que caminha sobre a mesma calçada que ele, alguns metros a adiante, tendo a sua frente e sob o empunho das mãos um carrinho de bebê distinto pela sujeira e o amarrotamento impressos nele pelo tempo e uso, mas principalmente pela ausência da figura que o qualificaria a função, o bebê. Iluminada pela luz amarela vinda de um poste bem acima de si, a senhora sustenta a cabeça baixa enquanto vasculha o plano sob seus pés, logo quando avista uma lata de tinta vazia, larga por um breve instante o carrinho e se direciona ao objeto que se faz impressionar na sua atenção. Daqui, a justificativa para haver-se qualificado a lata enquanto vazia, uma vez que foi tomada pelas mãos da senhora com o cuidado e a delicadeza que se dedica não somente a uma peça valiosa, mas a uma peça que não despende do manuseador a força bruta que se emprega em objeto de peso como seria no caso de uma lata cheia.

É preciso, de todo modo, ir além e compreender, para lá da mecânica e da física implícitas ao gesto da mulher, o ofício e a demanda a que se entregava aquela quando da sonolência que sua feição exalava, viu-se dar lugar ao expressivo de um semblante intenso e preocupado, como se, ao mesmo tempo em que jogasse os olhos sobre a lata, fizesse da lata descoberta quando antes não era senão em potência; inábil feto a espreita sob o útero urbano que era ali a rua, a calçada e todo concreto que rodeava o objeto em questão. Há que se entender que a lata ganhava vida tal como a senhora se fazia descobrir na razão da sua própria, exercendo ali a função da parteira na medida mesma em que deixava de ser apenas uma figura mal tratada – dada a miserabilidade da indumentária, mas também o inoportuno do lugar e da hora em que a velha se punha no comando de um carrinho de bebê desocupado – para valer-se como aquela que trouxe a luz o pobre indefeso cuja mãe abanou no próprio ventre inerte na indecisa entre criatura e descarte em que se tinha aquele que agora a senhora levava do chão ao carrinho, posicionando com zelo e ternura a pouco útil lata de tinta tal como se ajeitasse ali um verdadeiro rebento.

E precisou o passante, conforme deixasse a senhora para trás, girar o pescoço e mantê-lo torcido com o queixo alinhado ao ombro, para testemunhar essa incumbência maiêutica que assaltou a senhora no curto espaço de alguns poucos minutos, entre a entrada na altura da Joaquim Silva e a saída já quase na curva onde a Rua da Lapa se renomeia como Rua da Glória, lá onde o referido perderia a visão por conta dos prédios que se erguiam ao redor do lugar, fazendo a clareira dissolver-se novamente em um corredor temeroso e mal iluminado.

quarta-feira, 8 de junho de 2011

Chuta que é macumba!

Saí de casa localizando-me entre o perímetro que a minha volta se demarcava e um outro mais obscuro, que meus pensamentos ruminavam com o pesar de uma vida passada. Pois se as ruas me pareciam tão sujas, era porque eu, acostumado que estava com certa assepsia pequeno burguesa, via a sujeira pigmentada nas paredes sem tinta ou nas construções decadentes que à margem da rua faziam-se erguer. Mas mais do que isso, sentia-me desumano vendo as lixeiras reviradas que espalhavam um lixo mal cheiroso pelas calçadas e desumano devia ser por não me recolher ao compadecimento velado com a miséria daquele que espalhou, uma vez que concebia, no todo daquele ambiente hostil, uma idéia de pobreza que se falava através da cidade e era com essa mesma idéia que meu íntimo conflitava. Assaltava-me uma sensação desconfortável como se despertencessemos um ao outro, eu e o lugar. E despertenciamo-nos conforme a constatação que tive posteriormente em retorno.

Seguindo o entrecho que descendo pela Francisco de Medeiros, nos arredores de Higienópolis, desaguaria na Av. dos Democráticos, percebi há uns cem metros a frente (ladeira abaixo) um grande prato que jazia no vão entre a rua e a calçada. Sustentava uma hepática farofa e alguns pedaços de um frango corpulento, empoleirado e assado. Ao lado, uma garrafa se equilibrava cheia pela metade, e continha um suspeito líquido transparente. Suspeito, pois, era apenas para mim, homem de pouca perspicácia e contexto, já que a um mais localizado ou com capacidade de dedução um tanto mais alerta saberia logo de cara tratar-se da inconfundível bebida a qual no interior se dá o nome de aguardente, essa mesma bebida que o carioca atinado nomeia cachaça.

Aos poucos compreendi tratar-se aquilo de uma oferta a graça de algum Deus negligente. E se eu adjetivava tão grosseiramente um tal Deus era porque não me parecia da altura de deuses justos aquele entrecho indigente que se via na distância entre o meu corpo e o prato largado. Ponderaria cidadão mais consciencioso que eu se, ainda, alguém concedia àquele deus sua oblata, devia agluma coisa fazer sentido, além da minha compreensão limitada. Mas enquanto eu me aproximava da tal oferta pensava no tipo que oferece ao seu deus o gosto de sua preciosa cachaça. Não como um abel, que sacrifica a mais doce das criaturas, um carneirinho inocente, ao ímpeto severo de um deus amedrontador. Não! Mas essa “imagem e semelhança” do deus cristão, ali, tomava o contorno humano e intimista de um mero colega. Ora, se tão nobre é esse líquido ardente que lhe invade a garganta com gozo e satisfação, é digno não só dos mortais, mas também dos fantasmas e, ainda com mais razão, das deidades. E se ele trata o seu Deus como um igual, não poderia esperar outra coisa da suma potência divina que o que ele próprio, de pobreza assumida, domina. Natural, então, que seja num lugar miserável como esse que um Deus assim seja erguido. Humanidade tão desonesta essa que se quer do tratamento tão solidário dado ao Deus que, em contrapartida, oferece ao outro apenas os restos minguados na podridão do lixo revirado. Não se devia mesmo confiar em um Deus que bebe.

Agora eu podia realizar a imagem do pobre diabo que revirava o lixo naquela rua todos os dias. Catando os restos daquilo que uns outros menos desgraçados se desprendiam como que na fortuna enganosa de sua própria miséria, e celebrando com espírito a cada pedaço de pão, a cada osso luzente onde ainda se via um pedaço de carne, fugia de uma fome severa como quem foge da brasa que assola os pés delicados de um homem descalço. E eu não pude me desfazer do deprezo que me fornecia a imagem do obtuso que ali se fundava. Aquele que se privava de um hedóneo banquete enquanto salvava do lixo o seu amargo alimento, pois em respeito ao deus alcoolatra e incompetente passava reto pela comovente delícia e revirava apenas o lixo. E eu que pensava que o lixo também era sagrado - da maldição sacra que ali se acumulava por entre a podridão esquecida e desnaturada de um consumo sem nota. Sagrado mesmo devia ser o estômago, esse que se fez sozinho com genética e funcionamento, que faz o uso daquilo que presta e joga fora o que resta e já não deve mais ficar dentro.

Aproximava-me já enrubescido por certo ódio de alma de uma espécie de dor do outro tomada, e via agora o prato de barro, com a delicadeza de um modesto artesanato, que dispendia o almoço ou a janta de uma figura sem rosto, que se exprimia na fome caruda do lixo revirado. Eu devia ter apenas ignorado. Devia mostrar minha sólida e irreprensível de cidadão educado, mas eu não pude.

Fiz-me de ímpeto revolucionário e a bandeja voou pelo espaço, e a farofa choveu pelos ares, despedassou-se o frango em migalhas e a garrafa quebrou e escorreu seu segredo nas ruas imundas e miseráveis. E ainda que a calma voltasse, e o sentido de certa vingança me fizesse mais morno, ainda era o lixo espalhado o que me incomodava.

E o que ainda incomoda.

quarta-feira, 4 de maio de 2011

A saga do homem-morcego no. 2

Após resolver os trâmites de sua entrada no ônibus – já que o homem-morcego havia esquecido a carteira (gênero de memória certamente subutilizado por um figurão da justiça como ele) – sentou-se ao fundo do veículo sem que nenhum comentário ofensivo houvesse sido resmungado pelos poucos passageiros que justificavam a viagem, do que se pode inferir que o herói não pulou a roleta quando, de pronto, ouviria ( para que não falte justeza ao personagem com a biologia do animal que o nomeia, também esse sentido tem em altíssima eficácia) reclamações da senhora que se sentava no banco logo ao lado do trocador - a mesma senhora que tanto reclamara 5 minutos antes quando um sujeito alto e magro praticou entrada semelhante no espaço restrito aos pagantes.

Curioso mesmo é que se podia notar no semblante do homem-morcego um desconforto resoluto com a trepidação continua do veículo, justamente por ser na parte de trás do automóvel que essa movimentação se faz mais brusca. E embora o letrado Bruce Wayne que se escondia por baixo do traje fosse versado em línguas, filosofia, matemática avançada, astronomia, e musica clássica (para não citar economia doméstica, dança de salão, moda e cultura sado-maso, que pela vulgaridade e metodologia difusa parecem se afigurar como ciências menores), não era capaz de associar o fenômeno físico da turbulência com a posição ocupada no ônibus uma vez que nunca antes havia entrado num transporte coletivo daquela natureza. Pois bem, manteve o desconforto na tez quase inerte (exceto por um leve levantar de sobrancelha, gesto sob qual se havia cristalizado a sublimação de experiências como dor de cabeça e asía, que o herói havia deixado de expressar há algum tempo na sua condição de sobre-humano, mas que nunca de fato deixara de sentir) até o instante em que o homem magro e alto se levantou dois pontos depois da entrada do Batman naquele transporte, e anunciou um assalto aos raros passageiros daquela viatura com um revólver empunhado ao alto com a mão direita.

Foi naquele momento que tiveram todos certeza da veracidade do homem fantasiado, visto que antes mesmo de se levantar, uma música orquestrada vinda do além (ou mesmo brotada do espaço, como em abiogênese descrita em livros antigos em que nascem ratos de uma pilha de roupas sujas) fez notar, por um direcionamento subliminar particular das atenções para a expectativa diante das atitudes possíveis do personagem, que era ele mesmo ali que tomaria a cena em protagonismo, que se antes lhe era digno pelo desconforto e descontexto da casta, seria agora pela justa virtude que lhe concedia a insígnia de herói. Levantou-se, pois, diante do algoz que parecia agora petrificado em frente à imagem de tão ostensiva autoridade. O bandido pensou em dar-lhe um tiro com a arma que tinha, mas ainda que sua precisão fosse irrepreensível (e sabe este narrador - por um dispositivo oculto que diz da natureza mesma da narração - que não era), imaginou as artimanhas que postulava o encapado que se erguia à sua frente: colete a prova de balas, campo de forca invisível, ou um dispositivo eficazmente elaborado para interromper as ações do bandido no instante da intenção anunciada. Nisso, a música que dava ritmo à cena se intensificava e deixava ainda mais pasmas àquelas pessoas que, por compreensão da própria existência atada ao exercício pessoal de um inalienável cogito, desentendiam a música que sobrevoava - e mesmo aqueles mais céticos se perguntavam: “ainda que fosse um filme e nós meros personagens, deveria a música para nós fazer-se ouvida?”. Foi quando o meliante, confundido na diegese de sua própria consciência, largou a arma, pediu desculpas a todos e, em particular para o herói, disse: “Se você me permite, descerei do ônibus no próximo ponto, e espero assim não incomodar mais a viagem de nenhum passageiro.”

Agora, cabia ao Batman a definição do impasse. Pensou, num primeiro instante, se teria o homem de fato cometido um crime: “Empunhou a arma e ameaçou seus iguais, mas até então sem nem roubo nem homicídio impetrado”. Ponderou, por um lado, as intenções iniciais do rapaz, incluindo nisso os termos de que já a ameaça e o empunho da arma se constituiam num crime. Pesou, no entanto, partindo de uma lógica que se lhe fora apresentada pela primeira vez há poucos minutos, as condições socio-econômicas do tal: tratava-se de um home negro e pobre, a julgar pelas roupas e pela necessidade de uma atividade criminosa tão questionavelmente rentosa considerando a quantidade e a condição financeira daqueles passageiros (exceto pelo próprio Batman, que apesar de não trazer consigo um tostão, trazia, no todo, alguns milhares de dólares investidos: na roupa, nas botas, na capa, na máscara e, certamente, no cinto). Decidiu, então, que o deveria deixar seguir sua vida; que não competia a ele – Batman – a escolha sobre o destino imediato do miserável. Mas havia um problema, e o próprio homem-morcego percebeu o disparate anunciado em deixar fugir o criminoso quando a música que, naquele momento, regia o combate versava sobre a magnificência e eficácia de um super-herói que, para além das virtudes morais, era homem de força e habilidade físicas inabaláveis. Ou seja, percebeu, por fim, que a trilha sonora por desconhecido demiurgo praticada não era aquela singela e introspectiva do personagem humanizado que reconhecendo a falibilidade indiscriminada do demasiado humano à sua frente, reconhecia a si mesmo no inimigo. Não! Ao contrário, tratava a música de um herói temido e implacável que não somente haveria de proteger os cidadãos modelos que espreitavam a cena naquele ônibus, mas que, sobretudo, faria servir de exemplo àquele infeliz criminoso (que apesar da condição social, possuía arbítrio e domínio de si para escolher as ações que fossem dentro de um escopo moral o qual não somente conhecia, mas do qual partilhavam, mormente, pessoas de origem semelhante ao do próprio bandido) para uma possível platéia que, não estando no ônibus, assistia à cena de algum lugar privilegiado onde, provavelmente, a música não pareceria em completo absurdo, como parecia àqueles poucos homens e mulheres que habitavam a cena.

Haja vista, o homem-morcegou puxou seu bumerangue na forma de um pequeno morcego antes que o superestimado vilão pudesse completar sua fuga e arremessou contra as pernas do tal. Dividiu-se o mecânico mamífero em dois, estes mediados por uma justa corda que se enroscou imediatamente nos tornozelos do algoz, fazendo-o cair. Quando a música já passara pelo ápice da intensidade e declinava a dinâmica em conformidade com o drama narrado, e antes que os contornos finais daquela captura se pudesse descrever, deixou-se a imagem do interior do ônibus para um plano geral que mostrava, no céu noturno sobre a Leopoldina, a projeção iluminada com a marca de nosso herói chiroptera. E pairou no ar, junto ao desfecho sonoro do enredo, uma sensação de justeza e conformidade da qual não poderia a polícia do Rio de Janeiro (e nem mesmo um altivo e implacável Capitão Nascimento) fazer-se, de forma alguma, agente.

terça-feira, 19 de abril de 2011

As novas ondas da estética

Sentava-me todos os dias em uma cadeira que permanecia frontal ao aparelho de microondas enquanto a comida girava e girava. Se é dito que “a arte imita a vida” também aquela imagem que me chegava aos olhos, atravessando uma frágil porta translúcida, me parecia arte àquela altura. Se uma caixinha barulhenta me dispunha as imagens repetidas de um prato em movimento, fazia-me lembrar a televisão que em casa tinha. A novela que praticava, no entanto, não pertencia aquele restrito universo dentro do aparelho; versava, mormente, sobre uma fome primitiva que me fazia esquecer cada segundo passado e contabilizado pelo marcador digital, criando assim os aspectos encadeados de uma ficção muito bem definida. Havia, ali, um protagonista de direito: a comida; um argumento que lhe era externo: minha fome; e um enredo que se deslanchava sem maiores conturbações (a não ser pela ansiedade ciosa que minha urgência mastigava), a saber que cada partícula daquele digestivo se esquentava para suprir uma demanda absolutamente irracional de meu critério alimentar. Um belo espetáculo surgia daquela alegoria giratória e iluminada. O som rangente que indicava a ação das microondas sobre o alimento (ainda que não houvesse ali nenhuma ligação direta entre um e outro e o barulho viesse de algum mecânico processo necessário à produção das ondas mas cuja essência nada tinha a ver com o ser daquelas que davam nome ao aparelho, eu assim atribuía-lhes correspondência, posto que apenas as ondas e o alimento faziam-se personagens) era descriminado com minúcia pelo relógio que se trazia acima e a parte daquela ópera eletrônica.

Questionei-me quando faltavam ainda 30 segundos para o final do último ato: o alimento, conforme a passividade de sua conduta (e mesmo que girasse fazia-o por um capricho daquele ambiente torturante para um ser vivo de qualquer espécie), representava ali não o papel do herói, mas o da vítima. E as nobres ondas, que castigavam com um calor muito próprio e diferente do fogo das inquisições habituais, era o carrasco assumido Mas não o vilão odiado, visto que era uma extensão afectada de minha fome que lhe pedia o tratamento dado. Devi julgar-me um sádico quando o meu espetáculo pedia a curra de um protagonista indefeso, mas eu não pude. Pois carecia àquela altura de certa moralidade maniqueísta necessária ao julgamento de tais pudores. Achei belíssima então aquela imagem – a do profeta que ardia por dentro e por fora à maneira de um inquisidor invisível. Entendi naquele momento porque o prato girava e porque devia girar; fazia-o para mostrar-me cada pedaço exposto e como choravam os grãos, a carne e os vegetais. Algum diretor de arte sagacíssimo havia percebido, antes de qualquer engenheiro a que competia, a necessidade de uma bandeja giratória. Assim como um Canova, dando-se conta da imobilidade de sua figura esculpida, fê-la de forma a exibi-la aos olhos frontais de um observador estacionado em três posições distintas, dando a essa unidade de perfeição a insígnia redundante de “As três graças”. Mas diferentemente dessa onde a imagem parecia destacada do tempo, ociosa e impecavelmente imóvel, a obra que eu deleitava se desenrolava nos segundos contados de uma minha natureza predatória e salivante. Eu consumia com todo fervor aquela ansiedade, com a mesma violência que iria consumir depois uma refeição já sem tanta arte.

E como num final apoteótico o aparelho gritara. Gritara como estivesse em pleno exercício de um gozo fulminante, apenas para anunciar um fim premeditado. Gritara como gritasse o executor enlouquecido que esquarteja a sua vítima já desfalecida dando ao estreito de sua feitura a dimensão exacerbada da arte. E se “a arte imita a vida”, ali também um fac-símile havia-se reproduzido; e imitara-se a vida tão bem, que julguei que era essa – doce como sangue na língua do carnívoro – a própria morte, encarnada e encenada, verdadeira e espetacular, como nenhuma saciedade consegue imitar.

domingo, 3 de abril de 2011

As formas do conteúdo

Saindo do metrô na estação da carioca (quando deverá o leitor ignorar que existem duas saídas possíveis nesta estação, tomando o deslize por oportuno), entrei na rua homônima e me conduzi por ela até uma loja disposta na esquina onde a rua é invadida pela Av. República do Paraguai. Entenda-se “loja” por “espaço físico restrito onde se vende coisas” e a sentença parecerá vaga, quando solicitará o interpretante que eu defina tal espaço sob o lexema “sebo” indicado em unidade cultural definitiva a qual permite um juízo mais propositado aos desígnios do narrador. Sublinhar-se-á, no entanto, que apesar do esforço em conduzir a sentença a um campo semântico em que o leitor possa, sem desvios, concluir com alguma precisão a natureza do lugar a que se empenha o retrato falado, se falha ainda na permissividade do termo que subentende categorias de definição de todo modo imprecisas. O termo “sebo”, pois, se aplica à loja em que o objeto da venda é um livro usado - Ainda que o astuto em posse de um dicionário se apresse em declarar que sabe, com absoluta resolução, o que é um livro, titubeará em elencar em tópicos circunspectos aquilo que na expressão “livro usado” corresponde ao “usado”. Deverá definir, deste modo, que o simples ato de abrir o livro não corresponderá ao termo do uso a que se refere; menos ainda fará sugestão de que o uso, nesse caso, corresponde à leitura, ainda que, se assim fosse, precisaria delinear se o “uso” de ocasião se refere à leitura do livro inteiro ou se se basta apenas a leitura dos dois primeiros parágrafos (ou parágrafos intermediários escolhidos em orientação arbitrária) para determinar tal denominação. Pensará - com alguma argúcia até - que o definitivo do uso se dá pela posição de revenda, ou seja, de que o livro foi uma primeira vez vendido e de que, agora, se dispõe pela segunda (terceira, quarta, etc.) vez à venda. Não conseguirá, entrementes, se posicionar diante de excetos casos em que o livro chegou ali sem a mediação de uma primeira venda ou, até mesmo, àqueles em que ainda sendo a propósito de uma segunda ou terceira vendas, se apresenta o livro em estado de novo, não havendo, por força do uso, perdido o lacre com que saíra da fábrica. Chegará à conclusão, então, de que o definidor do termo é, de fato, o próprio lugar, que estando destinado à venda de livros usados, impõe, sem demérito literário ou desavenças críticas quaisquer, ao livro que ali se apruma o designativo mercadológico próprio do espaço.

Sendo ou não desse modo, entrei: isso porque, a despeito da forma da expressão e de certa indeterminação do conteúdo, parece-me suficiente o verbo com que designei a ação.

A loja, que se dispunha em profundidade por dois estreitos corredores formados na mediação de uma estante central que me alcançava à altura do umbigo, havia adotado um modo de organização peculiar na distribuição dos livros. Quando antes se propunha agregar títulos sob a importância de disciplinas/assuntos, fazia agora uma organização lateral em que certos livros se emparelhavam a partir da especificidade de seus autores. Nota pouco efetiva se se pensar que em comum com seus autores é, em geral, consequente que os livros se ostentem sob a mesma demanda disciplinar. Dito isso, o caro leitor poderá concordar que todos os livros de um mesmo Wittgenstein poderiam dispor-se lado a lado numa prateleira destinada a livros de filosofia. O mesmo, no entanto, não se pode dizer sobre os livros de um bem versado em campos diversos como Umberto Eco. Pois eis a surpresa pela qual fui acometido. Provavelmente porque a loja não dispusesse suficientes volumes para uma prateleira destinada apenas a livros deste autor, foi bem ao lado de “O pêndulo de Foucault” que me encontrei sob a tal surpresa: um livro empenhado em problemas de semiótica e estética em estranha arrecadação numa prateleira a princípio destinada a romances. Surpreendeu-me, em todo caso, mais pela apelação de um contexto (tal qual um ornitorrinco, que de “criatura de Deus” foi rebaixado à “aberração natural” assim que o escopo classificativo das ciências dos homens resolveu trocar a definição empírica pela teleologia ensaiada nos diários de Darwin) que por uma estatística qualquer que me indicasse a provável impossibilidade de encontrá-lo na loja. Em todo caso, tomei-o em mãos e me dirigi ao balcão assim que identifiquei que o preço estava em acordo com uma valoração pessoal minha (que leva em conta não apenas o nome do autor e o estado do livro, como também o tempo em que se cerca uma possível primeira leitura que poderá ocorrer desde a compra efetiva até a chegada em meu destino próximo, determinando assim que esse não será mais um daqueles livros não lidos em minha biblioteca pessoal, salvo que eu já tenha devorado pelo menos um primeiro e, talvez, segundo capítulos). Chegando ao balcão, atende-me um homem atencioso que me toma das mãos com cuidado o livro, enfiando-o em uma sacola. De cabelo e barba rasteiros, também a juventude do homem (que beirava a casa dos 50) contrastava com a imagem que eu tinha em memória do antigo senhorio daquele estabelecimento: quando um senhor arqueado sobre um livro, sentado em um banco no canto da loja, alisava as longas e alvas barbas como que despreocupado com a função que naquela loja o acompanhava e com o tempo que se perdia a cada instante, tempo – ao avesso das páginas – impassível de retrocesso.

Paguei a quantia que me competia e o homem me entregou a sacola com o livro. Antes de me virar, contudo, perguntei:

- Não trabalhava aqui um senhor de idade avançada, com a barba branca descendo ao pescoço de tão comprida?

O homem, antes esculpido em matéria inerte em imagem que não me dizia mais que os excertos de um manual técnico, transformou-se inesperadamente numa narrativa mítica e melancólica em língua que eu desconhecia. Seus olhos encheram-se de lágrimas (ainda que nenhuma tenha, de fato, corrido abaixo) e falou-me:

- Esse era meu pai que faleceu recentemente.

Perguntei, já inoportunamente - como se fizesse parte da história apenas por comigo ter na memória a imagem lúcida do senhor em vida:

- Quando foi?

No que o homem respondeu, em um misto de conformação e culto:

- Fez seis meses semana passada.

A história que se anunciava na emotividade que se desenrolava sob os olhos do homem (que parecia, em alguns segundos, querer descer como uma chuva torrencial na oportunidade do desabafo prosódico com o desconhecido) se velou no silêncio que se seguiu à sua resposta, enquanto eu o encarava esperando por algo mais a ser dito.

Compreendi naquele instante que o diálogo do homem era com outro e suas formas expressivas tinham também natureza diversa. Compreendi, sobre todas as coisas, o que viria extrair mais tarde do livro do qual me fiz proprietário naquele dia: que basta que a forma seja em si, para que seu conteúdo, a rigor, se declare nos contornos e preenchimentos de seus espaços, pouco importando que alguma ciência consiga ou não dar cabo deste que é o significado e nos alcança sob legenda imprecisa; que a expressão não se dá nos intervalos do signo, em cuja divisão feita pelo estudioso se pensa existir algum fundamento maior que a expressão em si, mas no fenômeno indivizivel que ocorre entre o impulso intencionado daquele que expressa e a recepção crédula de um outro que, ausente de preocupações analíticas, lê a mensagem como se fizesse sob um braço extenso da própria percepção; que a reza de um homem às suas deidades não estará, em conteúdo, acessível ao antropólogo, cujo arcabouço teórico, no entanto, será suficiente para o preenchimento e contorno do seu livro e esta sua própria reza; que aquele que escreve pensa, o que pensa existe, o que existe é pensado e, com efeito, escrito pelo outro que lhe dá forma e, portanto, conteúdo; que o livro usado é, sobretudo, um livro e o “sobretudo”, na posição de sincategoremático ou não, pouco importará ao que o usa (salvo nos casos em que o frio se faça "de fato", para além do contingente).

terça-feira, 22 de março de 2011

Insensível, insensível...

Entro no restaurante e me sento no banco junto ao balcão.

Peço um guaraná (tentando encontrar o hábito de não tomar bebidas alcoolicas enquanto o sol ainda estiver a pino)

Na televisão suspensa no alto, ao canto esquerdo do balcão, o jornal noticia uma nova contabilidade dos mortos na tragédia ocorrida no Japão.

Faço constar aqui, pois, uma deliberada ponderação sobre o modelo vigente em estatísticas do gênero, que ausentes de todo e qualquer coorporativismo, não dão nota nem números especiais a estes que, dentre os mortos, contam como estetísticos (ex-estatísticos, em todo caso) ou funcionários do meio.

Mas penso nisso menos como medida humorada (ainda que me paute pelo humor mais que pela precisão realista) que na observância líquida e cirúrgica dos fatos que me convém, tal que a atualização da contagem de mortos não me faz restar mais comovido ou chocado com o acontecido.

Enfim, a coisa foi mesmo feia.

Do meu lado direito, então, ouço uma criatura efeminada comentando com outro (ou outra, sabe-se lá...) a respeito da tragédia no continente asiático - tomando lembrança, em recurso, da outra que se abateu recentemente sobre a região serrana do Rio de Janeiro:

- 2011 é ano solar. Ano de desencarnação em massa...

- Meu deus! - Eu penso comigo mesmo, ainda que seja ateu e a companhia dos meus próprios pensamentos seja tão desagradável a mim quanto é ao meu provável leitor.

- Devia ter visto que era um restaurante macrobiótico antes de entrar... - Concluo.

E de repente, os vinte e tantos mil mortos pelos quais choram outros tantos milhões de vivos parecem-me dispor de importância menor que uma asneira qualquer dita por um Walter Mercado gafapastas da zona sul carioca.

Eu devo mesmo ser uma dessas almas penadas que veio ao mundo apenas para sentenciar a regra de que a raça humana, definitivamente, não presta.

Que se foda!

Pago as minhas contas.

Não tem nem Obama que me queira dar lição de moral e não ouça um palavrão como resposta.

Morrer afogado, afinal, não deve ser tão pior que engasgado com uma azeitona ou esmagado por uma senhora gorda caída do sétimo andar (ou, ainda, alvejado por um projétil mercenário de um soldado norte-americano lá onde o inglês nem direito chegou)

Defendendo-me - sob o risco de parecer ainda mais cretino - relatando que, algumas horas depois, comprei um salgado numa pastelaria de chineses na rua da Glória.

(Pra variar, tava uma merda).

quinta-feira, 24 de fevereiro de 2011

Os jardins suspensos da Babilônia

Poderíamos precisar a narração segundo a data do único sétimo dia de dezembro do ano de 2010, embora eu não coloque em dúvida, em qualquer hipótese, que narrativa similar se possa haver dado em data distinta dessa. O narrador – este a quem cabe a assumpção de testemunha ocular nos supostos fatos – poderia também ser outro, ainda que, desse modo, haveria de narrar provavelmente com outras palavras ou, quem sabe, as mesmas tomariam forma genuinamente peculiar por uma disposição qualquer em ordem avessa ou diversa da que aqui se apresenta. De fato, qualquer um que, nesta data circunspecta, parasse-se num ponto de ônibus bem em frente a entrada da estação ferroviária de Olaria, lá onde a Rua Dr. Alfredo desemboca na Leopoldina Rêgo, entre as 18:25 e as 18:40, aproximadamente, estaria apto a reclamar para si o título de testemunha da cena que lhes confiarei em trato.

Aquela senhora atravessou a rua segurando, com a mão direita, as calças enquanto abraçava um montante algo parecido com lixo: guardanapos sujos e, talvez, um ou dois copos plásticos amassados pelo braço esquerdo contra o corpo na altura das costelas. Depois de quase ser atropelada por um carro em alta velocidade – que tratou de evitar uma tragédia utilizando o expediente de uma brusca freada, chamando assim minha atenção para a personagem pela primeira vez – chegou-se junto às grades que separam o ponto de ônibus da ferrovia por onde passaria em algum momento um trem.
Demorei a compreender o movimento da velha e mesmo a identificar-lhe o gênero, como também demoraria um espectador outro, desavisado como eu, já que não apenas a velhice e a magreza – essas que lhe roubavam praticamente a garantia da feminilidade – dificultavam essa identificação, como também as roupas: um jeans bastante largo e surrado ancorava-se na região da cintura unicamente sob a ação da mão direita que, firme como uma convicção, impedia uma queda que parecia iminente a cada movimento dela; e uma camiseta qualquer, azul com mangas amarelas que a vestia conforme um senhor franzino, já que os seios se ocultavam em absoluto– pouco volumosos que eram – sob o tecido pouco justo da veste.

Mas se compreendi o que testemunhava num segundo instante foi apenas por ouvir as palavras de um senhor que se sentava num dos bancos do ponto e comentava com outro homem ao seu lado: “Ela pega qualquer coisa que esteja no chão; papel, copo, bituca de cigarro... Não fica nada. Esse é o ponto mais limpo daqui até Bonsucesso, pode ver! Não sobra uma migalhinha no chão.”

Falava ele daquela senhora e qualquer criatura que estivesse na posição mesma onde eu me encontrava naquele instante e compreendesse, ainda que superficialmente, o português fluído da zona norte do Rio de Janeiro, o poderia ter ouvido e compreendido em meu lugar. Logo em seguida, a velha deu contornos mais definidos àquela fala ao se abaixar e catar um guardanapo amassado que um sem educação qualquer acabara de largar. O homem, como que para ilustrar sua história e com o peito estufado pelo excesso de razão, olhou para seu comparça e apontou para a senhora dizendo: “Tá vendo só!”

Os cabelos brancos e ensebados lhe caíam sobre o pescoço e o rosto, quase a alcançar-lhe os ombros, suavemente ondulados de modo que se poderia – por que não? – declara-los lisos, enquanto ela permanecia alheia ao senhor que contava ao amigo uma história ligeiramente distinta da minha, mas na qual aquela senhora era também a protagonista. A pele era escura como a de uma índia severamente castigada pelo sol. Do rosto, pouco se via algo além da idade avançada. Isso também porque aqueles cabelos que lhe faziam avançar sobre o rosto permaneciam lá quase todo o tempo já que a cabeça se mantinha baixa em permanente ocupação, vasculhando o território asfaltado como nem um faxineiro remunerado faria.

A história poderia encerrar-se na gloriosa moralização do gesto com o qual parecia ela querer assear o espaço público, conforme o julgamento do homem sentado, não fosse por um detalhe significativo e, talvez, ignorado numa história que se contasse com um pouco mais de pressa, tendo em vista o mesmo recorte de tempo e lugar. A velha seguia em direção às grades que se estendiam sobre a mureta da ferrovia toda vez que catava algo, porque lá atirava o “lixo”. Ora, se deixando limpas a rua e a calçada a senhora, deliberadamente, sujava a margem dos trilhos da ferrovia, o propósito benemérito que lhe incutia aquele senhor sentado deveria ser posto em suspenso e se, justificado não haver hierarquia simbólica entre aqueles espaços tendo em conta que existe e estava ali ao alcance um lugar próprio para aquele com o estigma do lixo ser depositado em nome da civilidade e da boa educação, devemos supor que a razão da velha era de natureza outra que não aquela moral ou pedagógica que via nela o outro narrador.

O caso é que a atenção da senhora parecia se dirigir muito mais para o destino recorrente dos desfeitos e descartados que ao possível inconveniente a que eles davam nome quando no meio da rua ou na calçada. Aquele ser humano improvável, objeto da minha atenção durante aqueles 10 ou 15 minutos, atravessou mais uma vez a rua – ignorando o tráfego e fazendo menção, novamente, a uma quase tragédia -, enfiou a mão esquerda dentro de uma lata de lixo disposta na entrada d’uma pastelaria quase em frente ao ponto d’onde eu observava (isso porque a mão direita mantinha-se no confronto contra a queda da calça todo o tempo), arrancando de lá um pacote de biscoitos vazio, um ou dois palitos de picolé e um pequeno copo de isopor descartável. Gesto mais uma vez seguido pelo script, que consistia em atravessar a rua e lançar dejetos na margem vulnerável da linha do trem.

Pois se é verdade que pelo uso e função damos às coisas nomes distintos daqueles que se poderiam ler na estampa de um outro contexto, tambem aqueles detritos deveriam receber nova nomenclatura nos autos desta narrativa, uma vez que a urgência que os impendia agora não mais era a do despojo ou da repulsa, mas a de alguma mágica propriedade em propósito da qual se pedia jogar-los na margem dos trilhos: transubstanciação semelhante a que ocorre com os dejetos e fezes de alguns animais quando se fazem suprir nutrientes em terras destinadas a cultura de vegetais. Deveria, então, compreender o observador comprometido, em razão do gesto da velha, a categoria em que se incluía o comportamento que se dispunha a observar. Difícil mesmo seria imaginar uma espécie capaz de florescer no árido solo da margem dos trilhos, composto quase que exclusivamente de granito, alimentada por matéria pouco orgânica como a que se tem nos restos produzidos pelo consumo urbano.

Mas ainda que o perfume espalhado não fosse assim agradável e o jardineiro em momento algum se tenha posto a sorrir, certo é que também no aspecto morbo da farsa há alguma cor e beleza como aquelas que se vê nas flores.