quinta-feira, 24 de fevereiro de 2011

Os jardins suspensos da Babilônia

Poderíamos precisar a narração segundo a data do único sétimo dia de dezembro do ano de 2010, embora eu não coloque em dúvida, em qualquer hipótese, que narrativa similar se possa haver dado em data distinta dessa. O narrador – este a quem cabe a assumpção de testemunha ocular nos supostos fatos – poderia também ser outro, ainda que, desse modo, haveria de narrar provavelmente com outras palavras ou, quem sabe, as mesmas tomariam forma genuinamente peculiar por uma disposição qualquer em ordem avessa ou diversa da que aqui se apresenta. De fato, qualquer um que, nesta data circunspecta, parasse-se num ponto de ônibus bem em frente a entrada da estação ferroviária de Olaria, lá onde a Rua Dr. Alfredo desemboca na Leopoldina Rêgo, entre as 18:25 e as 18:40, aproximadamente, estaria apto a reclamar para si o título de testemunha da cena que lhes confiarei em trato.

Aquela senhora atravessou a rua segurando, com a mão direita, as calças enquanto abraçava um montante algo parecido com lixo: guardanapos sujos e, talvez, um ou dois copos plásticos amassados pelo braço esquerdo contra o corpo na altura das costelas. Depois de quase ser atropelada por um carro em alta velocidade – que tratou de evitar uma tragédia utilizando o expediente de uma brusca freada, chamando assim minha atenção para a personagem pela primeira vez – chegou-se junto às grades que separam o ponto de ônibus da ferrovia por onde passaria em algum momento um trem.
Demorei a compreender o movimento da velha e mesmo a identificar-lhe o gênero, como também demoraria um espectador outro, desavisado como eu, já que não apenas a velhice e a magreza – essas que lhe roubavam praticamente a garantia da feminilidade – dificultavam essa identificação, como também as roupas: um jeans bastante largo e surrado ancorava-se na região da cintura unicamente sob a ação da mão direita que, firme como uma convicção, impedia uma queda que parecia iminente a cada movimento dela; e uma camiseta qualquer, azul com mangas amarelas que a vestia conforme um senhor franzino, já que os seios se ocultavam em absoluto– pouco volumosos que eram – sob o tecido pouco justo da veste.

Mas se compreendi o que testemunhava num segundo instante foi apenas por ouvir as palavras de um senhor que se sentava num dos bancos do ponto e comentava com outro homem ao seu lado: “Ela pega qualquer coisa que esteja no chão; papel, copo, bituca de cigarro... Não fica nada. Esse é o ponto mais limpo daqui até Bonsucesso, pode ver! Não sobra uma migalhinha no chão.”

Falava ele daquela senhora e qualquer criatura que estivesse na posição mesma onde eu me encontrava naquele instante e compreendesse, ainda que superficialmente, o português fluído da zona norte do Rio de Janeiro, o poderia ter ouvido e compreendido em meu lugar. Logo em seguida, a velha deu contornos mais definidos àquela fala ao se abaixar e catar um guardanapo amassado que um sem educação qualquer acabara de largar. O homem, como que para ilustrar sua história e com o peito estufado pelo excesso de razão, olhou para seu comparça e apontou para a senhora dizendo: “Tá vendo só!”

Os cabelos brancos e ensebados lhe caíam sobre o pescoço e o rosto, quase a alcançar-lhe os ombros, suavemente ondulados de modo que se poderia – por que não? – declara-los lisos, enquanto ela permanecia alheia ao senhor que contava ao amigo uma história ligeiramente distinta da minha, mas na qual aquela senhora era também a protagonista. A pele era escura como a de uma índia severamente castigada pelo sol. Do rosto, pouco se via algo além da idade avançada. Isso também porque aqueles cabelos que lhe faziam avançar sobre o rosto permaneciam lá quase todo o tempo já que a cabeça se mantinha baixa em permanente ocupação, vasculhando o território asfaltado como nem um faxineiro remunerado faria.

A história poderia encerrar-se na gloriosa moralização do gesto com o qual parecia ela querer assear o espaço público, conforme o julgamento do homem sentado, não fosse por um detalhe significativo e, talvez, ignorado numa história que se contasse com um pouco mais de pressa, tendo em vista o mesmo recorte de tempo e lugar. A velha seguia em direção às grades que se estendiam sobre a mureta da ferrovia toda vez que catava algo, porque lá atirava o “lixo”. Ora, se deixando limpas a rua e a calçada a senhora, deliberadamente, sujava a margem dos trilhos da ferrovia, o propósito benemérito que lhe incutia aquele senhor sentado deveria ser posto em suspenso e se, justificado não haver hierarquia simbólica entre aqueles espaços tendo em conta que existe e estava ali ao alcance um lugar próprio para aquele com o estigma do lixo ser depositado em nome da civilidade e da boa educação, devemos supor que a razão da velha era de natureza outra que não aquela moral ou pedagógica que via nela o outro narrador.

O caso é que a atenção da senhora parecia se dirigir muito mais para o destino recorrente dos desfeitos e descartados que ao possível inconveniente a que eles davam nome quando no meio da rua ou na calçada. Aquele ser humano improvável, objeto da minha atenção durante aqueles 10 ou 15 minutos, atravessou mais uma vez a rua – ignorando o tráfego e fazendo menção, novamente, a uma quase tragédia -, enfiou a mão esquerda dentro de uma lata de lixo disposta na entrada d’uma pastelaria quase em frente ao ponto d’onde eu observava (isso porque a mão direita mantinha-se no confronto contra a queda da calça todo o tempo), arrancando de lá um pacote de biscoitos vazio, um ou dois palitos de picolé e um pequeno copo de isopor descartável. Gesto mais uma vez seguido pelo script, que consistia em atravessar a rua e lançar dejetos na margem vulnerável da linha do trem.

Pois se é verdade que pelo uso e função damos às coisas nomes distintos daqueles que se poderiam ler na estampa de um outro contexto, tambem aqueles detritos deveriam receber nova nomenclatura nos autos desta narrativa, uma vez que a urgência que os impendia agora não mais era a do despojo ou da repulsa, mas a de alguma mágica propriedade em propósito da qual se pedia jogar-los na margem dos trilhos: transubstanciação semelhante a que ocorre com os dejetos e fezes de alguns animais quando se fazem suprir nutrientes em terras destinadas a cultura de vegetais. Deveria, então, compreender o observador comprometido, em razão do gesto da velha, a categoria em que se incluía o comportamento que se dispunha a observar. Difícil mesmo seria imaginar uma espécie capaz de florescer no árido solo da margem dos trilhos, composto quase que exclusivamente de granito, alimentada por matéria pouco orgânica como a que se tem nos restos produzidos pelo consumo urbano.

Mas ainda que o perfume espalhado não fosse assim agradável e o jardineiro em momento algum se tenha posto a sorrir, certo é que também no aspecto morbo da farsa há alguma cor e beleza como aquelas que se vê nas flores.