domingo, 28 de novembro de 2010

Pública República - pequenas crônicas sobre grandes cidades...

A cidade é fria.

Em pleno verão, os raios das primeiras horas de sol não são suficientes para aquecer o estrangeiro aviltado pela realidade dantesca que o cerca. “São Paulo” – Pensará ele, como se o próprio nome evocasse cada detalhe do espaço, do clima, e das pessoas que parecem constituir algo como uma natureza do lugar. “Natureza?!” – é o que se perguntará o forasteiro, certo de que não há nada de natural naquilo.

Saindo do metrô na estação da República, atravessando a praça o deslocado aventureiro se deparará com uma jovem que se deita ao chão, escorando-se no metal da porta corrediça de uma loja qualquer (talvez uma casa lotérica ou um curso de inglês, mas a jovem lhe atrairá em demasia a atenção para deixar espaço a especulações desse tipo – pouco importa qual loja será). Cobre-se com um velho cobertor enquanto empunha um sorriso tão deleitoso que parecerá a jovem ter esperado toda a noite por aquele descanso impróprio – ou o deleite é conseqüência de algum entorpecente pesado, justificando assim o prazer em total despropósito. A jovem tem lábios lindos e grossos, e as bochechas enrubescidas contrastam o tom de pele com a posição que a menina ocupa numa calçada perpendicular à praça da República. O piercing no nariz e o cabelo - despenteado em arranjo intencional – acusam também a disparidade com a realidade que ela molda a si ao deitar-se sobre o concreto de uma rua imunda. O estranho continua andando sob o risco de perder-se naquela bela jovem e apaixonar-se por ela, que lhe desvirtua a mais conservadora orientação classista. Cessa o olhar, no entanto, visto que nem lá nem na Normandia é direito sustentar a visada diretamente sobre o rosto de um inteiro desconhecido.

Mais tarde no trajeto, dois jovens efeminados e uma moça de cabelos coloridos (que parecem saídos dos subúrbios de Berlim em um filme B de algum diretor desconhecido) conversam como se o dia não houvesse descido. Divertem-se em alguma discussão que o estranho jamais estará apto a introduzir-se. Divertem-se, mas parecerão dispostos a brigar ao rapaz que chega pela rua que vem da praça. E seja qual ou quais forem os motivos de uma possível briga, não será gratuito e nem poderia ser. Contornando o Largo do Arouche pela Av. Duque de Caxias o passante será convidado a parar-se diante de um solene mural na av. São João onde a mesma está estampada numa fotografia da década de 50. Lê-se logo acima: “Departamento de polícia de proteção a cidadania”. Os tempos, em todo caso, são outros. As pessoas de terno e chapéu deram lugar a moicanos, travestis, piercings, bonés. Também os bonés que se espalham pelas cabeças locais irão causar estranheza ao gentio abismado, tal qual alguma religião ortodoxa se fizesse presente na distância que separa esse homem da cidade sob seus pés e sobre sua cabeça.

É, sem dúvida, uma cidade hostil. Mas isso tem como mérito, a honestidade. Hostil é como todas as cidades são e como não poderiam jamais não ser. Caso esse evidente na justa necessidade de uma polícia para proteger a tal - a “cidadania”. Não que seja necessária a visão dos dois pombos se alimentando dos pequenos pedaços brancos espalhados num vômito rosado, conforme verá nosso homem ao retornar de seu passeio pelo outro lado da mesma av. Vieira de Carvalho que o haveria levado mais fundo na celebre São João não fosse a pressa ou a necessidade de dar tapas contra o tempo, para se compreender o dado. Nem que essa realidade justifique qualquer ato desumano e impensado que atente contra a paz de espírito de um outro cidadão qualquer. Nada obstante, a hostilidade que a cidade carrega é resultado do simples fato de haver uma estrutura tal como “a cidade”. E não é por conta das múltiplas identidades que ali se encontra, como se a diferença fosse sempre sinônimo de guerra iminente. Tampouco haverá culpa alguma subjacente ao fato de ter sido construída toda em substância tão dura como o concreto. A hostilidade da cidade vem, de outro modo, da indiferença.

Se é possível transitar por toda extensão visível de asfalto é porque o valor chapado de uma nota de 50 reais é o mesmo para o comerciante ávido como para o bandido a espreita, para o taxista esperto como para o mendigo desesperançoso. E aqui ou ali se compra com a mesma retórica não importando de que mão veio o dinheiro, nem para que mão irá.

O estrangeiro, pois, perceber-se-á estranho toda vez que saindo de um lugar seu de origem, onde já naturalizou todas as formas de relações confusas como aquelas às quais o mesmo se absteve de dar nomes em terra natal, chegar a uma cidade outra – como aquela ou qualquer uma – onde o direito a cidadania é um bem em permanente vigilância, como a carteira no bolso de trás da calça que o paranóico apalpa a cada minuto, pois dá mais valor ao dinheiro que traz no bolso que à vida que pulula diante dos olhos. O que dizer, então, dessa paranóia necessária chamada polícia que qualquer cidadão ostentará como título de ordem a cada vez que um desafio qualquer lhe for posto ao alcance? Dir-se-á que é coisa da cidade, lá onde o grito é um desabafo tanto quanto um alarme, um comando ou uma forma de arte.