quarta-feira, 14 de março de 2018

O busto de Hera






Felipe, de 11 anos, pula de cima da cama com um boneco empunhado e alcança uma massa de brinquedos depositada no chão, projetando a figura que tem em mãos como se se dispondo a atacar um inimigo cruel, a quem não se deve conceder abono nem na fantasia mais inocente.

Do outro lado do quarto, Luis, prestes a completar seu décimo segundo ano de vida, organiza uma fortaleza com caixas de sapato e livros, para servir de base ao exército de plástico que mantém ao seu redor. Silencioso, trabalha diligente naquela organização enquanto, vez por outra, levanta a cabeça para observar a movimentação do amigo.

Trata-se de uma brincadeira em comum, mas em que os dois participantes, em juízo de duas personalidades muito distintas respectivamente, encontram prazer e motivação. Felipe, aos golpes e gritos, encenando situações de combate e, eventualmente, narrando sua própria continuidade. Luis, concentrado, escolhendo posições estratégicas e exercitando seu talento em encontrar soluções arquitetônicas, que deveriam satisfazer tanto aos desígnios da diplomacia entre amigos quanto à guerra fictícia que se anuncia como cenário em vista.

A mãe entra no quarto e interrompe a ação, ordenando indulgentemente às crianças a seguir para a cozinha, onde o lanche se faz à espera. No caminho do quarto à cozinha, encontram-se o pai e a avó de Luis, sentados no sofá, assistindo tevê, calados. O pai tem consigo um copo de refrigerante, enquanto a avó se entretem à mão com um de Whisky. A sala se estende como um largo corredor entre a porta do quarto e a abertura que inicia a cozinha, mas a resignação dos dois diante do aparelho determina que a única atenção dirigida à cena pelas crianças se direcione aos ruídos que se projetam da televisão para fora, de onde se pode ouvir com clareza apenas a voz do apresentador de um programa de auditório, que tanto reconhece o despropósito do show que se limita a ler as indicações de roteiro no prompt eletrônico, incluindo aqui e ali uma expressão indiomática qualquer para dar cor a uma fala que não enaltece senão o enfado da proposta.

Durante a refeição, Felipe explica a Luis seus planos para o grupo de soldados que se encontram sob seu comando, enquanto Luis, com os olhos e ouvidos atentos ao amigo, mastiga apropriadamente cada pedaço que, com uma ou duas mordidas, arranca do sanduíche. Vez por outra, pergunta sobre uma qualquer irrelevância, mas apenas para garantir ao outro a atenção que, de fato, investe em seu interlocutor.

Ao cair da noite, após muitas idas e voltas, brincadeiras findas e reiniciadas, a mãe de Luis retorna ao quarto e anuncia aos garotos que a hora de deitar se aproxima. Ela explica a Felipe onde ele deve dormir e orienta - em mãos com uma toalha entregue a ele em seguida – o menino que siga para o banho. Luis, no conforto e intimidade de sua própria casa, cuida de si e esforça-se ao máximo para que o amigo não se sinta deslocado. Por exemplo, quando lhe pede um copo d’água, conduz-o ao armário em que se guardam os copos e lhe apresenta a garrafa com água na porta da geladeira, sem contudo tomá-la consigo, dando a entender ao menino que abra a geladeira e se sirva sempre que desejar.

Já deitados, a luz se apaga. Alguns minutos em silêncio e Felipe chama o amigo: “Você tá acordado ainda?!”

Luis responde: “O que é?” - com economia, mas sem a intenção de ser rude.

Felipe, então, explica que alguma coisa se forma em seu peito, um desconforto sutil, mas suficiente para tirar-lhe o sono. Ao mesmo tempo em que se articula para explicar-se ao amigo, começa a entender do que se trata. Percebe-se, subitamente, “longe de casa”. Longe de toda aquela estrutura que, nos últimos 11 anos, havia sido a sua fortaleza. Pai e mãe - os dois que até ali se afirmaram como a linha de frente sempre disposta a protegê-lo do menos anunciado perigo - lá não estão. Ansiedade e melancolia se misturam. Ele levanta o tronco e se enconsta na cabeceira da cama. Pede a Luis que acenda a luz.

Luis atende, imediatamente. Em seguida, fixa o olhar no rosto do colega por alguns segundos e pergunta, um pouco constrangido, mas com curiosidade genuína: “Você tá chorando?”

Felipe limpa o rosto imediatamente, mas sem efetivamente negar a pergunta, diz que sente falta da mãe.

Luis não sabe o que fazer e acaba batendo na porta do quarto dos pais – a quem pede ajuda. O pai pergunta: “O que a gente faz?” - Transferindo imediatamente à mãe a responsabilidade de tomar uma decisão em ação.

A mãe segue ao quarto, conversa com Felipe tentando acalmá-lo. Ele retém o choro, mas as lágrimas ainda assim escorrem, enquanto ele explica que não está acostumado e dormir fora de casa. Ora, ele mesmo talvez não imaginasse que o cair da noite traria todos aqueles sentimentos à tona; que o entusiasmo do dia se transformaria em medo e insegurança e em todo aquele sussurrar de vozes ausentes pela casa toda vez que a luz se apaga e o silêncio quase absoluto novamente se instaura. Repetem o ritual uma, duas, três vezes. Depois disso, a mãe desiste e decide que a única solução razoável é deixá-lo à própria sorte, pensando, talvez, que o amadurecimento também pede certos sacrifícios. Isso porque, àquela hora, não seria nem prático nem razoável ceder à fraqueza do menino, também porque seus pais morassem a pelo menos 40 minutos de carro dali.

Levantou-se, então, a avó, não sem alguma dificuldade. Não porque ao corpo envelhecido faltasse força, mas porque lhe faltava equilíbrio, e o andar cambaleante se justificava à medida que sua passagem espalhava o cheiro de álcool, que lhe evadia do corpo, pelo hálito e pelos poros - pelo hálito, principalmente.

A essa altura, conversavam as crianças com a luz do quarto acesa. Porque Felipe não conseguisse dormir, compreendera Luis que, também ele, não dormiria, oferecendo-se, então, como única opção, e opção mais correta, aquela de oferecer companhia ao colega, ainda que deitado à cama e com lençóis esticados sobre o corpo, dos pés ao peito.

A avó entrou no quarto e, junto com ela, o cheiro de alcool. Ficaram os dois em silêncio, mas os olhos vermelhos e umedecidos de Felipe acusavam o choro que precipitou toda a situação.

“O que tá acontecendo aqui?” - Perguntou a avó, e soluçou uma vez.

Explicou Luis: “O Felipe não consegue dormir.”

“Não consegue dormir por que?” - Retrucou a avó sem muita delicadeza.

Nesse instante, a figura ameaçadora da mulher embreagada e pouco compassiva, pressionava ainda mais o sentimento de insegurança que se acumulava dentro do menino que, antes de uma resposta de Luis em vista, tomou parte no diálogo, não conseguindo, no entanto, evitar as lágrimas e o choro à medida que dizia: “Eu... sinto... falta da minha… da minha mãe. Eu preciso... da minha mãe...”

A senhora engoliu a seco a própria pergunta em espanto. Estava absolutamente surpresa que um rapaz daquela idade ainda se dispusesse a caprichos como aquele. Mas o espanto passou e logo deu lugar a irritação. Ela perguntou uma vez: “Precisa da sua mãe?!” - e repetiu, mudando o rítmo da sentença, impregnando nela um misto de zombaria e despeito: “Precisa da sua mãe, é?!” - acrescentou ainda: “Precisa da sua mãe pra que?! Pra te dar ‘mamá’?!” - já quando a zombaria se tornava tão evidente, que sobrava às crianças apenas a atenção e os olhos arregalados. Deixou cair a alça do sutiã, puxou para fora com a mão direta o seio do mesmo lado, que imediatamente murchou e se espalhou sobre a mão enrugada, ao mesmo tempo sustentando e balançando o peito na frente do garoto, enquanto gritava: “Mama aqui, ó! Você quer mamá?! Então mama aqui, seu muleque mimado! Mama!”

Performou durante quase 1 minuto, até retornar a um estado de animo mais ameno e se retirar do quarto, sem dizer mais nada. Com ela, foi-se embora o cheiro de álcool. As crianças apagaram as luzes e fecharam os olhos, não se sabe porque dispostas mesmo a dormir e tentar esquecer por algumas horas a nada ortodoxa cena, ou apenas por medo de que acontecesse mais uma vez, ainda que já naquele instante, no escuro das palpebras, ruminavam os traumas prováveis que naquela noite tiveram origem.

A avó voltou ao seu quarto, apoiando-se pelas paredes. Pensava, quase arrependida: “Será que eu fui muito longe?!” - mas logo se justificativa: “Não se deve dar moleza a uma criança mimada. Hoje chora porque está longe da mãe, amanhã porque não conseguiu a vaga de emprego. O mundo é um lugar dificil...”

Nem trauma, nem disciplina. Para ela, cada um a lidar com suas próprias emoções. As dela, certamente afloradas pela bebida, repercutiam naqueles a sua volta como as deles repercutiam nela. O menino roubou-lhe o sono, teve em resposta o que teve. Cada um conduzindo a si mesmo - e por conta própria – ao que se deve tornar. “O que não nos mata, nos deixa mais fortes”, teria ela pensado se a fraseologia nietzschiana lhe estivesse à disposição. Não estava, ainda que o espírito dionisíaco lhe caísse a caráter.

Deitou a cabeça no travesseiro, virou-se para o lado e começou a roncar.