domingo, 2 de dezembro de 2012

Bonum Mercator nihil donat


O comércio é um jogo curioso.

A introdução poderia soar vaga não fosse dada à razão de mencionar certo procedimento em que um comerciante oferece, “gratuitamente”, na compra de um produto qualquer, um produto outro que, a principio, não denota nenhuma relação necessária com o produto a que virá, no trato em questão, vinculado. Chama-o “brinde” e tenta fazer sugerir que se trata de um negócio que se justifica na simples oportunidade dada, porque seja o comerciante um bom samaritano, louco, ou homem de pouca a nenhuma inteligência, a título de vantagem ao comprador que, não fosse por isso, compraria ainda assim, porque o produto em questão é bom o bastante e o preço absolutamente razoável. Diz-se que o bom vendedor é capaz de vender gelo a um esquimó. Mas se fosse o caso destes ditos estenderem-se com algum detalhamento, poderia-se também incluir que o esquimó levaria, ainda, na transação, um espelho de bolso ou uma escova-de-dentes.

Em um grande Shopping Center na zona sul do Rio de Janeiro, um conjunto de lojas associadas – que compreendia quase a totalidade das lojas do edifício – oferecia a todo comprador de seus produtos, cupons a partir dos quais o comprador seria convidado a concorrer a um carro novo: respeitando que a quantidade de bilhetes que o candidato ao carro disporia na urna do sorteio seria proporcional ao dinheiro por ele gasto nestas lojas.

O carro encontrava-se apoiado sobre um pequeno palco, na calçada bem em frente ao Shopping, logo ao lado da urna, que se situava atrás de um pequeno balcão de onde um funcionário, estabelecido pelos comerciantes vinculados à promoção, anunciaria o ganhador imediatamente após o sorteio do bilhete. Um amontoado de pessoas se espremia na calçada a espera. Ao todo, duzentas pessoas se dispunham como espectadores do evento que escolheria um ganhador dentre os milhares, talvez milhões, de cupons que, analogamente aos ali presentes, se espremiam na urna.

A ansiedade fazia com que as conversas que tinham lugar entre aquelas pessoas parecessem murmúrios. Isso porque nenhuma conversa deveria tomar suficiente atenção ao ponto de fazê-los desviar-se do sorteio e do anúncio do sorteado. Como se não bastassem os cupons alojados ali; como se o sorteado houvesse mesmo que personificar aquela escolha, estando ágil e disposto no momento do sorteio para que seu grito de entusiasmo fizesse condecorar uma escolha assim batizada pelo mérito – pouco criterioso, contudo – da expectativa. Desse modo, conversas se iniciavam sem muita convicção, em tom de voz ameno e findavam logo que alguma movimentação se fizesse aparente no palco a frente. 

A mulher, que retiraria o bilhete e anunciaria o vitorioso, se mexeu a frente do microfone disposto no balcão e fez menção a dizer algo. Embora o silêncio não houvesse irrompido absoluto e instantaneamente, foi conquistado em poucos segundos, ao custo de algumas reprimendas e sutis indelicadezas dedicadas uns aos outros pelos próprios ouvintes daquela sessão. Anunciou, então, que giraria a urna - cuja forma aparente já antecipava a mecânica de um dispositivo que a faria girar, certificando aos presentes que a escolha não seria determinada por possíveis “lugares privilegiados” onde a presença do cupom indicaria maiores probabilidades de que seria esse mesmo cupom sorteado: isso porque se havia ali premissa alguma para sorte era essa a quantidade de cupons por indívíduo e, portanto, o dinheiro gasto nas lojas e não a medida do manejo e a sagacidade do candidato no instante de atirar na urna o cupom – e escolheria o bilhete inadvertidamente, sem preparação ou parcialidade algumas, apenas se dispondo a cumprir as recomendações a ela dadas pelos organizadores do evento.

Girou, assim, a urna durante dois minutos e meio. Tempo necessário para a distribuição aleatória e casual dos bilhetes, mas também potencialização eficiente das expectativas, como fizesse-se rufar tambores a indicar que o resultado em espera era digno de toda reverência e atenção. Enfiou a mão na urna e de lá arrancou o bilhete - que antes não era senão um bilhete - e posicionou-o à frente dos olhos.

A pequena multidão fez dilatarem seus ouvidos, desfizeram-se de todos os pensamentos impróprios dedicando atenção que provavelmente não dedicaram antes nem mesmo a seus filhos, suas esposas e maridos, seus pais, colegas de trabalho ou professores, mas antes que a mulher anunciasse aquele nome, interrompeu-a o resultado de um evento outro que, desenrolando-se paralelamente ao sorteio, resultou num automóvel em alta velocidade invadindo a calçada e colidindo brutalmente com o carro novo a espera, objeto do sorteio em andamento.

Responsável pelo acidente, saiu do carro uma senhora ainda atordoada com a batida, mas aparentemente saudável, e dispensou sobre a cena um olhar de espanto. Os outros ali presentes haviam dispensado o mesmo olhar de espanto alguns segundos antes: Agora, começavam a entumescer suas expressões faciais, preparando-se para dedicar hostilidade mais veemente a inoportuna recém chegada quando a anunciante do sorteio, num misto de presença de espíríto e omissão de responsabilidade, declarou: “Senhor Marcos Heleno dos Santos!”

Imediatamente, diante do povo que naquele segundo retomava atenção sobre ela, identificou um rapaz que, ainda sem entender exatamente o que se passava, insinuou tratar-se ele mesmo de Marcos Heleno dos Santos. Logo, ela desceu do palco, esticou a mão com a chave do carro e entregou-a ao ganhador dizendo-lhe, antes de partir sem delongas em retirada: “O carro é seu. Parabéns!”.

Após o tramite concluído as expressões hostis do público deram lugar a novas, que no geral variavam entre a frustração e o alívio. Não era o caso particular daquele rapaz que, se segundos antes saltou-lhe um convidativo entusiasmo e agradável surpresa com o sorteio que lhe havia sido favorável, restabelecida a cena em que a velha e os carros amassados tomavam parte, seu humor, então, era o do homem irritado e desgostoso porque tinha que resolver o problema que acabara de chegar-lhe as mãos junto com a chave de seu novo carro.

Sem perder muito tempo, foi diretamente ter com a senhora, quando perguntou-lhe secamente: “A senhora tem seguro?”

A pergunta era honesta, já que cumpre ao proprietário zelar pelo bem de que dispõe, mais ainda quando se trata de material valioso como aquele. A resposta nem tanto, conquanto se lançara levianamente na forma pouco esclarecida de uma nova pergunta: “O senhor tem?”