quarta-feira, 8 de junho de 2011

Chuta que é macumba!

Saí de casa localizando-me entre o perímetro que a minha volta se demarcava e um outro mais obscuro, que meus pensamentos ruminavam com o pesar de uma vida passada. Pois se as ruas me pareciam tão sujas, era porque eu, acostumado que estava com certa assepsia pequeno burguesa, via a sujeira pigmentada nas paredes sem tinta ou nas construções decadentes que à margem da rua faziam-se erguer. Mas mais do que isso, sentia-me desumano vendo as lixeiras reviradas que espalhavam um lixo mal cheiroso pelas calçadas e desumano devia ser por não me recolher ao compadecimento velado com a miséria daquele que espalhou, uma vez que concebia, no todo daquele ambiente hostil, uma idéia de pobreza que se falava através da cidade e era com essa mesma idéia que meu íntimo conflitava. Assaltava-me uma sensação desconfortável como se despertencessemos um ao outro, eu e o lugar. E despertenciamo-nos conforme a constatação que tive posteriormente em retorno.

Seguindo o entrecho que descendo pela Francisco de Medeiros, nos arredores de Higienópolis, desaguaria na Av. dos Democráticos, percebi há uns cem metros a frente (ladeira abaixo) um grande prato que jazia no vão entre a rua e a calçada. Sustentava uma hepática farofa e alguns pedaços de um frango corpulento, empoleirado e assado. Ao lado, uma garrafa se equilibrava cheia pela metade, e continha um suspeito líquido transparente. Suspeito, pois, era apenas para mim, homem de pouca perspicácia e contexto, já que a um mais localizado ou com capacidade de dedução um tanto mais alerta saberia logo de cara tratar-se da inconfundível bebida a qual no interior se dá o nome de aguardente, essa mesma bebida que o carioca atinado nomeia cachaça.

Aos poucos compreendi tratar-se aquilo de uma oferta a graça de algum Deus negligente. E se eu adjetivava tão grosseiramente um tal Deus era porque não me parecia da altura de deuses justos aquele entrecho indigente que se via na distância entre o meu corpo e o prato largado. Ponderaria cidadão mais consciencioso que eu se, ainda, alguém concedia àquele deus sua oblata, devia agluma coisa fazer sentido, além da minha compreensão limitada. Mas enquanto eu me aproximava da tal oferta pensava no tipo que oferece ao seu deus o gosto de sua preciosa cachaça. Não como um abel, que sacrifica a mais doce das criaturas, um carneirinho inocente, ao ímpeto severo de um deus amedrontador. Não! Mas essa “imagem e semelhança” do deus cristão, ali, tomava o contorno humano e intimista de um mero colega. Ora, se tão nobre é esse líquido ardente que lhe invade a garganta com gozo e satisfação, é digno não só dos mortais, mas também dos fantasmas e, ainda com mais razão, das deidades. E se ele trata o seu Deus como um igual, não poderia esperar outra coisa da suma potência divina que o que ele próprio, de pobreza assumida, domina. Natural, então, que seja num lugar miserável como esse que um Deus assim seja erguido. Humanidade tão desonesta essa que se quer do tratamento tão solidário dado ao Deus que, em contrapartida, oferece ao outro apenas os restos minguados na podridão do lixo revirado. Não se devia mesmo confiar em um Deus que bebe.

Agora eu podia realizar a imagem do pobre diabo que revirava o lixo naquela rua todos os dias. Catando os restos daquilo que uns outros menos desgraçados se desprendiam como que na fortuna enganosa de sua própria miséria, e celebrando com espírito a cada pedaço de pão, a cada osso luzente onde ainda se via um pedaço de carne, fugia de uma fome severa como quem foge da brasa que assola os pés delicados de um homem descalço. E eu não pude me desfazer do deprezo que me fornecia a imagem do obtuso que ali se fundava. Aquele que se privava de um hedóneo banquete enquanto salvava do lixo o seu amargo alimento, pois em respeito ao deus alcoolatra e incompetente passava reto pela comovente delícia e revirava apenas o lixo. E eu que pensava que o lixo também era sagrado - da maldição sacra que ali se acumulava por entre a podridão esquecida e desnaturada de um consumo sem nota. Sagrado mesmo devia ser o estômago, esse que se fez sozinho com genética e funcionamento, que faz o uso daquilo que presta e joga fora o que resta e já não deve mais ficar dentro.

Aproximava-me já enrubescido por certo ódio de alma de uma espécie de dor do outro tomada, e via agora o prato de barro, com a delicadeza de um modesto artesanato, que dispendia o almoço ou a janta de uma figura sem rosto, que se exprimia na fome caruda do lixo revirado. Eu devia ter apenas ignorado. Devia mostrar minha sólida e irreprensível de cidadão educado, mas eu não pude.

Fiz-me de ímpeto revolucionário e a bandeja voou pelo espaço, e a farofa choveu pelos ares, despedassou-se o frango em migalhas e a garrafa quebrou e escorreu seu segredo nas ruas imundas e miseráveis. E ainda que a calma voltasse, e o sentido de certa vingança me fizesse mais morno, ainda era o lixo espalhado o que me incomodava.

E o que ainda incomoda.