segunda-feira, 7 de setembro de 2009

Davi e Golias

O ônibus parou no ponto. Um homem grande e gordo atravessou a roleta com alguma dificuldade e vasculhou com os olhos a procura de um lugar vazio. Lá onde repousava um rapaz magro de cabelos crespos e óculos, viu o que fosse, talvez, o único lugar não ocupado de todo o ônibus. Percebeu também a expressão de preocupação do rapaz que, antecipando a situação, imaginara como seria desagradável aquele homem enorme sentado ao seu lado. Estranhamente o rapaz se deslocou do assento de corredor que estava para o da janela. O gordo veio em sua direção e o pobre coitado suspirou, mostrando descontentamento com a chegada do novo passageiro.

Imaginem a situação. Quando o último lugar vago encontra o uso em potencial de pessoa excessivamente corpulenta, quem há de ser culpado por esse crime? Talvez o indivíduo que projetou tal que os bancos de ônibus se dispusessem em assentos duplos.
Mas também devemos considerar a moléstia que sofre a pessoa gorda em situações como esta toda vez que se depara com a expressão facial aborrecida daquele que o acompanhará durante toda viagem. É uma atrocidade na qual se revelam vítimas os dois lados. Embora muitas vezes a criatura não-gorda não tenha suficiente senso de humanidade para compreender que talvez os gordos não sejam culpados de sua própria obesidade, algum dispositivo bem mais cruel pode se desenrolar nos cantos obscuros da fisiologia ou da genética particular desse indivíduo. Enfim...

Sentou-se o gordo ignorando toda hostilidade que seu vizinho emanava através do semblante empedernido que tinha o jovem, como quem não se quisesse sensibilizar com os defeitos – assim julgados por súbita e inexplicável autoridade pelo próprio rapaz – do outro que vinha ao seu lado. O procedimento de mudar-se para a janela tinha lá uma explicação assaz razoável, apesar de tudo. Via-se agora que sobrava quase meia banda de traseiro do gordo pra fora do banco. E isso porque o jovem esbelto escorava-se nas paredes do ônibus oferecendo resistência aos avanços do corpo que vinha tomar-lhe parte do espaço. Estivesse ele do lado de lá, certamente teria pelo menos metade do corpo exposto ao corredor desprotegido do ônibus.

Nas curvas mais íngremes a corpulência daquele calvo homem atirava-se para o lado contrário por conta da resultante centrífuga que, desconsiderada pela maior parte dos passageiros, tomava o aspecto de propositada maldade do motorista dentro da cabeça perturbada daquele jovem espremido. Já quando a inércia se reestabelecia no trajeto retilíneo o rapaz percebia inconformado que seu algoz o havia tomado alguns centímetros do assento sob o pretexto circunstancial da ação daquelas invariáveis forças vetoriais que a física tão bem explicava, mas que jamais na escola ou nos livros aparecia a figura do gordo exemplificando o constrangimento e o desconforto os quais Newton, houvesse experimentado o problema, certamente faria incluí-los quem sabe numa quarta ou quinta das leis que o fizeram ser tão conhecido.

Reconhecendo, assim, o avanço inimigo e tomando a linha divisória dos bancos - que se mostrava visível para ambos especialmente no verso dos bancos que tinham a frente – forçava novamente o quadril e com gestos e olhares de desconforto toda vez que o gordo encostava em seu corpo, fazia notar certa repreensão, intimidando a grossa cintura do homem a retroceder alguns preciosos centímetros. Quando não bastou o procedimento e o gordo, recuando as ancas, deixou por cima dos quadris as banhas laterais e o braço tocando seu contíguo, o jovem tomou de mão a mochila, abrindo-a e tirando de lá um livro, que abriu serenamente projetando os cotovelos e demarcando novamente a separação das poltronas, agora também tendo em vista o espaço aéreo com referencia feita a linha imaginária que se projetava de baixo pra cima a partir dos assentos.

E essa celeuma durou quase meia hora e quando chegou ao seu ponto, o jovem se levantou e disse muito arrogante: “Com licença, eu preciso saltar. Acho que você vai ter que se levantar.”

O careca se levantou, o jovem saiu e a história acabou.

Quando mais tarde entrevistei esse jovem, questionando-o se não seria, de fato, menos desconforto ter aceitado metade do corpo pra fora do assento, permanecendo ele sentado ao corredor, que toda aquela inconveniência da briga pelo espaço com as proporções de um homem careca, obeso e já lá com seus quarenta anos de idade, ele me respondeu que não era uma questão de conforto, mas uma questão de direito. E disse-me: “Devia mesmo ele sentir-se constrangido e, quem sabe, aprender alguma coisa com isso. Pois se todo tempo eu tentei exprimir gestualmente aquela violação que ele infringia ao espaço público temporariamente cedido a mim, foi mais por responsabilidade moral que por algum egoísmo sem nota. Tivessem já lançado algo como um ‘Guia do gordinho educado’, eu não precisaria expor-me àquela situação desgostosa.” E disse ainda que se não fosse tão controlado teria falado ao gordo ao seu lado: “você não precisa chamar mais atenção para outros defeitos, né?” Frase que, ainda agora, confesso ter dificuldade em reconhecer-lhe o cunho disciplinador.

Devo confessar – até um pouco envergonhado de minha tributária parcialidade – que não poderia jamais dizer sem alguma desonestidade que o jovem não estava lá nos seus estritos direitos. Compreendendo, agora, que existe muito mais entre a razão e o direito do que supõe a nossa vã filosofia.

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