segunda-feira, 14 de dezembro de 2015

Cena 47

Zuummmmmm...

Se encontra numa sala vazia. “zuumm..” é o barulho que anuncia sua chegada naquele lugar, porque todas as coisas guardam um som característico quando existe ao menos um ouvido lhes dirigindo atenção. Sua chegada, com efeito, é um evento tanto quanto a sua permanência lá, que é o que se quer, em todo caso, anunciar: Está lá.

Quem é? Que lugar é esse? Qual o próposito da apresentação deste instante?

Craac. Mais uma onomatopéia tangindo a presença invisível de movimentos e ações que não foram descritos. Quebra alguma coisa com as mãos enquanto ali dentro procura por algo. Há um objeto, ainda que vago, e algo que é somente uma suposição (um desejo, intuição ou um objetivo).

O processo se repete uma centena de vezes em apenas alguns minutos. Em todo esse tempo, há uma presença, movimentos inúmeros e muita indefinição. Encontra-se, no entanto, aqui e ali imagens conspícuas. Encontra-se também respostas, cada uma delas escritas em minusculas fitas de papel como que oferecidas na medida incerta da sua aceitação. São, sobretudo, tautologias inquestionáveis, pois são o que são e apenas na medida incerta da sua aceitação.

“Algo maravilhoso irá acontecer a partir daqui!”

Não se trata de mero otimismo, contudo. A mensagem recorta no tempo uma linha difinitiva: nada mais é o mesmo; o que existia antes parece agora se distinguir do que virá a existir, pois, a partir daqui, existe um campo de coisas boas possíveis, de coisas boas prováveis. Algo tão vago quanto o objeto da busca das mãos que golpearam, querendo ali dentro encontrar apenas.

Sssssssssss....

Ressoa baixinho quase como o próprio silêncio, pois naquela sala vazia esse é o som de um pensamento não revelado após outro, e outro. Mas ao redor de cada um deles, paira agora esse belíssimo campo de maravilhosas possibilidades, ininterruptamente.

Não se conhece o futuro, mas o presente é instante perfeito para se receber boas-novas, ainda que não se tenha a menor ideia do que são ou serão; e mesmo na mais plena desconfiança de que venham mesmo a ser.



segunda-feira, 10 de agosto de 2015

O Bom Moço




Lei e moral são formas de uma mesma ideia ou ideias distintas em vista de um mesmo problema, como são os pássaros distintos em suas espécies a referência categórica ao mesmo animal. Não há como determinar a origem de algo senão em si, pois tudo o que antes de uma coisa qualquer se apresenta como sua causa, é, por isso mesmo, já uma outra coisa. Ao mesmo tempo, nada é sem que antes sua existência seja posta como possível.

Ao homem moral, muitas vezes, não há nas leis apelo que à sua consciência satisfaça. Do mesmo modo como são, amiúde, imorais as leis dos homens que, diante de circunstâncias muito particulares, impõem sua norma – pronta e acabada - àquilo que antes não era senão insondável.

Um homem dirige seu carro vermelho, popular, com as marcas pontuais do intenso uso. Ele trafega em baixa velocidade pelas ruas menos movimentadas no interior do bairro de São Cristóvão, quando é abordado à distância por um policial de pé, pedindo a ele que diminua a velocidade.

Ao aproximar-se, o policial indaga, antes mesmo de requerer que o motorista encoste: “Você sabia que placas terminadas em 3 deveriam ter realizado vistoria em julho?”. A fala do policial se condiciona à justificativa já implícita de que a placa do carro em questão assim se numera e de que o mês de julho é agora passado. De fato, o dia do acontecido é precisamente o terceiro do mês seguinte.

O homem acena fazendo menção ao fato de que tem conhecimento do calendário regulamentado de vistorias da agência que regula a circulação de veículos no Estado e encosta o carro, submetendo-se à requisição do policial - feita após a referida pergunta e logo depois de mandar embora outro carro de passeio que esperava ali encostado sob seu comando. Pede ao homem habilitação e documentos do carro, ainda antes que o carro esteja absolutamente parado. Ele estaciona, retira o sinto de segurança, levanta sutilmente o corpo e enfia a mão no bolso traseiro da calça, retirando de lá a carteira com a habilitação e o documento. Entrega-a ao policial que abre e lê com atenção, identificando que a última vistoria data de outubro do ano anterior.

- Sua vistoria deveria ter sido feita em julho. - Sentencia o policial com severidade. - Eu sei, - responde o homem.

- Por que, então, você não a fez? - Questiona em tom antes de curiosidade que de repreensão.

- Eu requeri o agendamento tarde demais e não consegui vagas para vistoria em julho. Minha vistoria agora está marcada para daqui a duas semanas. - Disse homem, não querendo se justificar pelo seu erro, mas tentando responder a pergunta do policial, que insatisfeito com a resposta, prossegue:

- Por que você não fez antes?

O homem - sem resposta a dar - julgou desonesto forjar alguma que de algum modo o desculpasse da sua falha e, uma vez sem resposta, levantou os ombros e contorceu o rosto, oferecendo ao policial apenas uma expressão de absoluta impotência diante da sua pergunta.

O policial guardou no bolso os documentos do homem e indicou que já havia chamado um reboque para o seu carro e que ele aguardasse alguns minutos, pois teria o carro e a habilitação retidos. O homem permaneceu em silêncio, sob resguardo da autoridade que empunhava o policial no exercício da sua função.

Não houve excessos e dos dois lados se via, o tempo todo, homens em face das obrigações que os impeliam. O homem havia desrespeitado as leis que circunscreviam aquele contexto, conduzindo o seu carro irregularmente pelas ruas do Rio de Janeiro. Mas da moral que agora o assaltava, pedia-se a ele que acatasse em silêncio as recomendações do policial. O policial, simplesmente, fazia seu trabalho, que consiste exatamente na observância geral do cumprimento da lei.

Os dois permanecem em silêncio por cinco minutos. O homem pensa no prejuízo que terá com os tramites da retirada do seu veículo e recuperação da sua licença. O policial se remói com a dúvida não solucionada pela ausência da resposta a sua pergunta. Ele provavelmente considera também com pesar o prejuízo que terá o homem, mas não pode deixar de lado as leis que orientam sua conduta e posição como oficial da justiça. Pergunta mais uma vez ao homem: "Por que você não fez a vistoria?" Indicando com o tom da voz alguma compaixão e lamento pela situação em que ora se encontra o homem.

O homem, ainda sem resposta, devolve-lhe apenas um pouco elaborado “não sei”. Mas ele na verdade sabe: Apenas acredita que a resposta, muito complexa para a medida da curiosidade de um outro na função que ocupa o policial, seria demasiado prolixa e transmitiria, de algum modo, a ideia de que tentaria ele desculpar-se pelo não cumprimento das suas obrigações diante da lei, forçando assim um diálogo à margem, em que ele poderia se beneficiar ilicitamente em face da condescendência possivelmente promíscua do policial.

Engole a seco aquela resposta, pois nem mesmo a sua autoridade é suficiente ali para arrancar do homem resposta mais elaborada e permanece em silêncio por mais cinco minutos, aflito e tensionado entre o cumprimento do dever e a compaixão por um homem cujo o único crime fora o atraso.

A lei é objetiva: Estabelece aquilo que é, enquanto resultado de ações individuais, e como deve ser, a partir das punições previstas àqueles cujas ações procedem em descumprimento das normas. A moral é sensível: Pode o policial compadecer-se com a infelicidade do transgressor, reconhecendo haver ali punição demasiada para crime tão pouco danoso.

O policial se aproxima mais uma vez e pergunta ao homem: “O que você faz?”

- Sou professor – responde. 
- Professor de que? 
- História... – e suprimiu no último instante, mas intencionalmente, a palavra “arte” que, assim, designaria de forma mais precisa sua disciplina de atuação, porque julgou que tal pormenor nada acrescentaria em perspectiva àquele diálogo. Para o policial, um professor de história ou um professor de história da arte se deveriam orientar pelas mesmas obrigações e deveriam valer a eles os mesmos direitos.

O policial fez uma breve pausa e olhou para os lados, inconsolado com a decisão que estava em vias de tomar, qual seja a de liberar o homem, indulgentemente, contrariando suas convicções mais distintas diante da lei em face de alguma convicção moral mais fundamental que aquelas.

Entregou os papéis a ele e disse: “Pode ir, não vou mais tomar o seu tempo”.

O homem, aliviado, entrou no carrou; partiu otimista e disposto a regularizar sua situação o mais prontamente possível em respeito ao amabilíssimo gesto que acabara de presenciar. Pois se as leis produzem homens da justiça tão plenos de consciência moral como aquele, devem elas se sustentar em razão subjacente mais profunda que o simples apreço pela norma.    

segunda-feira, 8 de junho de 2015

A Festa dos Esquecidos



É comum o relato de pessoas que encontram dificuldades em descrever, sobre os seus sonhos, inicio ou fim. Por isso mesmo, parece oportuno concluir de que se trata, o sonho, de um fenômeno psíquico com independência ao menos relativa da vida consciente, lógica e sequencial, a partir da qual estabelecemos as narrativas que guiarão nossa vida social, nossas relações e nossos afetos. Eu mesmo desconheço quem tenha estabelecido relação intensa e de longo prazo com alguém cuja presença em sua vida se fez na maior parte do tempo atráves de sonho ou mesmo apenas ali. Há algum dispositivo eficiente que garante autonomia aos sonhos e nos permite abandonar aquela vida que se teve durante toda uma noite como ficção vulgar; são fantasmas que se dissolvem tão logo se recupera a vigília, mas o mais importante, dissolvem-se com eles todos os sentimentos experienciados e os afetos que durante aquele fluxo de imagens se fizeram de algum modo presentes. Mas, hoje, algo incomum aconteceu.

Em primeiro lugar, o sonho se inicia com a disposição de uma clareza narrativa que poucas vezes reconheci nos relatos dos outros ou na minha própria vida passada de sonhos. Há um cenário bem definido e uma razão - embora não muito clara - destilada na atmosfera do sonho para a minha presença naquele cenário. Visto um uniforme que me infantiliza, mas que é também a marca distintiva de todo aquele espaço cênico, já que todos a minha volta compartilham o mesmo uniforme. Reconheço nele a instituição de um passado que a minha memória parecia ter deixado para trás há muito. A sensação de ser novamente um colegial, no entanto, parece encontrar eco numa experiência recente, na qual me fiz frequentar diariamente um curso de língua por mais ou menos cinco meses num país estrangeiro, onde a maior parte dos elementos que caracterizavam minha vida adulta não se faziam ativos. Lembro-me de sentir-me ao mesmo tempo constrangido e excitado com a sensação de ser novamente “criança” durante aquele período; a frase “vou para escola” causava-me certa angústia particular toda vez que saía da minha boca, como se algum mecanismo psicológico delicadíssimo me desse advertência moral sobre a impossibilidade de retroceder, em outras palavras, de que a vida adulta me deveria ser um fardo a ser carregado sobre os ombros agora e indefinidamente. Mas algo diferente acontece aqui: estou cercado de crianças; adolescentes em cuja juventude, no rosto estampada, espelha-se a minha própria.  Há uma razão, como eu disse, para a minha presença naquele espaço e ninguém a minha volta parece questionar a pertinência dela, ainda que ela não se faça explícita em nenhum momento, mas essa razão não se encontra em meu passado. Há algo de ambíguo na infância que se faz em mim reviver no espaço daquele sonho, já que sou ali o mesmo adulto que era horas antes de mergulhar naquele sono mais ou menos profundo. Afinal, a vida (também a do sonho) é sempre a vida presente.

O espaço, no entanto, não recupera a arquitetura da instituição verdadeira, que posso, agora, depois de acordado, acessar em minha memória. Trata-se de um espaço aberto, sem salas de aula, onde as pessoas se amontoam aos grupos que eu vou reconhecendo e abordando, pouco a pouco. O momento dessas apresentações parece também ter uma justificativa narrativa, mas não só: é, a mim, possível identificar com muita clareza aquela sensação, misto de alívio acadêmico e comprometimento social, que o recreio entre as aulas sempre representou na minha vida escolar. Aqui, uma metáfora se descola do sonho e me projeta ao agora, o instante em que escrevo: o recreio é, como o sonho, um espaço de transição; uma interrupção que se define antes por tratar-se de um mundo entre mundo que por sua imanência mesma. E algo mais tensiona a diegese que esse esquema narrativo subliminar sustenta: a nostalgia que se intensifica em mim a cada rosto que reconheço como figura do meu passado.

Sigo até eles e, um por um, os abraço, exteriorizando e reiterando com palavras saudosas essa nostalgia que me assalta. Recupero alguns nomes, outros permanecem ocultos. Alguns parecem refletir um sentimento nostalgico ao meu análogo, outros remoem certa indiferença como houvessem conservado uma vida privada durante todo esse tempo e a qual eu não posso ter acesso.

Converso em privado com uma jovem, namorada de um colega de classe, que me conta dos seus planos de estudar na suíça. Há, todavia, algo de diferente nela. Na sua imagem e nos sentimentos que eu mesmo dirijo a ela, encontro traços de uma outra figura, essa mais recente na minha história pessoal, mas do mesmo modo uma “namorada de um amigo”. Não questiono a “fusão”, de todo modo, porque parece-me algo natural. Aquelas pessoas parecem não carregar a responsabilidade de conservar uma identidade precisa, como se houvesse um entendimento silencioso de que são todas projeções minhas: um pacto que precisa permanecer não dito para que a diegese se conserve de algum modo intacta.

Sentados num degrau estrategicamente localizado no pátio, que não possui nenhuma função arquitetônica senão a de ser assento para aquelas duas figuras do meu passado, estão “Frangolino” e “Scooby Doo”. Uma feliz coinciência trazer à tona essas figuras da ficção infantil do meu tempo, mas os nomes são reais, ou ao menos tão reais quanto as alcunhas que adquirimos com tanta frequência na vida jovem. Abraço-os, os dois de uma vez. Tomo, em seguida, Frangolino pelos ombros e ofereço a ele palavras de afeto, transbordando com a excitação nostálgica que parece não me abandonar durante todo o sonho. Posso encontrar com precisão agora na memória detalhes do seu rosto que me querem denunciar que a “realidade” não é mais que um truque cinematográfico: um sinal tímido ao lado do nariz cheio de personalidade (que lhe garantiu o apelido eminente) se projetando com sua anatomia peculiar embaixo do arame delicado e prateado da armação retangular dos óculos, enquanto o rosto de Scooby é apenas uma superfície manchada ou uma imagem sem foco e translúcida, mas sobretudo um nome. Porque no sonho, mais do que em qualquer outro lugar, conservam as palavras e as coisas uma identidade solícita; e mesmo material. Por isso mesmo, naquele universo, não há maior grau de realidade numa pedra do que há num fantasma; o sentimento não é, também, menos real que a ação; os corpos e os espíritos são, então, apenas as colorações sutilmente distintas que se deslocam na superfície de um líquido - meras refrações luminosas, talvez.    

Mais a frente, um grupo de figuras indeterminadas. Chego a eles e ofereço a saudação comovida de um amigo do passado, mas eles parecem não me reconhecer de imediato. Vasculho separadamente pelos rostos do grupo e também não os reconheço. São, contudo, mais jovens que os outros. Largo-me, então, à conclusao de que são calouros. Essa ideia parece acalmar o meu constrangimento pelo engano da minha abordagem. Esse constragimento, por sua vez, conserva também sua função diegética, fazendo-me ignorar que aqueles figurantes não tem personalidade própria, que são figuras sem qualquer densidade, talvez mesmo incapazes de comunicarem-se simplesmente porque minha psiquê é incapaz de lhes emprestar voz ativa. Em todo caso, a rejeição momentanea reacende em mim do mesmo modo uma memória particular. A consciência contida de que sou eu mesmo a razão de ser daquele universo não me concede autonomia absoluta sobre os meus sentimentos entre os quais a rejeição parece ocupar um lugar de destaque.

Agora, caminho junto a um grupo de amigos por um corredor que vem de lugar nenhum e parece se dirigir a lugar algum e outra figura se faz em destaque vindo na minha direção. O movimento é uma constante porque o espaço e as coisas são acentos e tonalidades de um mesmo fluido. Corro para cumprimentá-lo, entusiasmado, ele aperta a minha mão e parece sustentar um sorriso ambíguo. Eu comento sobre um sonho recente meu, no qual ele haveria dado o ar de sua graça. Logo, a ambiguidade se faz declarada. Ele acusa meu entusiasmo, sugerindo-o tratar-se de mera falsidade. Argumenta que esse sonho não existiu e que eu não me lembro, de fato, dele. Eu me defendo dizendo que no sonho ele não era exatamente ele, mas uma fusão na qual sua figura, no entanto, assumia um papel de destaque e descrevo brevemente seu contexto de aparição, como se esse preciosismo descritivo conferisse ao sonho textura real alguma. Ele me desafia: “Qual o meu nome?” Eu não tenho a resposta de pronto. Vejo o nome “Nathália” como uma imagem dentro da imagem. Quando, no entanto, preparo-me a oferecê-lo como resposta, percebo que não faz sentido. A figura a minha frente atende pelas determinações do gênero  masculino. Pocuro no “n” uma sonoridade familiar e dali extraio um outro: “Daniel” - é a minha resposta final. Ele não aceita e reitera: “Você não sabe quem eu sou!” - cheio de ressentimento, como se eu o houvesse abandonado sob os escrombos de memórias insignificantes. “Meu nome é Araquém”, diz.

Eu não acredito. O nome parece inventado - lembro-me de haver assim pensado. Eu me lembraria de um nome incomum como esse se alguma vez ele tivesse tomado parte na minha vida social. Percebo, então, que ele mente, ou melhor, que dá para si um nome como se se quisesse afirmar, altivo, independente, como se dissesse: “Eu sou muito mais que uma lembrança vaga que você largou como um canivete sem uso no fundo de uma gaveta”.

Daniel, esse era o seu nome - digo a mim mesmo em pensamento. Deixo-o com o seu ressentimento e sigo em frente. Talvez o tenha deixado no fundo daquela gaveta por algum motivo, talvez não, mas devo acordar logo e não quero perder esse tempo precioso do sonho com ressentimentos.

Novamente, sou invadido por aquela excitação nostálgica. Reencontro um amigo e o abraço. Tomo seu rosto em mãos e tenho lágrimas nos olhos. Reconheço uma ponte entre o sonho e a vida real e digo a ele que devemos sair para tomar uma cerveja lá fora, quando o sonho acabar. Ele pondera, dizendo-me que mora longe. Eu contra argumento prometendo buscá-lo em casa e acordo.

Mas dessa vez, algo não muito comum. Os sentimentos não se dissolvem com as imagens do sonho. Eles permanecem lá ainda por muito tempo. Melancolia descreve sem muita precisão a maior parte deles. Sinto-me de algum modo culpado por todos aqueles que abandonei sob os escombros de memórias insignificantes. Procuro, caso a caso nas figuras que me houveram brindado naquele sonho com a sua presença, o momento em que essas memórias deixaram de ter valor e encontro uma justificativa que parece me aliviar daquela culpa. Eles escolheram, de uma maneira ou de outra, o papel que representavam no sonho e tinham todos ali isso em comum: eram todos memórias mais ou menos vagas; imagens que não conservam relação alguma com minha vida presente; figuras sem história - não casaram, não tiveram filhos, não se tornaram profissionais respeitáveis ou mesmo adultos irresponsáveis ou delinquentes; não faleceram em acidentes de carro, não se tornaram pessoas públicas eminentes. Também não tiveram oportunidade de conquistar minha admiração furtiva e silenciosa pela forma como se comportam e conduzem sua vida social dia a dia.

Mas a memória tem sua mecânica complexa, não como uma câmera ainda que moderníssima, pois ela não grava apenas imagens e sons. Ela confere independência de tal modo aos seus registros, que concede a eles - de forma relativa e condicionada, é verdade - uma vida e uma dinâmica próprias. Eles podem falar dentro dela o que nunca foi, de fato, dito; podem performar movimentos que nunca foram, de fato, articulados; podem ressentir-se e entregarem-se ao ressentimento em palavras ou podem calar; a namorada do amigo tinha planos de estudar fora; Daniel rebatizou-se com o nome de um Pajé Tabajara, pai de Iracema na ficção de José de Alencar - que eu até então desconhecia; e os sentimentos que se tiveram em algum tempo registrado podem ainda fazer chorar quem os carrega ocultos... quem sabe a grandiosidade de seus gestos e de suas palavras que se transformam a cada segundo no submundo da memória, enquanto a vida consciente segue, bruta e pragmática, ignorando-os, como o mundo real ignora seus esquecidos?

Que a tirania dos poderosos não nos sirva de exemplo em nosso reino privado, pois a vida já é desumana o bastante lá fora...


quarta-feira, 20 de maio de 2015

Dialogs on stone tablets




A man and a woman meet on the street:

Hi you! / Hello! - both of them offering each other their good manners.

How are you? - Says the man.

And she replies - Pretty fine... but, I am just worried about a Zipplie I saw five minutes ago.

Did you see a Zipplie? This is amazing, actually. Why are you worried about it?

I am worried about my son, walking around. Cause, you know, he plays guitar in a heavy metal band.  

Now, imagine the following dialog between a priest and a giant frog. They are sitting in a wood banch in a public garden. The priest tries to explain the frog the wonder of symbolic thinking and how this indirect knowledge of things and faith are tied through a primitive bond:


'I can tell you about an old woman, carrying a bucket over her head, and spitting on every longhaired man she sees. I can tell you about this old lady even if I never saw anything like it. But as long as you know the words old, woman, bucket, etc., you can pretty much imagine the same figure I have in mind when I talk about it. Of course, your figure might have a different dress, since I didn't define every detail; she might be naked and have a big nose; or she might be carrying a surf board under one arm while holding the bucket with the other; but she certainly is not a man, and she definitely is not young once I just told you she is a woman and she is old. You can picture, otherwise, fishes inside her bucket, tattoos all over her body; you can think about a skinny old lady or about a woman on a wheel chair, doesn't matter; an old woman with a bucket on her head, spitting on every longhaired man she sees is pretty much the idea you would have in mind.'

The frog is deeply attentive, and the priest continues with his argument:

'Well, let´s say this old lady, or much better, this kind of old ladies have a name. They are known as
“chactalac”. Even if no one has never seen a “chactalac”, since the concept is given in the current language, every one can understand it. And now when I formulate the sentence “there is a chactalac in the drugstore”, you imagine an old woman carrying a bucket on her head inside a drugstore, and every time a longhaired man appears in this picture in your mind, she spits on him, or at least she tries. This may sound a bit awkward, but let's suppose someone says just “There is a woman in the drugstore” in the 9th century. As the word drugstore is not conceived as a proper word, it would be necessary to state that drugstore is a place where you can buy certain kinds of products which have been classified in accord with a number of specific functions. Maybe they would be familiarized with the concept of medicin, maybe not, it´s hard to tell.'

At this point, the frog nods affirmatively and launches out: “I see where are you trying to get with this, wrooobitt... go on, wroobittt”

'The language is a symbolic instrument which allows humans to connect themselves with a reality that their senses can not contain. We are able to understand each other and the barely “real” things people say one to another , cause we all believe in language. If I tell you about an old woman carrying a bucket and spitting on longhaired man across her way, you can just not believe that this woman exists, but you certainly believes in those concepts that I used to build this image, like bricks in a fortress. And the fortress is so solid it wont fall apart just because you have doubts about the shape or the efficiency of its architecture. Like when one of the patients of Freud has advised him that he did not believe in his method and Freud immediately replied: “My method works regardless of your beliefs”. Now, think about the idea of God...'


“There you go...wroobitt” - Said the Frog.

'Hey, just because you don´t believe in God, it doesn't mean that the idea of God is devoid of significance. Imagine how many constructions of concepts were necessary to the synthesis of what most of us understand as God... We are talking about a much more complex picture than the one of an old woman carrying a bucket.'

“Yeah, we are talking about a picture of an old man longbearded carrying lightnings or something similar... wrooobit wroobit. It makes this old lady to appear very plausible, wrooobitt.” - joked the giant green toad.

'Ok, then, forget the word God and take those different concepts: love, benevolence, comprehension, omnipotence and justice; try to describe and find the branches that connect these concepts with much more primitive ones. Yet, first of all, keep in mind that we are not talking about religion, but about language.'

“I see your point. But if you allow me, I would give another name to this complex idea shaped among the concepts of love, benevolence, comprehension, omnipotence and justice.. wrooobitt”

'So, what do you suggest?'

“wrooobit. How about Zipplie?”


sábado, 9 de maio de 2015

Die deutsche Dame



Ich kann nicht mehr machen als was ich kann
ich bin eine Kopie von mir selbst

Sie ist sie
eine unermüdliche Tautologie

dennoch habe ich sie vor mir laufen lassen

Sie ist dort angekommen,
ich nicht... noch nicht..
aber ich werde
werde ich?

Wenn ich angekommen bin,
wird sie jedoch vielleicht nicht mehr dort bleiben
Sie bewegt sich immer noch
Ist es möglich?
Sind wir nicht im gleichen Raum?
und nicht in der gleichen Zeit?

Jetzt bin ich hier
Ich kann sie nur beobachten
sie sieht nahe aus,
aber nee...
Ich komme nie an,
Ich werde sie nie erreichen, denke ich...

Mein Verstand läuft langsam und begrenzt,
weil es keine sammelung der Möglichkeiten ist
Mein Gedanke ist ein gegangener Weg,
eine befahrene Strasse
ein Fakt
solide
wie ein Stein

Und sie? sie lebt
doch!

Sie läuft vor mir
immer weg
Ich kann sie nicht halten
nicht berühren
dann spiele ich mit ihrem Schatten

“Ein Stein der einer Schildkröte nachläuft”
Sagt der Wind

“Ich kann nicht mehr machen”
Sagt der Stein


sexta-feira, 24 de abril de 2015

As cinzas de Melanie



Não há introdução mais oportuna ao orador que o silêncio.

Porque o silêncio reforça a responsabilidade do ouvinte ou, simplesmente, porque dissimula a responsabilidade do que fala. Esse traquejo do versador presente também faz recair sobre os ombros do que ouve qualquer culpa pela qual não seja o discurso justificado ou eficiente.

O silêncio é também um recurso engenhoso que sibila no interstício entre a visão e a memória, lá onde ecoa uma voz noturna que se desdobra a partir da voz muda e transparente daquele que lê. Pois, é essa voz fantasma que ressoa soberana quando o mundo disponível a volta precisa resumir-se ao texto que enfrenta; não há espaço para ruídos nem mesmo imaginados; a linguagem é um campo de virtuosidade tão plena, que faz da memória meramente um instrumento peculiar.

O chefe de um Estado democrático tanto quanto o ditador implacável; o padrinho que toma a palavra no brinde tanto quanto aquele ocupado com o panegírico de uma alma em retirada; o mágico, o palhaço, o amante ou amigo em desabafo, a aeromoça em demonstração, o cineasta; todos pedem o silêncio diante de si, porque sobre essa solenidade edificam a dignidade de sua arte; o professor, esse homem que se acostumou com os privilégios da posição que ocupa e teme olhar no espelho e enxergar apenas uma autoridade vazia, como as insígnias de um capitão em tempos de paz; após o sonoro e triunfante silêncio, essas crianças diante da autoridade irão celebrar cada palavra alçada simplesmente porque o silêncio um segundo antes fez delas palavras de mérito.

Mas o silêncio, legitimador absoluto da eminência do enunciador, é também um vilão a espreita. Pois se o ouvido deseja e espera um só ruído diante si, o silêncio é como um acorde dominante que espera sem sucesso um tom que o resolva. Pois ao desejo silencioso, o silêncio não é senão frustração.

Mas não pense você que este é um trato sobre o silêncio, pois não é. Se fiz do silêncio introdução foi porque o tema requeria um tal ornamento. Por razão da importância dessas memórias, pedi o respeito em medida, que aqui não se teria apenas com o silêncio bruto da folha em branco; fiz então do silêncio narrado o símbolo oportuno.

Mas memórias também não se deitam aqui por puro acaso e a tristeza que você reconhece ou reconhecerá na melodia que agora ecoa e se espalha orquestradamente ao redor dessas palavras, é a minha tristeza, bem como as memórias com as quais ela se ocupa... ausências que justificativa alguma poderia saldar.

Ainda assim, não há morte que se reconheça neste manifesto. É a vida que segue onipresente e porque seja a morte uma impossibilidade literária, como é para uma consicência viva impossível tomar da morte senão os símbolos e jamais a dinâmica dos fatos, você não verá sangue, aqui; não ouvirá a narrativa de um acidente fatal; muito menos irá testemunhar a descrição de um cadáver.

Quando eu era pequeno, morávamos em uma casa com um grande quintal frontal. A cerca que nos separava do vizinho não era suficientemente alta para manter afastado do nosso terreno o seu galo. Um enorme galo - com esporas longas e pontíagudas - que de tempos em tempos atravessava e montava guarda em frente a nossa casa, no quintal entre a porta e o portão externo. Quando acontecia, ficávamos presos dentro da casa, aterrorizados com a postura ameaçadora do animal, que, conquanto fosse ainda menor que o menor de nós, mantinha-se ereto e em posição de ataque, insinuando investir contra um de nós sempre que um passo a frente ou a cabeça enfiada pelo vão da porta fazia menção a atravessarmos o quintal até a saída. Recolhíamo-nos em abrigo e esperávamos o galo partir, para seguir nossas vidas em mais um dia escolar ordinário.

Contei essa história a mim mesmo inúmeras vezes depois disso, mas o medo que aquela cena fez surtir na origem deu lugar a meras risadas, ainda que eu tenha me furtado aqui ao tom anedótico que, percebo, agora, passados os anos, convém ao caso. Mas não sendo mais possível reconhecer o medo nascente no coração da criança diante de animal tão insignificante em tamanho e anatomia, sou obrigado a supor que o medo que me afligia era de outra natureza. Talvez, o de chegar à escola e enfrentar, finalmente, a insignificância do discurso que se lançava a nós como o de um promissor futuro; ou a ideia de que seguíriamos pelos anos a fio e todo aquele comprometimento apenas para sermos mais ou menos o que já éramos ou simplesmente a sombra de nossos modelos instituídos; uma versão a mais daquela figura em cuja autoridade se espelhava o melhor dos mundos possíveis a nossa frente.

Mas é provável que em idade tão tenra eu ainda não tivesse um juizo tal empunhado. O medo devia então ser de natureza ainda outra. Apenas o que sei é que parece impossível agora conciliar esses dois sentimentos, o sentimento real e o que se recolhe à memória. Duas criaturas tão diversas quanto o menino de antes e o homem de hoje, como o personagem opaco e o narrador detalhista, não podem compartilhar um sentimento mútuo, ainda que os sentimentos diversos atendam pelo mesmo nome.

Certo dia, deixava-me guiar em ronda noturna suspeita por um colega um pouco mais velho, pulando de cerca em cerca nos terrenos da vizinhança, aparentemente sem rumo – o rumo havia e estava por ele traçado, apenas eu o desconhecia. O tamanho das cercas, veja você, não era problema. Se um galo de não mais que alguns centímetros era capaz de transpor a barreira que aqueles emaranhados de arame ofereciam, não seria diferente para nós com nossos corpos leves e flexíveis de crianças da terra. Para minha surpresa, paramos em frente ao pequeno viveiro onde dormiam as aves da vizinha. Meu colega vasculhava aquelas gaiolas em busca de algo em particular. Eu reconheci o galo sentado, silencioso e indefeso no canto da jaula. Em uma gaiola ao lado, uma pequena codorna, que meu colega tomou em mãos com cuidado antes de seguirmos em retirada, deixando para trás o galo e a cena de um roubo.

Trata-se, todavia, de mais uma memória de cujo propósito nesse texto não se pode precisar a razão. Os sentimentos que agora projeto são turvos e confusos. Lembro-me de haver questionado o rapaz assim que chegamos a sua casa. Tenho a imagem da pequena cordorna sendo deixada em um banheiro de serviço que dava direto ao quintal na casa dele. Mas também lembro, um tanto vagamente, a autoridade que ele exercicia sobre mim pelo fato, talvez, de que fosse um pouco mais velho e maior, ainda que a autoridade do galo se tenha imposto sendo ele mesmo menor e mais novo. Tenho vivas, contudo, as duas imagens: a do galo recluso e impotente em sua gaiola e a do animal altivo e intimidador diante de mim, minha mãe e minhas irmãs.

Mudamos-nos alguns anos depois. Nunca mais vi o Galo. Mas um medo de sair de casa pela manhã me ocorre ainda hoje, sempre que um compromisso inexpressivo qualquer me conduz de casa e porta afora num dia de semana que se repete. É, ainda assim, um medo qualquer...

Soube que o Galo morreu, embora a notícia, tendo-a recebido mais de uma década depois de minha última experiência com o animal, fosse apenas uma confirmação lógica de uma condição imposta pela natureza àquela criatura. Mas eis o dado novo que se levantou apenas após o anúncio do vaticinio: aparentemente, a dona da ave achava graça das nossas batalhas mantinais pelo direito de ir e vir, de outro modo, a nós garantido pela constituição - e em particular no terreno de nossa residência - e, por isso mesmo, soltava o Galo pelas manhãs em conivência com o paternalismo galiforme do eminente algoz meu de infância. Mas sobre esse testemunho é também a memória de muitos anos que me oferece a visada. Entre os sentimentos que transparecem e se projetam - sem muita vida, contudo - esse figura apenas como um a mais na extensa coleção de minhas lembranças.

A dona do galo viria a morrer, também, alguns anos depois dessa confissão, mas sua morte não servirá de apoio a um qualquer sentimentalismo, simplesmente porque se trata de uma memória vazia de afeto. São, assim, os meus afetos que impõe o rítmo e quando, sobretudo, me empenho em salvaguardá-los do medo, tão iminente, de que seja tudo tempo perdido; de que essa história seja pura e simplesmente uma covarde espoliação do seu tempo - caro leitor -, enquanto eu, por puro despeito ou vaidade, roubo a sua atenção sem mérito e nada a oferecer, sem que galo algum se tenha posto entre nós e me impelido a fala; faço apenas porque é esse o medo que agora me assalta; tão somente por isso estendo ele a vocês na forma de uma descrição repetida, excessiva e, talvez, desnecessária.

Não é apenas medo da frivolidade diagnosticada da circunstância desse apanágio, que se reitera a cada volta em redundância nos arabescos destas linhas, mas de que o sentimento real – aquele que sinto no corpo e que não posso transpor a vocês senão indiretamente – seja insignificante ou apenas mais uma expressão oca da minha vaidade. Mas eu sinto e não há respostas para tais sentimentos em livros, artigos, filmes, palestras ou missas. Meu sentimento por uma memória – conjunto de imagens visuais e sonoras residualmente inscritas em mim - não se pode justificar nem pelo objeto que referencia, que já não mais existe, nem pela reverência em perspectiva a um mundo porvir, feito quem sabe de luz e som, onde se faça estender essa existência que é aqui, agora, negada, porque minha consciência privada não me permite um tal recurso exegético.

Penso nela todos os dias, todavia, e a comoção recorrente me é um fardo. Como se tivesse entre mãos suas cinzas compactadas no volume de um saco plástico transparente – e isso é o mais próximo da descrição de um cadáver que se lerá aqui. E ainda que pareça possível reconstituir das cinzas, e através do fogo de um momento antes, o corpo sem vida e, antes ainda, a imagem em movimento que me inspira desconsolo... Gostaria de ter agora a imagem do cigarro queimando, lentamente, apenas para poder conservar em mente a medida e a extensão do processo, porque o tempo me escapa e com ele a densidade real dos meus sentimentos, que se dirigem nesse momento apenas a substâncias memoriais e não verdadeiramente as essas cinzas... caso as tivesse em mãos - Eu tampouco fumo.

Posso chorar, e o tenho feito diariamente. Mas estando sozinho, a quem ofereço esse choro? Recrimino-me a cada lágrima, porque não sei, de fato, quão genuíno é o sentimento com qual me ocupo. Costumo duvidar das expressões emotivas rasgadas, ou atribuí-las apenas a um impulso teatral, afinal, somos todos atores diante de um público sempre disposto. Mas me pergunto: por que são tais sentimentos tão urgentes em declararem-se a mim mesmo, em voz alta, ainda quando não há ninguém à volta?

Há resposta alguma nesses apelos? A minha própria morte deveria ser-me indiferente, mas uma sensação distinta me acomete sempre que a projeto nos anos a frente: algo como um deslocamento abdominal sutil, em cuja fisiologia não posso procurar explicação alguma, pois pouco compreendo do que se passa com meu corpo naquele instante: A morte é um colosso, eis aqui uma resposta – A morte é um colosso.

Não me deveria culpar, nem duvidar da comoção o enredo. Estranho mesmo é que haja indiferença diante de morte qualquer que nos tome de assalto, ainda que como um conhecimento furtivo.

A morte é um colosso e nem mesmo todos os panegíricos do mundo e nem longos anos de silêncio deliberado seriam suficientes pra dar conta da sua dimensão colossal. Soa apenas absurdo que todas essas mortes estampadas em reportagens ou nas páginas dos obituários diariamente não nos impossibilite de dar seguimento, simplesmente, às nossas vidas.

Entenda agora a razão dessa missa e desconte dela qualquer excesso que pareça querer contestar destas linhas a mais honesta seriedade. Trata-se de um apelo, um conselho ou tão somente uma sugestão: Não aceite nada que não seja absoluto estarrecimento diante da morte, de quem quer que seja, e mesmo de seu mais odioso inimigo.

A memória te trará sentimentos mais brandos e o tempo a razão dos detalhes que não couberam no momento. Mas a morte permanecerá intocada, inalterável, incorrigível, pois ela é num só instante toda a explicação do nascimento do mundo.


domingo, 29 de março de 2015

A saliva de Hidra



“Um crime sem vítimas”. Foi assim que ele se referiu ao trajeto de sua conduta, desde os pensamentos primitivos que o houveram impulsionado até a última linha do texto, onde se descrevia a ação.

O interrogatório prosseguiu: um inquisitor fazia perguntas e ponderava criticamente as respostas que vinham em seguida: o interrogado, homem, branco, heterossexual, bem vestido... havia sido chamado a depor após ter sido denunciado por agressão. O contexto que praticava era o de uma publicação recente, em que o autor relatava açoitar uma prostituta, descrevendo, palavra por palavra, uma situação de constrangimento, humilhação e covardia.

Defendia-se, contudo, dando como argumento o escudo da ficção: - Nada ali é real. É apenas um texto fictício. A figura da vítima não pode oferecer denuncia simplesmente porque ela não existe!

Do outro lado, uma voz feminina , calma e equilibrada, perguntava: - Por que, então, o senhor sustenta toda a narrativa em primeira pessoa? - para ele, no entanto, também aí não se configurava culpa por crime algum, dizia: - A primeira pessoa não define, em si mesma, a concretude da ação que relata. Aliás, nada a define senão a realidade em si. Eu mesmo, que escrevo, não sou aquele a quem minhas palavras endereçam identidade. Sou apenas o homem que empunha manualmente a linguagem, materialmente constituída.

Mas a voz tratava de colocá-lo novamente na posição que ali lhe cabia: - Você não pode determinar a legitimidade ou não da sua condenação, simplesmente porque não pode impor aqui suas regras. Neste espaço, você é apenas o réu. Projetar sua defesa como um ataque aos meios e razões de quem o julga é incorrer num erro ainda maior que aquele pelo qual você está sendo julgado. Portanto, por favor, limite-se a responder minhas perguntas

No texto, a mulher não tinha nome. As poucas palavras que diziam dela, vinham através de um narrador implacável, judicioso, autoritário e irônico. A ironia, afinal, era o instrumento mesmo através do qual se fazia diminuir aquela personagem à comparações grosseiras das mais baixas; dizia dela objeto de consumo; emprestava-lhe formas, cores, um preço determinado e um gosto particular, em cujos adjetivos se atestava, não as qualidades de um indivíduo, mas o julgamento de um deus, dono das verdades que produziam e eram produzidas pelas suas próprias palavras.

Não sou eu dono das imagens que me assaltam em íntimo? Não me pertence, por isso mesmo, o inescrutável das minhas ideias? - Perguntava ao seu algoz em defesa de si, mas também porque a pergunta traz consigo um tom de autoridade que resposta alguma pode saldar. Conhecendo, no entanto, o perímetro desenhado daquele movimento, abdicou de responder e, novamente, após um curto e contido silêncio, perguntou: - O que o senhor sentiu ao terminar, ao escrever a última letra? Quem o senhor pretendia atingir com tal publicação? - Antes que o acusado pudesse responder, a voz levantou-se (porque era ao mesmo tempo também um corpo) e caminhou ao redor dele cadenciando os passos, intimidatoriamente. Também, por isso, a resposta não veio em seguida porque estava tomado por medo o homem, sentado de frente a uma pequena mesa de metal escovado, que poderia haver saído de uma câmara de tortura ou de uma clínica veterinária. Ele podia, então, imaginar-se sobre ela como um pequeno animal doméstico prestes a ser abatido por piedade ou conveniência e isso fazia-o esquecer a pergunta que lhe houvera sido feita, justificando o gesto que seu inquisitor teve em seguida, o de arrastar sua cadeira, pressionando-o contra a pequena mesa e exigindo resposta.

- Eu me senti... me senti satisfeito. Não, não... me senti indiferente, como se tivesse apenas cumprido uma tarefa ordinária. Não tinha em mente um leitor específico, ou melhor, fazia-me eu mesmo de algo como um leitor modelo. Como, aliás, acredito que façam todos os que escrevem. - concluiu sentindo-se triunfante em sua sua retórica, após um inicio visivelmente sofrível.

- Você não espera que eu acredite nisso, espera? - Disse ela, sem esperar resposta alguma. Ele, então, se tentou impor mais uma vez, questionando o objetivo daquela pergunta sem outro propósito senão o de intimidá-lo: - Por que você faz isso? O que eu fiz pra você? - E se escondia assim atrás de um véu de vitimização, como fazem todos aqueles em situação análoga. Cumpre, pois, que o réu em um processo de condenação é, também ele em certo sentido, uma vítima. Se pudéssemos separar todos os eventos e ações em segmentos e isolá-los de modo que não houvesse participação alguma de um no outro, o acusado seria, em vista da punição a ele imposta, nada mais que uma vítima.

Mas a justiça é um ideia que requer dimensão ampliada e, portanto, não pode ser apreendida senão através de uma imagem maior. Desse modo, dos seus apelos pela compassividade de seu “carrasco”, a voz, e o corpo que agora se podia enxergar ao redor dela, ouvia apenas o covarde indigno, incapaz de se responsabilizar pelas palavras que lançava, simplesmente porque estas ficavam para trás no tempo toda vez quando ditas ou lidas. E a figura de vítima que tinha ele de si, então, se deformava e assumia o aspecto do covarde manipulador, uma vez que podia supor e imaginar, da voz, os juízos e as sentenças não pronunciadas – o contexto é um código poderoso a partir do qual podem ler, diversos interpretantes, uma mesma mensagem.

A voz se pôs em silêncio e o corpo voltou a caminhar, dessa vez atrás dele, de um lado ao outro. O barulho do salto, cadenciado e intermitente, explodia nos ouvidos do acusado como golpes violentos desferidos pelas costas com instrumento pontiagudo. Ele fechou os olhos e tapou os ouvidos. Mergulhou fundo na imaginação dentro de si, aquela mesma imaginação na qual havia ele (ou qualquer personalidade que sua voz em primeira pessoa houvesse vestido) uma mulher humilhado. Agora, apenas uma sala escura, vazia, repleta de pensamentos vagos, culpa, ecos de uma narrativa na qual ele não era, como antes, uma autoridade irrepreensível, mas um monstro tirano.

Abriu os olhos e olhou ao redor a sala vazia. Nenhum corpo, nenhuma voz. Na mesa a frente, agora peça de um mobiliário de escritório qualquer em madeira, uma carta. Lançou os olhos ao texto, mas ele não precisou ler, porque já o conhecia.

Assinou o documento como confissão inequívoca dos crimes ali assinalados, levantou-se e partiu sem precisar por os olhos sobre a sentença que concluía o texto (saberia invocá-la se lhe fosse assim requerido) e dizia:

O autor será sempre o herói das façanhas descritas, ainda quando a façanha descrita seja um crime hediondo - e um crime hediondo será um crime hediondo ainda que ficção seja, porque a realidade das palavras anunciadas procede por tautologia, simplesmente.




sexta-feira, 27 de fevereiro de 2015

I watch them all falling down all day

I was about to enter a supermarket near to the corner of Birkenstrasse with Putlizstrasse, when I saw a man of arab resemblance (to whom a average german would call a turkish) closing his jacket right in front of the exit of the store, preparing himself to face the cold wind which was waiting for him outside, from where I came. While closing the jacket, the Arab sang a song which sounded absolutly exotic to me and reached my ears somewhat like this: "Odê Odê, domin o dans ki, odê..."

As I crossed the door and passed the man, the music reverberated in my head and little by little it was being shaped a song from that milenar culture, which still nowadays haunts our cities...

All day, all day! Watch them all fall down
All day, all day! Domino dancing
All day, all day! Watch them all fall down
All day, all day! Domino dancing


sábado, 31 de janeiro de 2015

A Notícia




Entrei no vagão e sentei-me num banco dianteiro, afastando-me da porta por onde o calor escapava em toda parada pelo trem feita, recolhendo e deixando seus passageiros.
O trem acelerou. S42 Ring Bahn: o “S” faz referência ao título Schnell (rápido) Bahn, que o sistema recebera na época de sua criação, quando, quem sabe, justificava-se.
Hoje, não há nada de particularmente rápido que, ali, faça valer menção tão enfática.
Mas apesar do passado tão presente, é da atualização constante que vive a cidade, fazendo dos prédios antigos e monumentos apenas objetos de decoração. E o trem, esse velho senhor de tez tão antiquada, segue fazendo voltas ao redor dela porque, apesar da ferrugem que eventualmente assalta seus trilhos, além do passado, é também o presente e, ainda hoje, o futuro (se é que ainda há mesmo algum lugar para ir).
O trem parou. Um senhor de barba e cabelos brancos entrou e anunciou com uma voz rouca e cansada em uma língua tão rouca quanto, mas ainda cheia de vitalidade: “Normaleweise würde ich Ihnen die aktuelle Ausgabe der Obdachlosenzeitung Strassenfeger verkaufen. Die aktuelle Ausgabe war so interessant, dass sie seit 4 Tagen ausverkauft ist. Deswegen kann ich heute leider keine Zeitung mehr anbieten. Ich bitte sie um ihre grosszügige Spende, dass ich morgen Zeitungen der neuen Ausgabe kaufen kann.”
Trocando em miúdos, o senhor pedia, por meio de um tal expediente, contribuições para comprar exemplares da nova edição do jornal que, hoje, ele não lhes poderia oferecer porque, “infelizmente”, na razão de ser aquela edição “tão interessante”, já se havia esgotado há 4 dias.
O jornal, que atende pelo título de “jornal dos sem-teto”, faz-se ali não apenas do veículo de informação - nova e supostamente relevante -, como também instrumento de reintegração para alguns desafortunados, através do qual a jornada diária do excluído em angariação de meios materiais para sua sobrevivência perde a indignidade atribuída por aquela mentalidade protestante e se renova em trabalho, orgulho e recurso estratégico.
Mas por razão de evento extraordinário ou talento editorial, fez-se daquela edição tão valiosa que se esgotou. Naquele dado instante, assim, o advento da notícia na forma do produto oferecido entrava em conflito com as reivindicações de um passado moral ainda determinantemente presente, fazendo ecoar - ainda que nas cabeças mais desacreditadas - a ideia de que o trabalho dignifica o homem. Pois se tendo vendido todos os exemplares daquela edição, ainda que se pudessem por isso vangloriar editor e redatores, ficou o pobre homem impedido de exercer a parte que lhe cabia naquela cadeia de ação em justo trabalho.
Pedir, no entanto, não me parece pecado algum e, tampouco, é o trabalho pelo trabalho em si um gesto acima de quaisquer suspeitas. O caso é que não me dei ao trabalho de por nos bolsos a mão, como não o teria feito pela compra da edição que, de todo modo, se esgotara – interessante que fosse a notícia, a teria lido no conforto do meu próprio espaço, através de veículo ainda mais rápido que o trem abaixo de mim.
Mas qualquer que seja a notícia, não é senão a cidade que a torna possível e através de seus meios e no tecido de seus encontros e reencontros, como nos trilhos em círculo daquela linha eu, provavelmente, voltaria a encontrar senhor como aquele, em labuta ou mendicância tão digna quanto a minha avareza ou a generosidade de quem lhe teve algum dinheiro entregado. Porque do passado retive a memória e o futuro só se faz existir em movimento e no espaço.