quarta-feira, 4 de maio de 2011

A saga do homem-morcego no. 2

Após resolver os trâmites de sua entrada no ônibus – já que o homem-morcego havia esquecido a carteira (gênero de memória certamente subutilizado por um figurão da justiça como ele) – sentou-se ao fundo do veículo sem que nenhum comentário ofensivo houvesse sido resmungado pelos poucos passageiros que justificavam a viagem, do que se pode inferir que o herói não pulou a roleta quando, de pronto, ouviria ( para que não falte justeza ao personagem com a biologia do animal que o nomeia, também esse sentido tem em altíssima eficácia) reclamações da senhora que se sentava no banco logo ao lado do trocador - a mesma senhora que tanto reclamara 5 minutos antes quando um sujeito alto e magro praticou entrada semelhante no espaço restrito aos pagantes.

Curioso mesmo é que se podia notar no semblante do homem-morcego um desconforto resoluto com a trepidação continua do veículo, justamente por ser na parte de trás do automóvel que essa movimentação se faz mais brusca. E embora o letrado Bruce Wayne que se escondia por baixo do traje fosse versado em línguas, filosofia, matemática avançada, astronomia, e musica clássica (para não citar economia doméstica, dança de salão, moda e cultura sado-maso, que pela vulgaridade e metodologia difusa parecem se afigurar como ciências menores), não era capaz de associar o fenômeno físico da turbulência com a posição ocupada no ônibus uma vez que nunca antes havia entrado num transporte coletivo daquela natureza. Pois bem, manteve o desconforto na tez quase inerte (exceto por um leve levantar de sobrancelha, gesto sob qual se havia cristalizado a sublimação de experiências como dor de cabeça e asía, que o herói havia deixado de expressar há algum tempo na sua condição de sobre-humano, mas que nunca de fato deixara de sentir) até o instante em que o homem magro e alto se levantou dois pontos depois da entrada do Batman naquele transporte, e anunciou um assalto aos raros passageiros daquela viatura com um revólver empunhado ao alto com a mão direita.

Foi naquele momento que tiveram todos certeza da veracidade do homem fantasiado, visto que antes mesmo de se levantar, uma música orquestrada vinda do além (ou mesmo brotada do espaço, como em abiogênese descrita em livros antigos em que nascem ratos de uma pilha de roupas sujas) fez notar, por um direcionamento subliminar particular das atenções para a expectativa diante das atitudes possíveis do personagem, que era ele mesmo ali que tomaria a cena em protagonismo, que se antes lhe era digno pelo desconforto e descontexto da casta, seria agora pela justa virtude que lhe concedia a insígnia de herói. Levantou-se, pois, diante do algoz que parecia agora petrificado em frente à imagem de tão ostensiva autoridade. O bandido pensou em dar-lhe um tiro com a arma que tinha, mas ainda que sua precisão fosse irrepreensível (e sabe este narrador - por um dispositivo oculto que diz da natureza mesma da narração - que não era), imaginou as artimanhas que postulava o encapado que se erguia à sua frente: colete a prova de balas, campo de forca invisível, ou um dispositivo eficazmente elaborado para interromper as ações do bandido no instante da intenção anunciada. Nisso, a música que dava ritmo à cena se intensificava e deixava ainda mais pasmas àquelas pessoas que, por compreensão da própria existência atada ao exercício pessoal de um inalienável cogito, desentendiam a música que sobrevoava - e mesmo aqueles mais céticos se perguntavam: “ainda que fosse um filme e nós meros personagens, deveria a música para nós fazer-se ouvida?”. Foi quando o meliante, confundido na diegese de sua própria consciência, largou a arma, pediu desculpas a todos e, em particular para o herói, disse: “Se você me permite, descerei do ônibus no próximo ponto, e espero assim não incomodar mais a viagem de nenhum passageiro.”

Agora, cabia ao Batman a definição do impasse. Pensou, num primeiro instante, se teria o homem de fato cometido um crime: “Empunhou a arma e ameaçou seus iguais, mas até então sem nem roubo nem homicídio impetrado”. Ponderou, por um lado, as intenções iniciais do rapaz, incluindo nisso os termos de que já a ameaça e o empunho da arma se constituiam num crime. Pesou, no entanto, partindo de uma lógica que se lhe fora apresentada pela primeira vez há poucos minutos, as condições socio-econômicas do tal: tratava-se de um home negro e pobre, a julgar pelas roupas e pela necessidade de uma atividade criminosa tão questionavelmente rentosa considerando a quantidade e a condição financeira daqueles passageiros (exceto pelo próprio Batman, que apesar de não trazer consigo um tostão, trazia, no todo, alguns milhares de dólares investidos: na roupa, nas botas, na capa, na máscara e, certamente, no cinto). Decidiu, então, que o deveria deixar seguir sua vida; que não competia a ele – Batman – a escolha sobre o destino imediato do miserável. Mas havia um problema, e o próprio homem-morcego percebeu o disparate anunciado em deixar fugir o criminoso quando a música que, naquele momento, regia o combate versava sobre a magnificência e eficácia de um super-herói que, para além das virtudes morais, era homem de força e habilidade físicas inabaláveis. Ou seja, percebeu, por fim, que a trilha sonora por desconhecido demiurgo praticada não era aquela singela e introspectiva do personagem humanizado que reconhecendo a falibilidade indiscriminada do demasiado humano à sua frente, reconhecia a si mesmo no inimigo. Não! Ao contrário, tratava a música de um herói temido e implacável que não somente haveria de proteger os cidadãos modelos que espreitavam a cena naquele ônibus, mas que, sobretudo, faria servir de exemplo àquele infeliz criminoso (que apesar da condição social, possuía arbítrio e domínio de si para escolher as ações que fossem dentro de um escopo moral o qual não somente conhecia, mas do qual partilhavam, mormente, pessoas de origem semelhante ao do próprio bandido) para uma possível platéia que, não estando no ônibus, assistia à cena de algum lugar privilegiado onde, provavelmente, a música não pareceria em completo absurdo, como parecia àqueles poucos homens e mulheres que habitavam a cena.

Haja vista, o homem-morcegou puxou seu bumerangue na forma de um pequeno morcego antes que o superestimado vilão pudesse completar sua fuga e arremessou contra as pernas do tal. Dividiu-se o mecânico mamífero em dois, estes mediados por uma justa corda que se enroscou imediatamente nos tornozelos do algoz, fazendo-o cair. Quando a música já passara pelo ápice da intensidade e declinava a dinâmica em conformidade com o drama narrado, e antes que os contornos finais daquela captura se pudesse descrever, deixou-se a imagem do interior do ônibus para um plano geral que mostrava, no céu noturno sobre a Leopoldina, a projeção iluminada com a marca de nosso herói chiroptera. E pairou no ar, junto ao desfecho sonoro do enredo, uma sensação de justeza e conformidade da qual não poderia a polícia do Rio de Janeiro (e nem mesmo um altivo e implacável Capitão Nascimento) fazer-se, de forma alguma, agente.