quarta-feira, 9 de dezembro de 2009

...que tudo que a antena captá, meu coração captura...

Semana passada, pus meu televisor no conserto. Isso porque sou dessas criaturas antiquadas que ainda crêem no conserto de certas coisas, embora minha crença não se estenda para muito além dos aparelhos eletrônicos. De qualquer modo, compreendo perfeitamente o protesto que sempre me chega aos ouvidos nessas horas, de que sai “muito mais em conta” comprar logo uma nova. Mas penso isto: - que diabos de ser humano eu seria se não desse à velha tevê uma segunda chance?

Quando cheguei à loja, percebi logo que a clientela do lugar, se sua idade fôsse posta em média, cercaria a casa dos 65 – isso contando com o descenso significativo dos meus quarenta e poucos já contabilizados na média. E porque, então, deveria ser diferente? As novas gerações sempre tão acostumadas aos descartáveis, jamais entenderiam o ofício dêsses trabalhadores manuais, que se já não vislumbram nova profissão, certamente engolem sequiosos a expectativa do desemprego - senão em alguns meses, em poucos anos, com algum otimismo. O caso é êsse: disse-me o rapaz que ficaria pronta em dez ou doze dias. “Uma semana ou duas” – acrescentou como se quisesse me certificar de que “dez ou doze” não tem lá a matemática precisa que computam os da velha guarda que por ali costumam passar. Em tôdo caso, saí satisfeito, já que temia ouvir de sua boca, como a sentença inexpugnável de um médico da família quando diz: “não tem mais jeito!” Ora lá, que são dez ou doze dias - e ainda que sejam catorze, quinze ou dezesseis - quando se tem a solução ao alcance? Quisera eu que essa irretorquível lógica tivesse alguma mínima inteligibilidade para os jovens de hoje.

Passaram-se quatro e cinco dias; seis e sete; e esse oitavo no qual me encontro agora. E se dei toda essa volta para arribar em novo problema, foi porque não poderia ter passado sem o transcurso que se deu, já que faço imperativo que vejam a pessoa esta que sou, para que assim, também, minhas palavras se possam ler com contexto e vizinhança. Fiz-me o prato de acôrdo com a comedela de que dispunha. Nada, porém, de exageros. Dos exageros, basta-me esta abaciada pança que me vale - ainda que eu debique feito passarinho – a fama de esgalamido entre os colegas de trabalho e, também, toda a gente que se põe a julgar meus hábitos alimentares apenas pelo que consegue ver (embora meus 98 quilos não sejam, assim, coisa menor à vista). Mas que diabos! Isso nada tem a ver com a história... Jantava serenamente à mesa depois da senda praticada repetidamente durante o dia, quando inconsulta solidão invadiu-me o ânimo. Soube logo do que se tratava. Jantava todos os dias à frente do televisor e, naquele momento, passava sem essa. Logicamente, não foi uma súbita saudade. Havia sentido sua falta durante a semana, especialmente nas horas de janta, quando me punha sozinho com meus pensamentos, já que o comer me é automático e dispensa a maior parte do intelecto de que gozo. Mas um náufrago qualquer saberá reconhecer que a solidão do oitavo dia é sempre mais inflamada que a do sétimo. E chego aqui porque tenho isto a dizer:

Não raro chega-me aos ouvidos calorosas reclamações ao teor conteudístico das programações televisivas e, geralmente, abstenho-me do questionamento. Penso: “não se aprende mesmo nada com a tevê”. E, no entanto, percebo agora que nada do que faço ou procuro fazer diante do aparelho que tenho em casa está, de fato, relacionado a qualquer forma de aprendizado. Ora, a constância do ruído; as ataviadas figuras dos programas que se repetem; a luz intermitente e as alterações luminosas dadas com as trocas de quadro e, sobretudo, a excessiva leviandade de nossa relação com o suposto conteúdo da praça são, em propósito, o argumento definitivo para que afirmemos dela –a televisão – não um difusor de conteúdos, mas a companhia mundana a qual escolhemos por arbítrio circunstancial, porque nem sempre verdadeira é a máxima do antes só que mal acompanhado. A solidão, pois, que eu ali sentia era aquela mesma proporcionada pela ausência do amigo diário, que viajou e não volta até a próxima semana. E se convém a chancela dessa metáfora, logo, não se deve ter em parâmetros análogos o juízo que dela, a televisão, se faz? Que tipo de criatura avessa é capaz de mal julgar um amigo sob o epíteto de que não tem conteúdo? Aliás, muito comum é o determinado de que as mesmas pessoas que criticam com suma eficiência o conteúdo dos programas que lá passam pela televisão, sejam aquelas que ostentam os mais néscios partidários.

Lembro-me, agora, de uma canção certa feita me vinda aos ouvidos, que culpava a televisão pelo excessivo emburrecimento daquele que a cantava. Mas burro êsse de bom senso, que é capaz de reconhecer-se na completa ignorância; ou, então, tão burro é que não podemos tomar-lhe as palavras ao pé da letra e, nesse caso, deve mesmo é sê-lo de intelecto acima da média – deste modo também versado em paradoxos. Tudo o que sei é isto: que emburrecer é coisa pr’aqueles que têm propensão ao trato e, de qualquer modo, não acredito que venha a ser esta a função do amigo presente, mas outra: a de acalmar com a ternura de sua mais severa inaptidão e, no pior dos possíveis quadros, fazer tornar-nos mais tolerantes a essa.

(Quatro dias depois...)

Liguei para a loja e o rapaz respondeu-me que eu teria que esperar por mais dois ou três dias. Indignado e ignorando as ressalvas em que se teve marcado aquele “uma semana ou duas”, impetrei-o sem dó: “Você não tinha dito ‘dez ou doze’? Não quero saber! Ou essa televisão fica pronta hoje ou eu processo essa bodega por quebra de contrato oral!” – acho que nem preciso dizer, mas essa aprendi foi com a tevê.

Um comentário:

  1. Mto bom!
    Percebo sua idade pelos circunflexos nos pronomes demonstrativos.

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