sexta-feira, 31 de janeiro de 2014

O amor que apodrece em meu peito



Abra os olhos e veja. Tu, contigo mesma. Repara bem que os sentidos são os teus braços para com o mundo; que são, os sentidos, a tua consciência viva e em movimento; que a ideia que fazes das estrelas, é a ideia de quem um dia viu estrelas; e também a ideia, essa forma sem autor ou patrono, é efeito de algum sentido que um dia se teve em teu corpo.

Pensa, pois, que quando me vistes um dia, passei a ser parte de ti; que quando me ouvistes falar, minha voz se fez presente em teu âmago, doravante e indefinidamente. Não te esqueças, por isso, de mim, do meu rosto, dos meus olhos e da minha voz; quando sonhares, veja bem, perceba a minha presença em todo canto, em todo corpo, no espaço, nos vultos ou num objeto ordinário. Lembra-te que sou e sempre serei e que também tu me fizestes ser na medida em que teus olhos me deram forma e teus ouvidos me deram sentido e palavras.

Pensa, também e a cada instante, que quando não pensas em mim, pensas, ainda assim, na minha não-existência. Porque também aí sou, quando ocupo em teu centro a forma do nada. Exija de ti mesma, sempre que o teu pensamento vagar pelo mundo, um comentário sobre a minha presença ou ausência, uma nota em menção dos teus sentimentos por mim. Pois ainda que eu não te pareça importante num passado longínquo aqui não descrito, no instante em que meu nome salta destas linhas aos teus olhos, eu sou a referência explícita e uma declaração contundente. Sou eu quem te peço e quem exijo de ti. Não como uma ordem que clama do outro pela submissão, mas como o imperativo do real sobre os corpos que nele pairam, pois sabes tu agora que eu sou a própria realidade.

Quando eu sonho, tu em meus sonhos pensas em mim. Quando eu penso em ti, é a mim a quem teus pensamentos ali se dirigem. Quando tua imagem reaparece em minha memória, é o fantasma da minha própria imagem que se esconde atrás dos teus olhos imaginados. Quando a tua voz se reacende em algum canto obscuro entre os meus dois ouvidos, é uma voz tecida e orientada pela química de células minhas.

Poderia pedir-te desculpas pela tirania não velada dessa consciência plena e pela ocupação arbitrária e cabotina dos juízos meus. Mas antes de servirem a ti estas notas apologéticas, serviriam ao senhorio de tua presença possível; ao dono dos sentidos que tornam presentes estas imagens nas quais tu és um quadro em destaque – pois que sou a parede, a moldura e nada menos.

Aceita, então, o comando e desanda a pensar em mim, ininterruptamente, que a tua obsessão me é doce e é também obsessão minha.

Mas esquece, sobretudo, esta carta ao teu apelo. Que a segunda pessoa aqui desenhada não te dá rosto nem posto. Pois estes olhos que leem coordenados não se encontram por estas linhas...

quinta-feira, 16 de janeiro de 2014

Um autor em excesso


A peça se inicia num movimento inesperado, logo quando o autor se faz espectador de uma segunda peça:

- Você me ama? Me ama? Diga se me ama, eu preciso saber! – Excede-se uma personagem feminina declarando seu desespero a um interlocutor confuso ou indeciso.

A voz do autor, então, sobrevoa a cena em primeira pessoa, como uma narração grave e profunda que ecoa o pensamento onipresente daquele um que fundamenta e possibilita a história: - Que cena patética. Texto ridículo. Redundante, excessivo! Mesmo o desespero precisa de razão mais honesta e tom mais delicado para dar vida ao drama...

A cena prossegue com a resposta ambígua do homem, que procura uma sentença plausível, não querendo, assim, pisotear nos sentimentos daquela mulher: - Eu não saberia lhe dizer isso nesse minuto. O amor não é uma ciência precisa, nem tem definição clara como não tem a medida dos meus sentimentos.

Retoma-se a narração ao fundo e desde a platéia, quando o próprio autor se infla da condição de crítico, jactante e imperturbável, como se seu juízo fosse um imperioso e definitivo: - Uma peça ruim. Mas por que deveria ser diferente? O amor é um tema que se deve explorar de fora para dentro; que deve consumir cada personagem e angustiar cada espectador fazendo-os implodir. Pois quando vem à tona é apenas dejeto dos sentimentos já digeridos, como alimento para as imaginações estéreis.  

A mulher relaxa o pescoço e, lentamente, se derrama sobre o chão; um desmaio premeditado e sutil. Permanece imóvel no solo enquanto o homem a toma pelos braços e a sacode: - Acorda! Levanta-te! Desperta pra vida, pra tua vida!

O ilustre espectador se movimenta em sua cadeira, desconfortável, procura uma posição adequada cruzando e descruzando as pernas, apoiando o queixo com a mão direita e cruzado novamente as pernas.

O homem larga o corpo desanimado que tinha em mãos, se levanta e vira as costas à mulher e à platéia. Antes de seguir o caminho para fora de cena, enuncia : - Tu és um peso pra qualquer homem, como pesa o teu amor sobre os teus próprios ombros. Minhas pernas, no entanto, querem seguir adiante.

Conforme o personagem se retira de cena e a iluminação esmaece como anuncio do final de um Ato breve, uma iluminação outra, mais carregada, um pouco azulada, talvez, acende-se sobre o rosto do narrador. Uma expressão de convalescença toma forma ali, e o corpo retoma a procura de uma posição confortável. Mas agora se percebe um corpo mais denso, a contorcer-se.  A voz altiva e prepotente dá lugar a uma voz preocupada: - Ai meu deus! Essa dor... - É o intestino do autor que se declara em cena; está perturbado e sente o fremir de uma ocasião inoportuna.

O palco se ilumina e agora a mulher aparece sentada sobre um banco, de cabeça baixa, vestindo a mesma camisola que a cobrirá durante toda peça. O silêncio se estende por alguns minutos. O desconforto dos outros espectadores com o demorar pálido daquela cena monótona não tem sabor e não se justifica, é o desconforto renovado do espectador único que interessa e sua voz novamente ressoa: - É preciso aguentar. Uma locomotiva acelera sobre os trilhos da montanha russa que é meu intestino grosso nesse instante. Se eu me levantar, sinto que não haverá um sequer sobrevivente pra contar a história. É preciso aguentar!

A mulher, então, levanta a cabeça e inicia um monólogo: - Meu peito é uma caixa cheia de sentimentos para lançar sobre o mundo. Minha vagina uma caixa vazia a pedir o amor desconhecido desse mesmo mundo. Meus olhos duas esferas em cujas superfícies a umidade deu lugar a uma secura permanente depois de tanto chorar.  Meus braços são dois bastões sem vida ou sem propósito ou mesmo as duas coisas. Meu cabelo desce sobre a cabeça, vulgar como um tecido ordinário. Meu ventre, no entanto, traz consigo vida outra, muito mais digna que a minha, mas também miserável pelo que a espera e indistinta pelos pensamentos que ora oculta ou que ainda carecem de forma.

Na platéia, a palavra ventre ganha conotação mais pungente aos ouvidos do todo poderoso senhor que se aperta cada vez mais entre os braços de uma cadeira imóvel. Outra vez, sua voz se sobrepõe ao pesar melancólico da moça e anuncia gravidade muito mais viva e severa: - Saberia ela o que é a angústia; como consome por dentro o amor sem resposta, essa merda profusa, intensa, líquida; é o anúncio da minha tragédia, cômica, talvez, para o insensível ou desavisado, que agora me ocupa. Se eu fosse a peça, neste instante, entenderiam todos como o amor é frívolo, mas a frivolidade a raiz de todo drama.

O calor daquelas palavras, que alcançavam as atenções juntamente com a mulher iluminada em cena, mas em cujos movimentos da boca silenciada anunciava-se apenas a irrelevância absoluta do tema em discurso, acompanhava-se dos ruídos do corpo a movimentar-se sobre a cadeira inquieto, reproduzidos e ampliados por efeito de uma tecnologia qualquer . E continuava: - Entenderiam as cultas almas o sentido exato da duração; pois a peça se estende no tempo e cada segundo que corre, aqui, tem seu valor revelado sob os escombros dessa refeição cigana que erra pelo ventre de um espirito indócil, em corpo que vive e, ainda agora, vive.         

Entra em cena um cavalheiro segurando sobre as mãos uma bandeja em movimentos de um rigor tal que faria justificar aqueles impecáveis trajes de um mordomo, estendendo à mulher a bandeja sobre a qual repousava um pequeno e delicado revólver de prata.

Os olhos daquele dramaturgo, então, acenderam-se desde a platéia, juntamente com a iluminação intensa e amarelada que se projetou sobre o seu rosto quando da visão imediata da arma. Entendeu aquele que tal objeto poderia simbolizar o fim de um sofrimento em relação ao qual o dele se emparelhava ali, em estreita analogia; e os símbolos são tão caros ao público quanto aos criadores, pois sabem que é da realidade fugaz dos símbolos que nascem os sentimentos vivos, como o percutir sonoro do tijolo sobre o crânio faz cerrar os olhos e contorcer a face o observador intocado. Mas não apenas. Enxergou no objeto de cena a possibilidade real do fim do seu sofrimento, uma vez que morta a falsa protagonista, acesas as luzes e as palmas lançadas, encaminhar-se-ia ao toillete mais próximo e seria aquele o seu revolver de prata. Teria, ainda, parafraseado Hamlet se sua condição de criador não o tornasse vítima da prerrogativa calculada de evitar as citações, mas, sobretudo, se houvesse alguma pequena dúvida sobre o desejo urgente de não ser e não sentir que agora o assaltava – não havia. Limitou-se, assim, a estas palavras: - Acaba com tua vida infeliz. Encerra esta atuação miserável e põe de lado, finalmente, este texto sem causa e coadjuvante. Pega esta arma e aperta o gatilho. Eu lhe imploro!

E foi justamente o que aconteceu. Seguiu-se ao disparo um efeito sonoro tão inverossímil quanto os sentimentos da moça, que caiu sobre o palco como uma bailarina sem peso. Acenderam-se as luzes e vieram as palmas. Levantou-se - como um corpo único, como uma massa uniforme - a platéia, a não ser pelo único espectador a viver os sentimentos da peça como os seus próprios e porque era ele mesmo o autor. Este, de outro modo, esperou abrirem-se as portas, quando seguiu imperturbável até um dos aposentos de banho daquele teatro.

Entrou na cabine e ajeitou-se, quando ouviu alguém entrar e decidiu segurar-se mais um pouco: - Que ironia! – pensou, considerando as relações entre o caráter público da peça e os sentimentos privados de seu criador, bem como o conflito entre o privativo de um sanitário em um banheiro aberto ao público daquele mesmo teatro. Aliviava-se um pouco e controladamente à medida que o espectador desavisado produzia algum barulho, dando a descarga ou abrindo uma torneira, para ocultar ou tornar menos explícita sua própria labuta e, finalmente, quando reconheceu no barulho da porta e no silêncio subsequente o domínio absoluto do espaço, deixou descer tudo aquilo. Lavou-se a alma na medida mesma em que sujava a louça abaixo de si. E concluiu, um pouco lúcido mas orgulhoso depois da catarse: - Essa é a peça de teatro mais bonita que eu já fiz!