sábado, 15 de junho de 2013

Meu caro colega, o senhor me deve vinte centavos!



Ligo a televisão e me deparo com a fala grotesca do governador. Depois dele, as imbecilidades incorrigíveis de um célebre cronista político são suficientes para me colocarem em estado de crítica insatisfação - fisiológica, inclusive.

Sinto-me enjoado. Parece-me difícil distinguir por entre as sensações que me agora causam desconforto, aquelas  essenciais que determinam meu mal estar diante das falas que emanam do aparelho de tv até meus ouvidos e olhos.

Minha primeira reação é culpar-me os sentidos e, então, desligo a tv. Não basta! Não me basta não ouvir mais. Saber  que outros milhões observam e absorvem aqueles mesmos depoimentos faz deixar percorrer, ainda, a sensação ruim que me nauseia desde a boca do estômago até a garganta. Percebo, assim, que o problema ali sou eu mesmo. Aquelas falas não se dirigem a mim.

E nem poderiam.

Os governantes falam, como aquele, aos milhões, nunca a um e a outro. Adomais, a posição que se pede ali, à frente da televisão, não é minha. Nesse momento, milhares de pessoas estão nas ruas, empenhando sua qualidade de um e outro a transfigurarem-se em milhares. É a despeito desses milhares que a fala do governador se projeta - contra eles.

Eis o problema que agora sou. Deveria eu estar também nas ruas. O mal estar que me assalta toma, entao, a forma precisa da culpa; a incongruência da posição que ora ocupo - esse lugar não me pertence; aqui, sou a audiência imprópria de um discurso que não se dirige à mim.

E como poderia?

Fala o governador que a massa é ignorante ou politicamente mal intencionada; que a massa é obtusa, intransigente e avessa a ordem que se institui com o Estado; a massa é caótica, imprecisa e perturbadora; contrária a ordem que é, em resumo, nosso único bem comum.

Os teria chamado anarquistas se, ao invés da massa, fossem uns e outros a manifestarem-se sem rítmo e sincronicidade, mas nem mesmo o governador pode negar que há harmonia e conjunto ali. Deve, então, sugerir que do conjunto sobressai a "intencionalidade má".

Não posso deixar de notar, que a fala do governador é contraditória. Enquanto afirma uma situação política particular, subrepticia, maquinada e senhora de si, fala ainda de bagunça, vandalismo, reiterando a natureza entrópica dessa investida.

Assim sendo, não posso reconhecer o universo sugerido pela fala do governador, porque a ordem a qual se refere ele é uma ordem inteiramente outra daquela que se instala no meio da multidão: essa sim, uma ordem urgente e esperançosa.

Estando a observar a massa de longe, eu mesmo diante da voz e das ideias do governador de um princípio ordenador absolutamente distinto, reconheço a ordem - a mais clara ordem! E se  há nela  uma contradição, deve ser, no entanto, uma contradição também outra. Ao invés de dizermos, então, que o "crime organizado" se atira ao ataque à completa desorganização, diremos que são indivíduos e grupos; que gritam ofensas e palavras de ordem; que se insurgem e amam incondicionalmente; que têm ideais e impulsos; que são sonhadores e se desesperam muito além da moda que vigorava em 73. E se alguma entropia aí se revela, reside ela no caos que, como no discurso do governador, atende sob o nome de ordem e se estabelece na razão sem razão de toda injustiça; toda extravagante e covarde agressão e toda espoliação da qual são vítimas os milhões, os milhares e, certamente, um e outro.

Não, essa ordem não é minha - e daí sobrevêm que a refeição que tenho no estômago também não queira ali ficar. Minha ordem deve ser uma outra - essa, avessa àquela para a qual se dirige o governador ou mesmo àquela dos meios e da estrutura  que faz resultar que a fala do governador tenha olhos e ouvidos atentos e em acordo.

Minha ordem está nas ruas e deriva de um e outro a milhares.

Mas seremos, em breve, milhões.

segunda-feira, 10 de junho de 2013

O amor segundo P.h.

Vasculho, por entre as mensagens da minha caixa de e-mails, à procura de uma reposta dela para uma pergunta que eu nunca enderecei a ela. Nem bem cheguei a formular uma pergunta tal, mas um vazio intimidador dentro de mim, pede-me que espere pela resposta-alguma.

A solidão é um prazer que convém degustar às custas da inestesia. Enquanto procuro sentir, uma sensação qualquer que conforte a ideia de que o corpo é vivo e ininterrupto, que precisa sentir a todo momento, descubro que as sensações não se formam por dentro. A demanda é, por isso mesmo, o indicativo cabal de que algo me falta.

A mão estendida ao lado ressente-se da ausência da mão outra que sobre ela se largue e se prenda, como atendendo a um pedido jamais feito. Um corpo humano está arranjado de tal forma que não se ajusta na anatomia particular do indivíduo, sozinho, o encontro perfeito de uma mão com a outra senão quando quer expressar demasiado: bater palmas; oferecer reverência à divindade; estalar os dedos e insinuar algum tédio; não aquele encontro em que a mão com a outra se basta; que calaria o vazio; que vestiria a insegurança, toda insegurança; que aceitaria e escolheria com o menor movimento ou nenhum.

Mas a mão vazia, ao meu lado, se agita e com dedos inquietos procura por sobre o teclado palavras-consolo, palavras sujas de imagens sujas, que os olhos observam.

A mão é uma criança confusa que, na ausência do gesto e conforto, procura por todo o corpo; esgueira-se por dentro das calças e sente entumescer o falo sob o seu toque; se põe ao redor e aperta; larga e acaricia; esfrega; aperta.

A sensação é uma resposta simples a um estímulo dado. Não é como a resposta-aquela, a de uma pergunta não feita. E enquanto o vazio de dentro de mim geme em sincronia com o gesto e o pudor da mão que labuta sobre o pênis enrijecido, por sensações que se bastem; por um gemido a mais; por um fremir do prepúcio e em torno da glande; por um irradiar delicado a partir da pélvis e até o abdomen, a outra mão, sozinha, testemunha com apatia.

A mão direita, então, acelera. As sensações menores se integram e pedem ao corpo todo que sinta. Eu sinto, pois sou o corpo e quero gozar - Conheço o procedimento, não tenho que fingir pra mim mesmo.

Mas antes que uma ejaculação mal calculada suje a mobília, me viro para o lado e direciono meu pau à parede.

Um primeiro jato atinge com violência um mosquito que se punha parado sobre a tinta branca, e um segundo e terceiro o recobrem por inteiro, deixando-o grudado à parede.

Irônico que ao invés de fazer conceber uma vida, eu tenha dado cabo de uma outra, ainda que insignificante seja. Aproximo meu rosto daquele mosquito para olhá-lo de perto e vejo-o, sozinho.
Começo a rir eu mesmo, também sozinho: Quais eram as probabilidades?!

Pouco importa – solidão é circunstância e não poesia.

Não tem a menor graça.




domingo, 9 de junho de 2013

Sobre atrizes e atores ou Mente melhor quem fica calado.


Uma mulher e dois homens conversam na calçada de uma esquina, em frente a um bar, numa quarta-feira sem muito movimento naquele estabelecimento, sob a iluminação amarela e precária de um poste de luz, por volta das 2:30 da madrugada.

A mulher, um tanto elegante sob uma jaqueta de couro preto vestida por cima de uma camiseta de botões de um tecido fino, com o cachecol enrolado com pompa ao pescoço, gesticulava enquanto dizia aos seus dois interlocutores:

- Mamãe tinha aquele apartamento enorme no Jardim Botânico. Lembra, G.? – lançou olhar a um dos homens que estavam consigo e continuou – Eu dava aquelas festas incríveis quando ela viajava. Saudades daquele apartamento...

G., que aparentava ser apenas um pouco mais velho que a mulher, em cuja elegância e expressões faciais se poderia apoiar a sugetão de que tinha cerca de 40 anos de idade, confirmou com ela as lembranças do antigo apartamento ao se dirigir ao terceiro com alguma intimidade e legítima satisfação:

- O apartamento da mãe dela era um sonho. Quatro quartos, uma sala gigantesca e dois banheiros lindos. – bebeu um gole da taça de vinho que tinha na mão – Transei e cheirei muito naqueles banheiros – completou.

Ela, antes que ele recuperasse o fôlego depois da última fala, iniciou nova narrativa:

- Lembra daquela vez que alguém quebrou uma pia, fudendo ou sei lá o quê? E no dia seguinte mamãe chegou, entrou no banheiro e saiu sem dizer nada, com sangue nos olhos...

- Acho que foram Marcos e Ney – interrompeu G. com sincronia a fala dela, que prosseguiu – Foram eles mesmo? Não sei. Sei que mamãe chegou, entrou no banheiro pra tomar banho, saiu de cara fechada e não falou nada comigo durante umas 2 horas.

O terceiro perguntou com honesto interesse: - Que desculpa você deu a ela?

- Desculpa?! Minha mãe nunca foi burra, e se tem uma coisa que deixava ela fora de si era mentira mal contada. Por isso, quando uma coisa dessas acontecia, eu evitava mentir. Só fazia se tivesse um álibi muito razoável. – Logo assim que a fala da mulher terminou, num ritmo que poderia fazer aquilo parecer uma cena de filme, um taxi parou do outro lado da rua e buzinou seco duas vezes. Os três olharam para o carro e depois entre si, não reconhecendo, contudo, a razão daquele sinal.

O motorista do táxi abriu a porta do carro e se levantou esbaforido e entusiasmado, vindo em direção a mulher. Era um sujeito baixinho, careca, com bigode grisalho, aliás, da cor dos cabelos que ainda lhe restavam ao redor do cucuruto. Trajava calça jeans e um suéter listrado que lhe ia por dentro de um cinto marrom da cor dos sapatos. Parou-se em frente a mulher , esticando as mãos até seus ombros e segurando-os com firmeza, quando se pode ver um relógio prateado de ponteiro em seu punho. Exclamou, então: - V.?!

Ela, sem ainda reconhecer o cinquentão, mas se esforçando sem gratuidade alguma por fazê-lo, já que o senhor sabia seu nome e quando o disse alguma intimidade parece lher ter saltado com honesta simpatia através dos olhos, balançou a cabeça como se perguntasse sem jeito ao homem pelo seu nome.

- J.! J. Barcelos! Não lembra de mim?! – disse o senhor.

Alguma ideia na cabeça de V. parecia trabalhar em busca da memória perdida, mas antes que ela pudesse encontrar o homem se adiantou: - Estudamos juntos na CAO! Turma de 95, lembra?

- J.! – Devolveu ela o reconhecimento, aliviada. – Quanto tempo?! Nossa, deve fazer uns 10 anos que não te vejo.

- Quatorze e alguns meses - corrigiu ele, acrescentando, ainda, com um ar forçado de desleixo – mas quem tá contando, né? - e seguiu com a conversa – E você? Como tá? Ainda atuando?!

- Nada J. Parei de atuar há alguns anos. Faço, de vez em quando, uma ponta aqui e ali em trabalhos de amigos, mas só pela camaradagem. – Disse ela.

- Poxa, e tem feito o quê nesse tempo? – perguntou indiscritamente.

Ela: - Trabalho com produção.

- Teatro, cinema?! – seguindo com o inquérito.

- Teatro, eventos, festas... Todo tipo de produção. Mas e você, dirigindo táxi? – E nesse momento sentiu-se no ar um jogo de forças estranhas, onde as perguntas pareciam se estabelecer conforme disputa em que se deveriam , V. e o senhor, afirmar, numa projeção dos anos que se passaram desde seu último encontro, como bem sucedidos profissionais desde o ponto de vista crítico de cada um. Os dois homens ao lado de V., alheios ao diálogo que tomou lugar, limitavam-se a sorrir e balançar a cabeça conforme se exigia deles alguma presença de espírito.

- Continuo atuando. Tô fazendo um curta agora. Esse visual aqui é pro filme – e passou a mão sobre a cabeça e no rosto, sob o nariz, indicando a cabeça calva e o bigode. – Um curta do M. Karini, conhece ele? – e deu apenas meio segundo (o tempo para recuperar o ar perdido durante a fala ininterrupta) interrompendo uma negação iminente da parte dela, continuando a fala – O táxi é só um bico, mas é um laboratório incrível. Você conhece todo o tipo de gente, gente real, verdadeira. Eu acho que interpretação é isso. Você tem que beber nas ruas. Naturalismo é interpretar como vivem as pessoas comuns, a prostituta, o cafetão, o playboy, o advogado... – Nesse momento, G. e o terceiro se entreolharam. G. deu mais um gole em seu vinho e voltaram os dois novamente as vistas ao senhor, sem que nenhum julgamento mais estreito tomasse forma aparente. O homem continuou em seu monólogo, enquanto V. lhe endereçava um sorriso artificial e honesto ao mesmo tempo, pois não queria de fato sorrir, mas não tendo antipatia alguma por aquele senhor, pedia-se ali que sorrisse como sinal de acolhimento: - Outro dia, imagine você, eu tava passando ali por Ipanema, em frente aquele restaurante italiano. Sabe aquele?! Do mesmo dono daquele hotel no Leblon?! Enfim, advinha quem fez sinal pro meu táxi? Tony Ramos! Ele entrou, falou que tava indo pra Barra da Tijuca e eu ali, taxista, sem sair um momento do personagem. Falei pra ele “conheço o senhor de algum lugar, o senhor não trabalha na televisão?”, ele bufou e me respondeu meio impaciente “trabalho sim, sou ator”. Você acredita nisso? Realismo puro. Fui puxando conversa a viagem toda, assuntos banais, ele meio irritado durante todo o trajeto. Em nenhum momento imaginou que eu também fosse ator. Curioso né? Essas coincidências da vida...

G., a essa altura já dirigia atenção para um grupo de garotões que havia parado ao lado deles há alguns minutos, enquanto o terceiro pensava consigo: “Qual a coincidência? O Tony Ramos pegou um táxi. E aí?”. V. começava a sentir-se desconfortável com a narração e a performance do antigo colega ao ponto que o sorriso já não mais se sustentava, deixando no lugar apenas uma boca um tanto distorcida, porque ela também já não tivesse a medida do gesto que articulavam os lábios.

O senhor, sentindo o enfado que se armava, onde já não houvesse outro interlocutor interessado que não ele mesmo, olhou ao relógio e disse: - Bom, tenho que ir. Fechar o ponto do dia. Pago 120 reais na diária desse carro, acredita?

V., solidária a inconformidade de J., exclamou: - Nossa! – e em seguida pediu ao colega um cartão, fazendo referência ao fato de que volta e meia precisava de táxi. Ele abriu a carteira de couro marrom, em combinação com o cinto e o sapato, tirando dali um cartão que entregou a ela. Abraçou-a e se despediu com essas palavras: - Muito bom te ver. Temos que marcar alguma coisa algum dia. – Ela confirmou a convenção com polimento: - Vamos marcar sim!

O homem entrou no táxi, acenou com uma buzinada sutil e seguiu seu caminho.


V. retomou a atenção aos dois colegas e perguntou: - Sobre o que falávamos?! – Os dois pensaram um pouco e, em sincronia, fizeram menção a história do antigo apartamento da mãe de V. no Jardim Botânico, mas como o assunto já estivesse esgotado, virou-se para o terceiro e disse: - E você B.? Fala alguma coisa você. Você tá aí caladão, não falou quase nada a noite inteira.

quinta-feira, 6 de junho de 2013

Esse não é um texto sobre a questão do aborto



A questão sobre a legalização ou criminalização do aborto esconde uma disputa ideológica mais essencial que a questão em si. Mas tal disputa parece ter ficado de lado quando os reclamantes de ambos os lados levantam suas vozes sobre as particularidades dessa uma disputa ideológica, largando-se fanaticamente sobre a questão, encetando o direito a vida – considerada a partir da formação original do embrião ou da fecundação primeira – ou o direito do indivíduo – a mulher, no caso – de determinar o curso da sua vida particular (sexual, afetiva e, mesmo, fisiológica), e ignorando quase por completo que uma discussão mais ampla deve tomar lugar na esfera social.

Quando a mulher, entendida como pertencente a um grupo minoritário (no sentido dos direitos reivindicados a uma questão de gênero) evoca o direito sobre o seu corpo (ainda que seja um direito legítimo) ela permite que a discussão percorra um trajeto superfícial que não revela o caráter social mais amplo e necessário da questão. Quero dizer com isso que a criminalização do aborto projeta – nas bases ideológicas mais essenciais dessa disputa – a redefinição e perda de um direito que não é apenas da mulher, mas do indivíduo enquanto membro de uma sociedade acolhida por um estado.

A definição de que o embrião é já uma alma (e que assim pressupõe a existência da alma nos termos dos quais a filiação religiosa é pretendente) quer projetar sobre o estado a incumbência da proteção desse, limitando, assim, os direitos da mulher sobre o seu corpo e, em última instância, sobre a sua sexualidade. Tal assumpção sugere que o Estado ceda a uma posição ideológica que tem em vista as premissas de instituições religiosas particulares, transformando essa premissa – a primeira vista religiosa – em uma determinação política. Ou seja, conforme todos os cidadãos adquirem direitos que estão previstos nas cartilhas de determinada religião, ao mesmo tempo, eles se encarceram sob os deveres descritos também nestas cartilhas.

O direito do embrião de se desenvolver em um indivíduo ativo, no entanto, é uma pura abstração (como são, em todo caso, os direitos previstos e instituídos e a determinação social e jurídica desses direitos). A posição ideológica outrossim defendida sob a nomínia desse direito, por outro lado, aparece de forma mais concreta na atual situação política do país. Parece desnecessário dizer que tal posição ideológica tem como anteparo as religiões cristãs de uma forma geral, mas o que não aparece nessa bandeira é que a atual disputa (a disputa particular sobre legalização ou criminalização do aborto) se apresenta segundo a realidade em que um grupo particular de cristãos ganha terreno no cenário político e põe a frente essa (e outras disputas menores) que, apesar de visíveis e em pauta em tempos passados, não assumiam até então a dimensão política que ora temos em vista. Forçando, assim, uma investida pungente contra o Estado laico e angariando na oposição corrente um antagonismo que generaliza e se reveste da rivalidade contra a própria religião. O Estado laico, no entanto, não deve ser anti-religioso (um Estado ateu, por definição), mas um estado em que a religião não implica diretamente aos cidadãos como um todo uma determinação que deveria ser propriamente política.

Diante desse cenário, é impendente que as instituições religiosas segmentárias se manifestem em favor do próprio laicismo do Estado, sob o risco inconveniente de deixarem de existir: Um Estado religioso é, invariavelmente, um Estado que suporta apenas uma religão. A religião, em todo caso, é definida pelas suas instituições; e instituições distintas, como ocorre, fundamentam religiões distintas em cujos deuses e dógmas (ainda quando partilhem nomes e origens afins) se promovem direitos e deveres distintos. Ao mesmo tempo, parece-me importante que a disputa em razão da legalidade ou não do aborto deva sempre estar na visada desse contexto e não se transforme numa disputa alijada onde, talvez, uma maioria composta por grupos culturalmente influenciados pelo “repertório” cristão tomaria a posição religiosa em detrimento da posição política, sem perceber que, desse modo, eles mesmos estão sendo preteridos e submetidos na disputa política.

É preciso, assim, que os partidários da posição religiosa tenham nome, que suas instituições estejam visíveis e que a disputa que tem em destaque a questão do aborto seja vista como expondo de forma irreversível à vulnerabilidade o estado laico, impossibilitando a orientação a uma sociedade inclusiva a diversidade cultural, étnica e religiosa - e gênero.


Vivemos em uma sociedade sexista em que as revindicações sob bandeira de gênero são legítimas e devem ter lugar e evidência nas discussões políticas atuais e advindas. Mas essa guerra particular, parece-me muito maior e nenhuma bandeira deveria ser alçada que não a bandeira da justiça social, da participação política plural e inclusiva e dos deveres postos em vigilância em nome dos direitos diversos dos grupos, instituições e indivíduos. Do direito ao aborto legítimo e subvencionado pelo estado, do direito a educação e saúde, a livre circulação de ideias e informações, mas tambem o direito à prática religiosa. Sempre quando esses direitos se mostrarem contraditórios e conflitantes é preciso retornar as bases da disputa ideológica e se verificar se a razão da disputa é mesmo a noção imprecisa de justiça e humanidade (que deve abarcar indivíduos tão distintos) ou se é o caso da manipulação (intencional ou não) em favor de um grupo minoritário.