quarta-feira, 22 de fevereiro de 2012

Um breve Romance chamado Poema

Sua mão corria pelo papel, enquanto a cabeça vagueava por algum estranho mundo (A bem da verdade, não havia ali papel, Mas era o mesmo mundo possível entre um movimento primitivo de lápis e o percutir barulhento do teclado de que dispunha).

Essa alma que sibila noturna
é a mesma que de dia se cala
pois no afã a poesia é inoportuna
tanto quanto no silêncio gala

"Doce sonoridade essa que me toca. Doce é a semântica confusa dessa arte de arautos, dessa prosa em métrica. Doce a poesia me descreve e descreve-me os sentimentos como nem o mais naturalista. Doce é o doce dessa tese." - Pensava ele. Pensava alto, pois gostava de ouvir seus próprios pensamentos retornados sonoramente das paredes que o cercava. E continuava a escrever, aos poucos, pois lançava cada verso como impusesse ao mundo um grande fardo e, ao mesmo tempo, o salvasse a cada rima.

Conto as palavras que conto
numerosas como no altar as velas
Não apenas as do feito, as do pronto
conto-as todas, cada uma delas

E ele realmente as contava. Não que tivesse algum apego particular a uma métrica severamente inútil, mas porque se permitia "criar" o próprio processo. Considerava os versos e as sílabas cortadas como considerasse os filhos mortos em guerra. E os pensamentos que passavam ao largo eram como abortos, chorados a cada partida, pois não os podia salvar. Não a todos.

E se essa arte pulcra engana a vista
é pelo que declara e não pelo que descreve
pois antes que o leitor cansado possa e desista
ela, a que evita e comede, é - enfim - quem mais se atreve

Segurou os olhos com minúcia exagerada naquela ultima sentença - a que acabara de escrever. Havia-a lido em voz alta e não parecia tão extensa quanto fazia saltar naquela tela que enfrentava agora, diante de si, repleta das palavras. Contou-as, novamente, as do último verso e constatou enfastiado aquele excesso. "Muitas palavras! Isso não deve estar certo. Exacto. Perfeito. Não deve estar! Recto. Conciso. Preciso. Não está, certamente não está!" Repetia-se ele, pois não tinha para com a autocrítica em pensamento a mesma temperança dos versos que esculpia no branco da folha. Refez-se do influxo genioso de artista que era e voltou a tempo da sintaxe decisiva.

...antes que o leitor cansado possa e desista...

E, novamente, vinha-lhe a cabeça aquela tese desmedida que antes se formara no enredo. "'ela, a que evita e comede, é - enfim...' Enfim?! Não deve existir palavra mais sem propósito que essa! Ora, 'a que evita e comede'...mas que graça!" Ria-se de uma ironia que ali se fazia em relevo, não obstante o riso fosse, em verdade, o lamento amargurado daquele que incompreendia a própria obra. Percebeu que o termo "enfim" e a passagem "a que evita e comede" não poderiam coexistir naquela peça sob a mácula de tornar-se o próprio poema insuportável para ele mesmo (e quem há de negar que os poetas escrevem para si e não para o mundo? Que são vítimas do claustro da própria personalidade e não o quinhão envaidecido de uma academia de letras?).

Reescreveu mais uma vez, e outra, e mais uma. E entre os cortes e as voltas, entre substituições e enxertos percebeu que não poderia arrancar dali o "enfim" sem que isso lhe custasse todo o amor que trazia pelo texto, pois era do "enfim" que sentiria mais falta, se lho ordenasse sumir. Também a passagem que o contradizia não poderia afastar-se, já que era - com o acento caprichoso de uma pausa (entre vírgulas) - o predicado enunciado de toda a questão, de todo o poema.

Pois, dessa razão destilou um novo sentido e, sem mudar a extensão precisa de seu trajeto, que era espaço antes de ser edifício, que era lacuna antes de ser coluna, retraçou - palavra a palavra - o mais belo e coeso trabalho que já havia escrito e que, assim, terminara:

...antes que o leitor cansado possa e desista
ela, a que evita e excede, é - enfim - quem mais se atreve

quarta-feira, 15 de fevereiro de 2012

A fístula

Havia um fantasma rondando sua cabeça. Dizia-lhe o que escrever, como escrever e escrevia, ele mesmo o fantasma, assumindo os dedos e os punhos do senhor ao seu alcance. Assim, costumava descrever ele suas crises de ansiedade que eram frequentemente seguidas de alguma repetição sem sentido apenas porque um homem assim possuído demanda ocupação menos ofensiva que seus próprios pensamentos.

A mínima sugestão de que alguma verdade exalava de suas palavras dava-lhe conforto maior ao abdômen, enquanto as pernas convulsas se rebatiam numa velocidade cada vez menor, conforme a calma se restabelecia findo mais um parágrafo a espera do próximo espasmo, que resultaria em outra descrição aparentemente inútil de sua condição doentia.

Era, no entanto, um fremir intermitente na boca do estômago que lhe parecia roubar de si seu comando. Aquela sensação indeterminada, cuja manifestação eminentemente física o faria contestar qualquer diagnóstico que lhe desse como origem um pensamento, o fazia perder o direito sobre aquelas palavras as quais ele tentava, inutilmente, dar o sentido de uma história. Imaginava, sempre frustrado por um condicionamento particular de sua doença, dar início a uma narrativa concisa onde todo aquele vigor nascido das contrações musculares e de distúrbios nervosos tomariam lugar em uma história cheia de vida e pulsante.

Pulsavam, em todo caso, apenas os dedos diante das teclas.

A frágil existência de um corpo, esse que se deixava evidente nas indeterminações de sua vontade, não era suficiente para que aqueles pensamentos que lhe assaltavam em imagens e vozes tivessem forma de discurso ou expressassem mais do que os devaneios de uma ansiedade transbordante e sem centro. Podia apenas impressionar-se com uma capacidade absolutamente inconsciente de utilizar a linguagem de forma minimamente inteligível, mas logo depois a impressão lhe fugia e precisava ele se perguntar se fazia aquilo algum sentido. Especulava a atenção de um leitor tão doente quanto ele mesmo, que reconheceria naqueles termos sua própria doença e, então, sentia-se inundado por uma vaidade lasciva que o dilacerava as entranhas por meio de um julgamento impróprio: Deveria mesmo um homem naquele estado ocupar-se com os pensamentos de um possível leitor?

Após mais um parágrafo, olhava ao relógio e percebia que o tempo não lhe estava a favor. O sono, a calma, ou qualquer condição que o pudesse ausentar daquele movimento quase ininterrupto das vísceras, dos ossos e de tudo mais que tivesse lugar dentro do corpo, não estavam lá. A história prometida, onde um provável personagem se fizesse de motivações cabíveis em uma ação que justificasse qualquer atenção de um leitor qualquer, muito menos.

As vezes tinha a impressão de que as palavras que fugiam aos dedos irriquietos das mãos poderiam também vir dos dedos dos pés, que se mexiam na mesma proporção e velocidade. E nesse momento percebia que a doença se manifestava em palavras, repercutiam aqueles espasmos como uma reação cutânea que tem lugar num tecido infectado. As palavras eram o próprio pus que o corpo expelia conforme a ansiedade se debatia com aqueles membros sem dono, órfãos de um comando mais digno ou um comando qualquer.

Razão é placebo; homeopatia leviana que se esvai na mesma proporção que o adocicado que a acompanha no paladar.

O coitado seguiria perdendo o controle das suas ações mesmo quando os dedos largassem a faina obcecada dos períodos e tempos verbais, e a ansiedade se refletiria em alguma outra atividade de objetivo oculto. Faria a barba dezenas de vezes, até que pequenos cortes evidenciassem o absurdo e a destemperança que o levariam em seguida até o chuveiro, e depois mais dezoito vezes quando findaria também o terceiro e último sabonete a disposição; devoraria tudo quanto fosse comestível na despensa; cortando as unhas dos pés e das mãos se sentiria pequeno porquanto apenas vinte dedos se fizessem a disposição: eles pareciam tão mais numerosos diante das teclas – pensava ele; contaria todos os azulejos da cozinha, do banheiro e depois da área de serviço e, inutilmente, se faria perder nesses números que esqueceria logo em seguida conforme esquecia também... Pois quando o esperado sono finalmente o alcançasse ele já estaria tão longe daqui que nenhuma palavra se poderia fazer ecoar - senão o silêncio.