domingo, 29 de março de 2015

A saliva de Hidra



“Um crime sem vítimas”. Foi assim que ele se referiu ao trajeto de sua conduta, desde os pensamentos primitivos que o houveram impulsionado até a última linha do texto, onde se descrevia a ação.

O interrogatório prosseguiu: um inquisitor fazia perguntas e ponderava criticamente as respostas que vinham em seguida: o interrogado, homem, branco, heterossexual, bem vestido... havia sido chamado a depor após ter sido denunciado por agressão. O contexto que praticava era o de uma publicação recente, em que o autor relatava açoitar uma prostituta, descrevendo, palavra por palavra, uma situação de constrangimento, humilhação e covardia.

Defendia-se, contudo, dando como argumento o escudo da ficção: - Nada ali é real. É apenas um texto fictício. A figura da vítima não pode oferecer denuncia simplesmente porque ela não existe!

Do outro lado, uma voz feminina , calma e equilibrada, perguntava: - Por que, então, o senhor sustenta toda a narrativa em primeira pessoa? - para ele, no entanto, também aí não se configurava culpa por crime algum, dizia: - A primeira pessoa não define, em si mesma, a concretude da ação que relata. Aliás, nada a define senão a realidade em si. Eu mesmo, que escrevo, não sou aquele a quem minhas palavras endereçam identidade. Sou apenas o homem que empunha manualmente a linguagem, materialmente constituída.

Mas a voz tratava de colocá-lo novamente na posição que ali lhe cabia: - Você não pode determinar a legitimidade ou não da sua condenação, simplesmente porque não pode impor aqui suas regras. Neste espaço, você é apenas o réu. Projetar sua defesa como um ataque aos meios e razões de quem o julga é incorrer num erro ainda maior que aquele pelo qual você está sendo julgado. Portanto, por favor, limite-se a responder minhas perguntas

No texto, a mulher não tinha nome. As poucas palavras que diziam dela, vinham através de um narrador implacável, judicioso, autoritário e irônico. A ironia, afinal, era o instrumento mesmo através do qual se fazia diminuir aquela personagem à comparações grosseiras das mais baixas; dizia dela objeto de consumo; emprestava-lhe formas, cores, um preço determinado e um gosto particular, em cujos adjetivos se atestava, não as qualidades de um indivíduo, mas o julgamento de um deus, dono das verdades que produziam e eram produzidas pelas suas próprias palavras.

Não sou eu dono das imagens que me assaltam em íntimo? Não me pertence, por isso mesmo, o inescrutável das minhas ideias? - Perguntava ao seu algoz em defesa de si, mas também porque a pergunta traz consigo um tom de autoridade que resposta alguma pode saldar. Conhecendo, no entanto, o perímetro desenhado daquele movimento, abdicou de responder e, novamente, após um curto e contido silêncio, perguntou: - O que o senhor sentiu ao terminar, ao escrever a última letra? Quem o senhor pretendia atingir com tal publicação? - Antes que o acusado pudesse responder, a voz levantou-se (porque era ao mesmo tempo também um corpo) e caminhou ao redor dele cadenciando os passos, intimidatoriamente. Também, por isso, a resposta não veio em seguida porque estava tomado por medo o homem, sentado de frente a uma pequena mesa de metal escovado, que poderia haver saído de uma câmara de tortura ou de uma clínica veterinária. Ele podia, então, imaginar-se sobre ela como um pequeno animal doméstico prestes a ser abatido por piedade ou conveniência e isso fazia-o esquecer a pergunta que lhe houvera sido feita, justificando o gesto que seu inquisitor teve em seguida, o de arrastar sua cadeira, pressionando-o contra a pequena mesa e exigindo resposta.

- Eu me senti... me senti satisfeito. Não, não... me senti indiferente, como se tivesse apenas cumprido uma tarefa ordinária. Não tinha em mente um leitor específico, ou melhor, fazia-me eu mesmo de algo como um leitor modelo. Como, aliás, acredito que façam todos os que escrevem. - concluiu sentindo-se triunfante em sua sua retórica, após um inicio visivelmente sofrível.

- Você não espera que eu acredite nisso, espera? - Disse ela, sem esperar resposta alguma. Ele, então, se tentou impor mais uma vez, questionando o objetivo daquela pergunta sem outro propósito senão o de intimidá-lo: - Por que você faz isso? O que eu fiz pra você? - E se escondia assim atrás de um véu de vitimização, como fazem todos aqueles em situação análoga. Cumpre, pois, que o réu em um processo de condenação é, também ele em certo sentido, uma vítima. Se pudéssemos separar todos os eventos e ações em segmentos e isolá-los de modo que não houvesse participação alguma de um no outro, o acusado seria, em vista da punição a ele imposta, nada mais que uma vítima.

Mas a justiça é um ideia que requer dimensão ampliada e, portanto, não pode ser apreendida senão através de uma imagem maior. Desse modo, dos seus apelos pela compassividade de seu “carrasco”, a voz, e o corpo que agora se podia enxergar ao redor dela, ouvia apenas o covarde indigno, incapaz de se responsabilizar pelas palavras que lançava, simplesmente porque estas ficavam para trás no tempo toda vez quando ditas ou lidas. E a figura de vítima que tinha ele de si, então, se deformava e assumia o aspecto do covarde manipulador, uma vez que podia supor e imaginar, da voz, os juízos e as sentenças não pronunciadas – o contexto é um código poderoso a partir do qual podem ler, diversos interpretantes, uma mesma mensagem.

A voz se pôs em silêncio e o corpo voltou a caminhar, dessa vez atrás dele, de um lado ao outro. O barulho do salto, cadenciado e intermitente, explodia nos ouvidos do acusado como golpes violentos desferidos pelas costas com instrumento pontiagudo. Ele fechou os olhos e tapou os ouvidos. Mergulhou fundo na imaginação dentro de si, aquela mesma imaginação na qual havia ele (ou qualquer personalidade que sua voz em primeira pessoa houvesse vestido) uma mulher humilhado. Agora, apenas uma sala escura, vazia, repleta de pensamentos vagos, culpa, ecos de uma narrativa na qual ele não era, como antes, uma autoridade irrepreensível, mas um monstro tirano.

Abriu os olhos e olhou ao redor a sala vazia. Nenhum corpo, nenhuma voz. Na mesa a frente, agora peça de um mobiliário de escritório qualquer em madeira, uma carta. Lançou os olhos ao texto, mas ele não precisou ler, porque já o conhecia.

Assinou o documento como confissão inequívoca dos crimes ali assinalados, levantou-se e partiu sem precisar por os olhos sobre a sentença que concluía o texto (saberia invocá-la se lhe fosse assim requerido) e dizia:

O autor será sempre o herói das façanhas descritas, ainda quando a façanha descrita seja um crime hediondo - e um crime hediondo será um crime hediondo ainda que ficção seja, porque a realidade das palavras anunciadas procede por tautologia, simplesmente.