terça-feira, 20 de abril de 2010

Fênix Hotel

Entraram pela porta que, desde a rua, conduzia esses amantes despatriados até o salão principal do hotel. Ele, cabelos grisalhos, pele castigada e abdômen saliente. As marcas ao redor dos olhos sugeriam-lhe a idade de cinqüenta e poucos anos. Vestia-se respeitosamente, desde que os botões daquela camisa de tecido nobre mantivessem-se fechados até a gola. Ela, cabelos cacheados - deliciosamente soltos e leves -, pele branca e de textura suave como a do açúcar que cobre o bolo das noivas. Tinha olhos negros profundos que lhe davam tonalidade misteriosa, embora, ainda assim, não fosse provável julgar, desde uma primeira vista, que já houvesse ela alcançado a maioridade.

Andaram até o balcão, que se dispunha ao centro do salão, e dirigiu o homem a palavra à recepcionista: “Queremos um quarto.” Subiu os olhos até o dono da voz que interrompera seus pensamentos ociosos naquela madrugada de pouco movimento no centro do Rio de Janeiro (e especialmente naquele estabelecimento), e vasculhou com um vagar escrupuloso de olhar - que ia das sombrancelhas cinzas e grossas do respeitável senhor até a sapatilha vermelha da pequena que, timidamente, se recolhia ao seu lado - aquele casal inoportuno que buscava abrigo para uma noite de 4 horas (talvez menos). Não satisfeita com a visão que teve, a mulher ao balcão voltou os olhos abaixo e se reteve por um breve minuto seu (e quem há de negar que mesmo a cronologia mais diligente tem duração distinta para cada indíviduo), adiando a resposta que esperava o casal. A mulher, que se protegia atrás de um uniforme asseado e justo composto por tailleur e blusa de seda, tinha olhos redondos e grandes, boca larga e lábios grossos, e um nariz abatatado que combinava com as bochechas gordas. Gordas como, aliás, eram os braços, o rosto, o pescoço e o busto, ou seja, todas as partes que se punham à vista. A frase que proferiu logo em seguida, no entanto, não era a resposta que esperava o homem, mas uma pergunta que causou constrangimento irrevogável para os dois que estavam de pé: “A menina possui documento de identidade?”

A preocupação era clara. O homem era velho demais para a menina que, provavelmente menor de idade, havia sido arrastada para lá por aquele velho sem coração: perverso, calculista e imoral – sobretudo imoral. Mas o julgamento da moça atrás do balcão logo se viu ameaçado, por conta do movimento que fez a menina. Puxou da bolsa uma carteira da qual tirou um documento verde e com graças de autêntico. A recepcionista alisou o rabo de cavalo com a mão direita - movimento pelo qual se pôde inferir a aspereza do cabelo esticado pela escova - e com a mesma mão tomou o documento da menina e se parou nele com cuidado. Leu o campo que indicava a data de nascimento. Uma, duas, três vezes. A menina havia completado os dezoito anos há coisa de duas semanas atrás. O que não pareceu suficiente para a apreciação discriminativa e “moralmente sólida” da senhora que guardava as chaves e liberava os quartos. Devolveu a identidade à menina e se dirigiu ao homem, pedindo-lhe também o documento. O homem se surpreendeu: “Isso é mesmo necessário?” Do que teve em resposta: “Senhor, é o procedimento padrão. Eu não posso lhe entregar a chave do quarto sem isso.” O homem puxou do bolso, contrariado, a carteira, de onde tirou o documento e entregou à mulher.

A senhora leu com o mesmo atilamento de antes, contou alguma coisa nos dedos da mão direita e devolveu o documento ao senhor com uma posição resoluta e irrevogável: “Senhor, eu não posso liberar um quarto.” O homem avivou o sentimento de espanto que o assaltara há poucos segundos e retrucou já com certa indignação na voz: “Como assim você não pode liberar um quarto? Qual é o problema?” E a mulher: “Senhor, o senhor tem quarenta e sete anos e a menina apenas dezoito. Não posso entregar a chave a vocês. Não seria uma coisa legal da minha parte.” A menina permanecia calada e imóvel, encostada sutilmente ao corpo dele que teve em resposta: “A senhora não sabe o que está falando. A menina tem dezoito anos. É perfeitamente legal que aluguemos um quarto para o fim que seja. Sinceramente, não entendo essa sua cerimônia.”

A essa altura a situação era insuportavelmente constrangedora para a menina, que além da repressão corrente que já sofria “lá fora”, por se haver envolvida com um homem mais velho, sentia-se agora impotente sob os auspícios e o julgamento de uma senhora que nunca antes houvera visto. A mulher detrás do balcão, então, solicitou que os dois se retirassem dali, porque ela não lhes poderia alugar quarto nenhum. Ele, que poderia simplesmente ter tomado o rumo de um outro hotel, não o fez porque não aceitasse estar a mercê do julgamento individual e arbitrário de uma mera recepcionista de hotel. E foi enfático ao dizer à senhora que ficaria ali até que lhe entregasse a chave. A senhora, então, endureceu a voz com que falava ao recalcitrante e disse: “Se o senhor e a menina não se retirarem, vou ser obrigada a chamar a polícia” O homem se riu - ironicamente, e com alguma artificialidade, mas falso que fosse ainda assim era um riso: “Pois a senhora chame a polícia agora, porque isso é um grande absurdo. Com que direito a senhora se põe a julgar sermos dignos ou não de alugar um quarto aqui? Quem você pensa que é?” Foi a primeira vez que ele a teve tratado por você e essa informalidade talvez tenha ofendido mais a mulher que o nervosismo e a agressividade que ele impunha aos termos. Nesse instante ela se levantou, tomou um gole de ar profundo ao peito e discursou com gravidade: “O senhor pode tentar tomar a chave a força ou sair direto pela porta por onde entrou. O caso é que de boa vontade não vai conseguir quarto nenhum. Toda vez que vejo um homem sem escrúpulos como o senhor eu sinto não poder fazer nada para ajudar pobres meninas com essa. Provável que o senhor saia daqui e arrume um quarto em outro lugar em que os funcionários não sejam tão corretos e guiados por virtude moral como a minha, mas quanto a isso, eu nada posso fazer. Mas do que depender de mim, o senhor não vai estragar a vida dessa coitada inocente que veio debaixo das suas asas.”

A coisa, agora, alcançava um ponto sem volta. Não seria possível dizer que a mulher, cheia de vigor de espírito e senso de auto-conduta moral, não estava lá na sua razão. Tinha uma razão bem sua - isso é certo. Mas tão prontamente a desobedecesse, aí sim sua atitude poderia ser tomada por imoral, posto que a moral que tinha não a pudesse ignorar. O homem, cujos quarenta e tantos anos não foram suficientes para blindá-lo dos conseqüentes transtornos causados pela irresolubilidade da situação, não menos errado se poderia julgá-lo. Nada que fizesse ali estaria fora da ordem da legalidade, já que sua companheira chegara àquele local por vontade própria e espontânea, mas isso, e ainda que houvesse sido a menina coagida de alguma forma, quem saberá ao certo? Tanto faz como tanto fez se a sociedade em questão julga seus membros aptos às escolhas tais como fazer sexo ou eleger um presidente a partir dos dados dezoito anos, assim como se declarava nos documentos daquela.

E justo quando a hostilidade insurgente se fazia epigráfica diante das circunstâncias, foi quando a menina puxou pelo braço seu parceiro e disse as suas duas primeiras palavras desde que adentrou ao recinto: “Vamos embora!” E não como nota em defesa do homem, que transgredia talvez algum preceito moral daquela sociedade antiquada, mas é de se questionar se aquela atitude sensata que a sobejou, qual seja a de anunciar retirada diante de disputa tal em que se não pode haver vencedores, não justificava que uma pessoa (assim munida de razão e bom senso) não fosse suficientemente capaz de bem escolher o local, a hora e com quem fazer sexo – ainda que seus escolhidos tivessem já os cabelos desbotados pela ação dos anos...

Mas difícil mesmo é imaginar como seria o evento sexual em questão depois de uma preliminar tão desgastante como aquela.