quinta-feira, 25 de fevereiro de 2010

A existência limita

- Me fala mais sobre você.

- O que você quer saber?

- Tudo... quer dizer, qualquer coisa.

- Sou atriz.

- Sério?

- Não, tive vontade de dizer isso agora.
Na verdade sou um pote de biscoitos.

- Sim, que você é um pote de biscoitos eu sei.
Posso ver. Mas quero saber mais; o que te desafia?
o que você tem dentro?

- Teria biscoitos se você não os tivesse comido.

- Eu não falo disso. Quero saber o que você tem dentro do
dentro; a sua essência. (Adomais, aqueles biscoitos
estavam velhos).

- Desculpa, mas como pote de biscoitos eu costumo rejeitar
questões existenciais. Mas você pode dizer que além
de guardar biscoitos sou uma obra de arte.

- Uma obra de arte? E porque você acha que eu poderia dizer
uma coisa dessas?

- Eu sou uma obra, e isso é fato. A parte da arte, você pode julgar, pois, sou vísivel; tenho apelo estético. Embora todo esse engajamento para com o belo esteja voltado para o banal de guardar biscoitos, há que se querer minha presença. Senão os biscoitos poderiam perfeitamente permanecer em seus pacotes, como produtos consumíveis que são. (E se estavam velhos você não os devia ter comido. E, além de tudo, "do cavalo dado não se olha os dentes")

- Essa é a sua motivação? “Há que se querer sua presença”? “Ser” pelo simples desígnio de “ser visto” te basta?

- Não, se existe motivação aí deve ser invenção sua. A minha deve se apenas guardar biscoitos. Melhor que isso, eu não tenho motivação, sou um objeto desmotivado, que guarda biscoitos por ofício e não por motivo.

- E isso te incomoda? vc queria ser outro, outra coisa? Atriz?

- Eu não queria nada, não tenho nem motivos pra querer. Talvez, se eu atriz fosse, minha maior motivação fosse interpretar um pote de biscoitos; captar, em um único momento vivo, toda a morbida desmotivção de ser um pote; ou não ser nada. Sendo atriz ou pote de biscoitos, não há porque querer ser outro. E se a atriz interpreta o pote ela só o pode fazer sendo atriz. Já eu, como pote que sou, não interpreto, me foge essa capacidade. Tampouco desejo ser outra coisa; talvez seja essa uma característica inerente aos potes (e falo apenas pelos de biscoitos, já que só posso falar pelo que sei), somos independentemente de desejos, vontades e afins. Mas e você?

- O que tem eu?

- Qual o seu “dentro”, sua “essência”?

- Eu costumo dizer que sou um dragão.
(Apesar do seu tom irônico)

- Metaforicamente?
(A ironia fica por sua conta. Como pote de biscoitos que sou, a ironia também me foge, como a paciência parece também muitas vezes querer fazer)

- Não. Sou um dragão de verdade. Cuspo fogo pelas narinas e aterrorizo vilarejos em filmes e fantasias. Não sou uma metáfora porque existo. Talvez eu seja um símbolo, ou uma alegoria, mas eu existo mesmo que como dragão de fantasias e isso ninguém pode tirar de mim.

- E se você não fosse um dragão... o que gostaria de ser?

- Uma palavra. Fico sempre encantado com a abstração que se sucede ao grafismo ou ao fonema. Todo esse jogo de significar, que antecede a você enquanto pote de biscoitos ou a mim enquanto dragão. Embora eu, como bom dragão que sou, sou dragão antes mesmo da palavra que me diz: “dragão”.

- Pois eu não sou pote de biscoito antes da palavra me dizer? "Pote de biscoitos"?

- Certamente que não. Antes da palavra você é vidro. Recipiente, no máximo. Isso se entedermos essa palavra na acepção moderna da tentativa científica de submeter à palavra sua função. Mas pote de biscoitos você só é depois que a palavra biscoitos é apresentada e o jogo semiótico te agrega o valor de comando, de uso.

- Pois te digo que sou pote de biscoitos antes disso. Na motivação originária de meu artesão ou meu projetador. Em sua busca inegavelmente pré-racional pela concepção da arte ou por anseio ao lucro. Que não tivesse ele escrito em meu corpo, que não tivesse colocado nem um sequer cream cracker dentro de mim, ainda assim eu seria um pote de biscoitos. E todos somos capazes de diferenciar um “balde” de uma “lata de lixo”, ainda que lhes faltem os nomes e que estejam ambos vazios; e um que coloque seus biscoitos em um deles, ao invés de coloca-los num como eu mesmo, fardará seus biscoitos ao total desperdício. E você, como “bom dragão” que é, deveria se conter aos graves e sonoros grunhidos de sua classe e a destruir seus indefesos vilarejos nas fantasias e filmes, e não se meter a filosofo, que esses já vão muito mal com as limitações todas dos seres humanos, que dirá fossem, como você, répteis agigantados e falastrões.

- E, afinal, que diferença essencial mesmo é essa entre o balde e a lata de lixo? Não poderia, de qualquer modo, o balde fazer as vezes do pote de biscoitos ou de lata de lixo? Que postulado absurdo advindo de um pote de biscoitos é mesmo esse que me impede de ser dragão e filosofo a um só tempo?

- É justo a mesma diferença (ou uma diferença de mesma natureza, em todo caso) que existe entre a atriz que interpreta o pote de biscoitos e o pote. A diferença entre o balde, a lata de lixo e o pote de biscoitos é inquestionável, ainda que um porco como você se ponha a comer biscoitos da lata de lixo. Que um dragão filosofe nas fantasias dos outros, isso é coisa que eu não vou questionar. Mas na minha própria (e, sim, se um dragão me dirige a palavra é apenas porque eu, humilde “pote de biscoitos”, rumino também as minhas próprias fantasias), a conversa termina quando eu bem quero e o dragão que se cale ou procure objeto mais obtuso que ele próprio pra problematizar sua existência.(Recomendaria-lhe a colher de pau, não fosse ela, além do apetrecho que é para as cozinhas pacíficas, uma arma de empunhadura dolorosa e certeira contra aqueles que falam demais). Pois antes de importunar outros que, como eu mesmo, estão no mundo apenas por um capricho de uma natureza humana, fique sabendo disso: A condição é uma condição. Não porque a palavra significa, mas porque a existência limita.

sexta-feira, 5 de fevereiro de 2010

Bebo, logo existo.

Sem inspiraçao ou um problema epistemológico perfeitamente a mao, resolvi por em prática o metodo das últimas noites: uma bebida e um tema.

Poucos percebem que a bebida, por si só, é já um tema. No entanto, não deveriam se perguntar, aqueles que o percebem, sobre a probabilidade de serem ou não alcoolatras? De qualquer modo, hoje a coisa nao me parece lá muito afiada. Vou de Domecq: Se o resultado nao valer um suspiro interessado de minha catatônica intelectualidade, ou ao menos umas risadas, pelo menos nao doeu no bolso.

A consciência se move um pouco antes da marretada que irá levar: Domecq puro? Um limaozinho daria pra quebrar um cadinho o tino de "alcoolatra inveterado".

Não tem limao.

Gelo?

Nem pensar. Pior que a sina do bêbado imundo é Domecq aguado.

E o tema chega logo depois, como natural consequência da vida que levo e que insiste em tomar forma nas minhas consideraçoes filosòficas. Minha casa fede. É o mesmo cheiro que associaria a minha vida se eu pudesse colocar nestes termos o problema da existência. Minha vida fede. O cheiro do Domecq é o melhor cheiro que me passou pelas narinas o dia todo.

A bem da verdade, o nariz me é táo inutil quanto um abridor de latas para um aborigene na selva. Nunca deixei de cumer uma sequer empada por julgar o cheiro desagradàvel. Tomo banho apenas pra arrancar do corpo os pedaços de comida que vão ficando presos em mim com o passar da semana. Me serve menos ainda que o pau, esse nariz torto e exibido que trago na cara. Se não o tivesse, respirava pela boca. Não faria a menor diferença.

(Como um experiente somelier e ao contradito das minhas palavras, dou uma boa inalada no copo. Segue-se o gole. E o Domecq está onde deveria. Desce mais uma dose! Grito pro barman... que sou eu mesmo)

Quem leva a sério um existencialista servido a Domecq? Pois digo isto: há tanta dignidade ali quanto em qualquer Uísque de 8 anos pra baixo.

(O vômito quase se antecipa a minha sobranceira conclusão, mas ficou parado no exôfago e voltou pro bucho)

Não é a bebida, tenho andado mal do estomago nessa ultima semana. A bebida, ao contrario, só ajuda. Foi o que disse o meu mèdico... que também sou eu mesmo e segura um copo atè a metade com Domecq em uma das mãos.

Viro mais uma dose. Depois da terceira o organismo assenta. E o vômito vai ter que esperar o sono. So vai aparecer quando eu já estiver dormindo. Dormir me concede alguma especie de licença existencial, quase como quando estou bêbado por completo. Não me envergonho de nada que não possa me lembrar. Menos ainda do que se teve apenas em sonho, onde posso estuprar uma freira, espancar um velho com dificuldades de locomoção e me cagar todo. Se quando eu acordo a merda aparece como que pra dizer que a cagada do sonho foi real, foda-se. Se a policia aparece na minha casa com uma freira aos prantos, aí sim eu começo a me preocupar.

Enquanto isso, o Domecq me serve de aviso. Vai a terceira dose e a cadeira jà começa a balançar. Me vem a cabeça um problema fenomenologico: é a cadeira que balança ou é a minha percepçao que impõe movimento á cadeira? A resposta vem com o tombo e a dor que depois vai ficar nos quadris: era a cadeira que balançava. Mas não foi uma só gota da bebida ao chao. O copo tava vazio. Existe lá alguma coordenaçao entre as idéias e esse corpo surrado que as contem. Pra confirmar o equilibrio, encho o copo e viro mais uma dose. Uma constataçao: o copo vai sempre direto à boca, nunca erra. O importante é nao prolongar o tempo que o Domecq fica no copo - logo depois de ter saido da garrafa e antes de entrar pela goela. Coordenaçao é ritmo.

Na quinta dose o primeiro sinal de fraqueza. Ao me perguntar sobre o problema da unidade do ser - como posso ser ao mesmo tempo minha cabeça e meu braço sem que meu braço e minha cabeça nao sejam individualmente? - um vacilo no manejo e a bebida escapa pelas bordas e molha o chão. É o sono chegando. Existência com as horas contadas. Pelo menos ate amanha de manha. O corpo reclama: quer deitar.

Vou dar uma cagada antes... pra não acontecer como na ultima noite.