quinta-feira, 17 de setembro de 2009

Razão e proporção: a singular matemática da desculpa

Entrei na van, que estava vazia, e me dirigi à ultima fileira - como fazia já no colégio e como ainda hoje faço nas situações mais diversas - sentando no assento à extrema direita (que difere dos outros por não ter banco algum à frente). Interrompendo a progressão das fileiras anteriores, vindo essas em seqüências de 3, a última fileira apresenta 4 assentos - isso porque não se pede ali o espaço deixado ao corredor que vem da entrada até a penúltima, já que, ao rigor das limitações do espaço em profundidade da van, interrompe-se o caminho ali num último renque de 4 bancos.

Mas permaneceu a van vazia por pouco tempo. No ponto seguinte preencheram-se quase todos os espaços restantes, persistindo, entre as exceções, um ou dois assentos à frente e os três lugares à minha esquerda. Não é que minhas feições desagradáveis espantassem os passageiros, preferindo estes, assim, evitar o inconveniente de ter-me como referência em um campo de visão periférica (o mais tangente que fosse), mas o fato d'eu estar sentado ao corredor devia fazê-los ponderar o ingrato exercício de olhar-me na cara e pedir-me licença, quando nos bancos que precediam tinha-se a livre passagem, já que se haviam ocupadas as janelas e, logo assim que entravam os novos passageiros, os que estavam ao corredor - educadamente - passavam ao banco à esquerda, deixando livre o assento mais acessível ao sujeito que acabasse de entrar. Mas se já eu evitava esse educado gesto, era porque me imaginava lutando contra os joelhos e as pernas que eu teria pela frente caso viesse a saltar antes que aqueles que chegaram depois. Enfim, pouco depois - na terceira ou quarta parada, talvez - uma linda morena entrara e sentara ao meu lado, deixando à sua esquerda os dois últimos assentos vagos. Imediatamente fez arder em meu ego o questionamento: Porque será que ela se manteve ao meu lado quando tinha, logo mais à esquerda, espaço para distanciar-se de mim com, ao menos, um assento de distância? Mas logo me dei conta de que, provavelmente, balizava-se ela pela mesma prática lógica que eu quando decidi ocupar o banco mais acessível ao corredor. E isso, aqui, pouco importa, porque esta história não se desenrolará em espécie de romance platônico entre a linda morena e o personagem que narra, visto que menos de 8 segundos se deram entre o instante em que ela sentou-se e o momento decisivo da chegada dos novos passageiros - esses sim dariam argumento ao enredo que aqui se apresenta. Assim, pois, ainda nesse mesmo ponto, uma corpulenta senhora subira na van e, vacilante, viu-se a morena obrigada a tomar o acento à extrema esquerda, prevendo impossível passar aquela mulher pelo vão entre o banco da frente e as suas delicadas pernas. A senhora entrou e eu me espremi na parede do carro abrindo espaço suficiente para sua passagem. Sentou-se ao lado da bela morena deixando um reduzido espaço entre as volumosas pernas recém chegadas e eu. Um espaço considerável e talvez até confortável se o passageiro que viesse a ocupá-lo tivesse proporções de um pigmeu ou fosse magro daqueles a que chamamos, pejorativamente, esqueléticos. O caso era que a mulher que vinha logo a seguir - e subira ela já sem quaisquer dúvidas de que o lugar ocupado seria aquele – possuía fartas ancas e um amplo quadril, o que me fez torcer o nariz (mas não torci de verdade) imaginando o desconforto que me faria companhia durante o resto da viagem. Fez um enorme esforço para passar, contando ainda com um esforço meu proporcional para abrir-lhe passagem, e sentou forçando as fronteiras estabelecidas entre o meu corpo e o corpo da senhora ao seu lado esquerdo.

Não era gorda - e nem a senhora, aliás. Eram desses tipos em que a idade toma para si a incumbência de reforçar o estoque de energia – esse muito necessário se vivêssemos em uma selva ou num pós-guerra em país derrotado, mas absolutamente inútil em uma sociedade industrial e bem capitalizada como aquela. Mas apesar da corpulência ponderável, também a mulher parecia sentir o desconforto moral justificado pelo reconhecimento de que sua garupa excedia razoavelmente os limites atestados pela linha divisória que havia entre os bancos. Mas eu mesmo não pude culpá-la já que o problema, ali, era maior na razão total entre as ancas dela e da senhora ao lado e o espaço insuficiente dos assentos supostamente cabidos a elas, fazendo espremer-me contra a parede do carro ao meu lado direito e, muito provavelmente, também à moça sentada à esquerda na outra janela, embora eu já não pudesse mais vê-la uma vez que, apesar do recurso da visão periférica, ela desaparecia completamente atrás dos corpos avantajados das duas mulheres que se punham entre nós.

E o desconforto que sentira a mulher alguns pontos mais tarde a fez desculpar-se comigo quando, em curva acentuada, fez-me sentir seu peso de forma mais intensa. Isso, também, porque estávamos colados desde o início e qualquer movimento seria, de fato, impossível. Comovido com a necessidade de re-tratamento dela, vi-me obrigado a respondê-la desse modo:

- Não há porque desculpar-se. Não é sua culpa se a razão entre os espaços dos assentos e os tamanhos dos nossos traseiros, nós que dividimos essa fileira, não cumpre por re-estabelecer o equilíbrio, já que também absurda é a consideração de que nossas nádegas devessem ter o tamanho exato dos assentos que ocupamos. O problema aqui é que, ao acaso, não competiu tomar nossos corpos na perfeita ou justa medida da largura do veículo. A culpa, pois, não é sua. É um caso absolutamente circunstancial.

Incompreendendo a sentença, ela me devolveu:

- Hã?!

E vi-me obrigado a redimir minha clareza descritiva e de rigoroso objeto no trivial jargão (em tom conciliador): - Essas coisas acontecem...

E ela se virou satisfeita para frente e continuou a viagem muito mais tranqüila, não pela concordância com o desconforto que eu atribuía meramente à circunstância, mas por se ter feito educada e demonstrado que nada poderia fazer para redimir-se de suas largas e incisivas ancas. Percebo que a faculdade para comunicar e receber comunicação de sentenças que estão, em complexidade, para além de amenidades como perguntar as horas ou pedir um cigarro não está dispersa na massa e se encontra, talvez, restrita a um grupo diminuto de indivíduos que se empenham e conseguem lograr em tal objetividade. Imagino que aquela não faça parte desse estreito grupo. Mas ainda que fosse gorda realmente, eu jamais a poderia culpar, com alguma diligência, pelo meu desconforto.

2 comentários:

  1. uahahahaha! minha realidade diária nas kombis da vida! curti!

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  2. Sociedade industrial td bem, mas apesar da ampla poupança das senhouras, nem tão capitalizadas assim, caso contrário, essas possuiriam carros, como o Apolônio, e não precisariam andar de van. Ou ainda melhor, teriam recursos para uma lipoaspiração.

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