terça-feira, 14 de outubro de 2014

O homem e o lago




O jovem, procurando por razões e histórias que pudessem preencher o vazio que sentia dentro de si, foi ter com o ancião da vila, esperando que este lhe pudesse dar alguma resposta.

O velho, então, contou-lhe uma história antiga, registrada nos autos do grande livro de histórias de sua comunidade, sobre um homem que se sentara à beira do lago com sua vara de pescar e colocara-se a pesca. E como depois de algumas horas nenhum peixe houvesse beliscado a isca e o porque a paciência não era uma das virtudes daquele pescador, resolveu o homem prender a vara à margem e aproximar seu rosto da superfície do lado, tentando enxergar o movimento dos peixes abaixo dela. Só conseguiu ver ali, no entanto, a imensidão deserta do fundo do lago. Aproximou-se, assim, mais um pouco e depois mais um pouco ainda, até que uma brisa inesperada o fez perder o equilibrio e o derrubou nas águas da lagoa.

Ao tentar nadar de volta à margem, descobriu que estava preso ao anzol na ponta da linha de sua vara. Tentou em vão tirar aquele gancho que o perfurava num ponto cego exatamente bem ao centro de suas costas e inacessível às suas mãos.

O homem nadou por três dias e três noites inteiras com o anzol preso a si e como não houvesse ninguém por perto para puxar a linha e trazê-lo de volta à margem, desfaleceu e afundou lentamente, indo seu corpo habitar, a partir dali, o fundo daquele lago.

Explicou, depois, ao jovem a moral da história: “O homem que produz a arma é também aquele que produz a guerra; e este que produz a guerra é também o autor da glória dos vitoriosos e, ainda, da miséria da qual padecem os derrotados.”

O jovem ficou intrigado com a história e durante três dias e três noites pensou naquelas palavras procurando um sentido que o satisfizesse. Recorreu, então, ao grande livro, esperando encontrar outros detalhes e, talvez, algum significado outro que pudesse completar as lacunas deixadas pela história contada pelo mestre. Surpreso, descobriu que a história não constava no livro.

Retornou, então, a casa do ancião para perguntá-lo a respeito do porquê daquela ausência, mas ao chegar lá, encontrou-o desacordado e com a boca suja diante de uma carta e um vidro de tinta vazio. Viu com terror no pacífico daquela semblante que o senhor jamais acordaria das profundezas de seu sono e constatou, ainda mais uma vez, ao ler a carta - escrita com a mesma tinta outrora conservada no vidro agora vazio - que dizia: “O homem que não produz suas próprias histórias é como o lago vazio diante dele e não importa o quanto aproxime seu rosto da superfície do lago, o único movimento que verá, será o seu próprio ao aproximar-se.”

Quando recuou o rosto da carta, percebeu que havia apenas um corpo naquele recinto e esse era o seu próprio, já ausente de toda e qualquer curiosidade e com a boca irremediavelmente suja de tinta.

sábado, 11 de outubro de 2014

Pietra e a representação da vontade

Caminhavam de mãos dadas mãe e filha pelo jardim, quando a menina perguntou: "Mãe, a lagarta gosta de queimar a gente?"

- Não filha, ela queima pra se defender - respondeu a mãe e ficou a criança em silêncio por alguns segundos, mas não porque estivesse satisfeita com a resposta que recebera, pelo contrário. Para ela seria impossível compreender a razão da incompatibilidade entre a defesa da qual era praticante a lagarta e um gosto possível pelo qual se tivesse, então, motivado.

- Ela não gosta, então? - perguntou esperando a confirmação da resposta que a mãe deixou para ela subentendida. A mãe, então, percebeu o problema que tinha em mãos: não tinha a filha suficiente intimidade com o tema para supor da primeira resposta uma separação evidente entre vontade e necessidade. Convenientemente, havia a menina lhe entregue a chance de ali concluir, fazendo-a aceitar que entre a ação e a vontade da lagarta não existia mais que uma relação de mera circunstância e, então, reduzindo a curiosidade da criança a autoridade de seu julgamento pela negação resoluta. Mas o instinto pedagógico materno  lhe sugeriu que seguisse adiante com o questionamento da menina.

- Não é que ela não goste, filha. Mas goste ou não, a lagarta queima porque precisa. Não é pra ela possível não fazê-lo.

Estava exposto o expediente: Havia a lagarta sido reduzida à condição de criatura acrásica e, sem poder para determinar a si mesma, não poderia ser tomada por um capricho de gosto, ou qualquer coisa parecida com isso, por conta da reação da qual era a fonte.

Mas para menina, a relação entre a vontade e a ação era inalienável, mecânica ou quase isso, não sendo possível à criança conceber qualquer representação do inseto que não fosse individualizada; talvez, um espelho da sua própria existência como sujeito. Pois, se o prazer e a vontade não a impeliam aos termos da sua defesa, deveria haver ali vontade ou prazer outros, quem sabe opostos até as consequências que se tinham em vista:  "Ela tenta não queimar a gente, mas não consegue parar, né? É tão rápido que quando ela vai ver, já queimou sem querer... - fazia, assim, a menina o retrato de uma lagarta desgovernada, inconsequente e vítima da sua determinação biológica, como a mãe a havia ensinado, mas não sem o drama de uma criatura que sente, que julga e que sofre; contornava ao redor da lagarta uma psicologia tão delicadamente humanizada, que seria possível imputar sobre ela um juízo moral qualquer. Mas para a menina era preciso, acima de tudo, defendê-la até às últimas consequências do estigma e do vilanismo que atribuímos aos nossos algozes assim como se fazia nos desenhos que sua imaginação frequentava. - Ela não faz por mal, né mãe? - completou com  ponderação amável até, como se justificasse a si mesma a impossibilidade de fazer carinho no inseto, como provavelmente alguma vez pretendeu um segundo antes que algum adulto a tivesse aconselhado a não fazer.

A mulher, em cujos conhecimentos se alimentava uma visão mais sóbria e relativa, tratou de explicar a filha que não seria razoável projetar-se no pequeno ser vivo. Que há dois universos distintos para as motivações humanas e as motivações das lagartas. Destituindo, novamente, a lagarta da humanidade que a filha insistia em retomar: "Não filha, ela não faz por mal porque ela nem sabe o que é mal. Ninguém ensinou pra ela o que é certo ou errado e mesmo se se tentasse ensinar, é muito pouco provável que ela conseguisse aprender."

Mas a criança, reproduzindo a partir de seu próprio entendimento o descaso da mãe para com o intelecto do bicho, perguntou uma última vez: ˜Você diz isso porque já tentou ensinar alguma lagarta e ela não aprendeu, né mãe? - seria preciso agora explicar porque a mesma suposição que a mãe fazia da ignorância da lagarta em respeito a noções tão humanas como bem e mal, não se aplicaria a mãe sobre os desígnios profundos do inseto, já que, certamente, grande conhecedora essa não era da psiquê da lagarta.

Mas a filosofia é uma disciplina que requer do seu interlocutor a maturidade de uma vida de experiências e conhecimento profundo da fisiologia do mundo, onde lagartas são lagartas e homens são homens; e ninguém pode culpar aquela mãe de não ter dado o melhor de si.

Criança não entende nada mesmo...

quarta-feira, 8 de outubro de 2014

À Força




Há quem consiga amar co`a alma
quando o corpo, dono dos gestos amáveis,
imerso em dura e estafante labuta, vacila?


Há quem a arte redima dos golpes
a seco nas feridas e calos, que o faça
querer mesmo o palco ao invés da cama?


Há, enfim, quem acredite na palavra
- rebenta palavra - essa que salva e guia
do escuro onde o cego vigia, à iluminação?


cansaço: eis a fé que me aliena
de resto, nem a rima vale...
mas a alma, essa sim é tão menor.

O disco de ouro.


Escrevi a você uma carta que está agora enterrada em mim ou foi lançada nesse interior espaço sem fim. Se você é, por força da transferência da qual foi vítima, testemunha onisciente do universo neste instante, por favor, leia-a com atenção; atenção que não pude eu dar àquelas palavras, porque elas aqui não existam ou porque soem nesse mundo demasiadamente vagas ou sem sentido; pelo excesso de dúvidas ou pela falta de explicações, pouco importa; meu desejo de lhe entregar essas notas é ainda maior que o desejo de entender o que sinto.

Com amor,