terça-feira, 25 de setembro de 2012

A umidade relativa da água



Chegou na minha casa às 23:37. Sei exatamente a hora porque olhei no relógio - sabia que mais cedo ou mais tarde acabaria escrevendo sobre isso e me apeguei aos detalhes desde a espera até a hora que ela partiu. Abri a porta e ela entrou. Sentou-se no sofá, cruzando as pernas que saíam de dentro do vestido minúsculo e esboçou um início de conversa: - Bela casa você tem.

- É alugada. – tive que dizer para que ela não pensasse enganosamente da minha situação financeira.

- Ainda assim é bonita. – ela concluiu.

Eu ofereci vinho, cerveja ou água, ela rejeitou, sumariamente, se levantou do sofá, colocou as duas mãos na minha cintura e começou com as carícias. Primeiro subindo pelo abdômen, por dentro da camisa, por todo torso até o peitoral, depois descendo, cravando as mãos por dentro das minhas calças e apertando minhas nádegas com força.



Minha timidez me deixou em atraso e eu demorei uns quantos 5 minutos para tomar o controle da coisa. Foi quando a virei de costas com brutalidade, encostei-a contra a parede da sala, bem ao lado de uma reprodução impressa de um quadro de Rothko, puxei a calcinha por baixo do vestido vermelho e penetrei nela sem esperar que ela estivesse pronta. Como não estivesse suficientemente molhada naquele momento sentimos, eu e ela, o vigor áspero e a brutalidade insensível da minha ofensiva. Mas ela logo se umedeceu e aquilo ficou pra trás. Eu continuei por trás dela, com força, num movimento em que fazia me demorar dentro dela, forçando até onde fosse possível a entrada.

Eu mantinha os dentes cerrados: se algum observador oculto me descrevesse espumando pela boca, eu não duvidaria. Ela gemia alto demais e eu cansei daquilo. Conduzi o rosto dela pelo cabelo com violência até embaixo, onde pressionaria sua cabeça contra o meu pau, fazendo da boca um orifício à disposição ininterruptamente. Depois de alguns segundos ela ficava sem ar, pressionava as mãos contra o meu corpo oferecendo resistência contra as minhas investidas, recuperava o fôlego como se lutasse contra um intempestivo afogador, e se largava novamente ao movimento.

Quis chamá-la pelos mais ofensivos nomes que me vieram a cabeça naquele momento, mas permaneci calado, com a mandíbula contraída. Levantei-a, ainda pelo cabelo, apertei firme sua cintura, apoiando-a sobre um móvel ao lado do sofá e tornei a penetrá-la. Sustentei o olhar diante do olhar dela, que arrefeceu e se desmanchou em submissão sem que ela desviasse de mim os olhos, enquanto eu mantinha o movimento da pélvis, que ela sentia e declarava com um gemido suave a cada estocada.

Ao me aproximar do gozo, puxei com força seu cabelo, inclinando a cabeça para trás, e cuspi sobre a sua boca. Ela arregalou os olhos assustada, mas como não tivesse controle nenhum sobre o movimento que eu fazia e que se concentrava entre suas pernas ela retomou a expressão de prazer e mordeu os lábios encharcados com a minha saliva. Segundos antes de gozar, puxei-a novamente pelos longos cabelos e gozei sobre seu rosto, como se cuspisse uma segunda vez. Ela fechou os olhos e se colocou a disposição.

Retomando o fôlego e deixando pingar as últimas gotas de sêmen no chão, que eu arrancava de dentro pressionando o indicador e o polegar sobre a cabeça do membro, fazendo um movimento que ia da parte superior da glande e do prepúcio até a ponta - como se ordenhasse uma vaca - senti o calor se esvair, o suor que escorria abdômen abaixo, e como se uma criatura completamente diversa daquela que acabara de gozar assumisse o comando, virei de costas e fui até o banheiro, trazendo – na volta – uma pequena toalha que entreguei a ela para que enxugasse o rosto. Ela me agradeceu com um sorriso, como se eu fosse o cara mais amável do mundo. Eu, então, tomei aquele rosto entre as minhas mãos (Até ali não havia reparado na beleza ingênua que se descolava dele, como uma máscara delicada que se desfaz com o toque bruto) e acariciei como acariciasse uma criança ou um cachorro (pois até hoje não sei ao certo a diferença entre o carinho que se deve entregar a uma criança e a um animal de estimação). Os olhos dela, a partir daí, se encheram de água e ela quis chorar, mas não deixou que uma só gota escorresse. Os olhos, que tanto líquido haviam produzido, foram os mesmos que absorveram cada gota não chorada, cada lágrima não descida. Levantou-se dos joelhos no chão que, provavelmente, já sentia doer, e se recompôs. Catou a calcinha, esticou o vestido e esperou que eu tirasse 150 reais da minha carteira e entregasse a ela, conforme fiz logo depois.

- Obrigada! – ela disse não sei se com ironia ou por sincero agradecimento. – Obrigado você! – eu respondi e responderia fosse pela honesta graça ou pelo sarcasmo.

Levei-a até a porta.

Sentei-me no sofá e procurei sentimentos por entre os escombros do que havia sobrado dentro de mim. Certo era que um monte de culpa se fazia conviver com alguma emoção mais claudicante, reticente, e que não deveria estar ali. Pensei por um segundo estar apaixonado. Mas me desfiz do pensamento. Não sei, de fato, o que é a paixão e a poderia ter tomado por coisa muito mais frívola, como já antes tomara, aliás, quando após uma refeição magnífica meus pensamentos se dedicaram tão intensamente àquele prazer que certa vez acreditei estar apaixonado por uma lasagna. Ademais, paixão não é coisa que se compre com 150 reais. 150 mil talvez, mas isso não cabe aqui especular.

terça-feira, 4 de setembro de 2012

O pintor de paredes


"Wir fühlen den Schmerz, aber nicht die Schmerzlosigkeit"
(Sentimos a dor, mas não a sua ausência)
Arthur  Schopenhauer



Fecho os meus olhos e outros dois olhos, de repente, aparecem diante mim; diante de meu peito ou ao meu redor; uma imagem que se espalha e contamina aos poucos o espaço de minha percepção; não são, no entanto, olhos de verdade o que vejo; e como poderia vê-los de olhos fechados? São olhos não porque “ser” lhes funde em alguma verdade, mas porque uma existência sutil lhes entrega o caráter de ‘coisa no mundo’. Olhos pintados por mãos invisíveis - a memória é uma artista tão delicada; detalhista, algumas vezes e outras, apenas delicada. Pois há esses momentos em que se apega somente ao essencial; desfaz o contorno preciso em forma que já não se quer definida; derrama sobre o espaço intangível entre os olhos e a alma a cor que dia houve visto em círculos e elipses em vida e movimento. Agora, no entanto, retém perene e objetivamente apenas seu nome: azul. Mas a palavra, somente, não faz jus aos olhos que dia estamparam essa cor; a mesma cor, talvez, que Agamenon um dia viu sobre o Egeu quando da sua investida em direção a Tróia. Mas também esses olhos, os do herói grego, não tem verdade que não seja apenas o reverberar de um sentido que dia fez nascer a palavra, ecoando através das vozes que se seguiram à voz de Homero ou nos palimpsestos gravados a custo de mãos que hoje já não mais pintam.

Abro meus olhos e aqueles olhos outros permanecem diante de mim sem dirigirem-se aos meus, pois sua imagem imprecisa não se delineia através da visão e nem é o sol quem a alumia; esse mesmo sol que um dia iluminou a visão que Galileu teve do azul num céu à luz do dia; o sol que Copérnico descreveu, talvez, como um nome apenas e em nome de uma visão que não era, todavia, a dos olhos seus.

Respiro fundo e sinto o cheiro do mofo que cobre as paredes do quarto. Mas faço surgir renitente a imagem da pele, cuja cor dá também vida a uma pintura nascida sem tela. Mas pele, branca ou bege, pontuada por sinais mais escuros como que pintados à ponta de um lápis, essa pela não exala, como se pede, o cheiro que um dia teve lugar sob minhas narinas. O cheiro não é, com efeito, da memória um talento exemplar; permanece intocado. Quanto mais aspiro mais é, nada obstante, o branco (e tanto menos o bege) - da superfície por onde se espalham aqueles pequenos sinais - que sobe e me penetra os pulmões em imagens visíveis ou quase, sem odor algum a evocar. Se sob as narinas vigilantes, todavia, esse aroma exalasse novamente, eu poderia tê-lo outra vez e reconhecê-lo. A memória é um pintor virtuoso mas um perfumista apenas medíocre ou nem isso; e se nem mesmo no espaço memorial rarefeito tenho eu a presença do cheiro, pouco tenho as palavras que me possam nessa arte delicada guiar para retomar da baunilha outra coisa que não o amarelo vivo das suas flores.

Como guiasse, na memória do músico, o timbre, os intervalos e as notas de canção silenciosamente retomada; porque também ali a harmonia permaneceria incógnita se não houvesse sabor e individualidade em cada som que se evoca. Mas a minha lembrança é nesse campo, ainda, uma orquestra vacilante. Pois quando penso na voz é a imagem da boca a mexer o que surge ao redor dos meus ouvidos. Aquela voz que um dia antes sussurrou em um ouvido meu, não retorna e não me parece haver meios para fazê-la retornar senão no que se pode rever do resvalar ruidoso do ar sobre os lábios rosados e um quase tom agudo, desvanecido, de quando um dia ouvi tal voz a cantar. É dos instantes em que ela sumia, entretanto, que a lembrança se faz mais rigorosa. Gravou-se dessa voz o silêncio numa imagem, ainda que intangível, para olhar; era o silêncio a nota dominante, sem dúvida, porque eram a mesma sentença o canto e ar que escapava através da garganta. 
  
Posso ainda vestir um corpo ao redor daqueles olhos, sob um tecido florido, prender-lhe cabelos ao redor de um rosto refigurado, ou ainda despir esse corpo e retomar novamente a imagem da pele branca, reinventar seios – como eram aqueles – pequenos e disformes como os de uma jovem há pouco tempo ainda criança, ou ainda o umbigo, que é agora apenas um pequeno orifício acima da pélvis, uma imagem sem fundo e sem superfície; um buraco negro que pede por ser esquecido pois que os dedos não mais lhe podem tocar.

Além de tudo, a memória não tem volume, não tem textura ou opacidade, pois detalhista ou não nunca nos leva ao centro daquilo que se empenha em mostrar. Nem as sensações e os sentimentos que nasciam no meu corpo quando da presença daquele outro traduzem aspectos de realidade alguma, já que a memória não se alimenta daquela matéria, mas das tintas dos sentimentos de agora. Talvez seja querer demais da memória, essa gravurista ambiciosa, não mais que oportuna, quando o caso requer mais que o naturalismo da pintura de uma paisagem ou natureza morta. Pois a essência não é apenas o azul que nascia nos olhos ou o cheiro do branco descansando sobre a pele, não é nem mesmo a transparência da voz na forma silenciosa do ar entre os lábios, nem é, ainda, os contornos do corpo ou menos o tecido e os cabelos ao seu redor.  A memória, ainda quando uma fotógrafa experiente e tenaz, não pode exprimir a essência quando se pede que essencial seja tudo: O todo, as partes e nada mais.