sexta-feira, 4 de novembro de 2011

Retrato de Corte

Consta n’algum livro de autoria desconhecida incumbido de narrar a história, já há algum tempo incélebre, de um ilustre membro da corte inglesa durante o século XVII, que o tal cavalheiro contratara um renomado mestre da pintura flandrina para compor-lhe um retrato. E, porque fosse muito feio, pediu-lhe o contratante que retratasse a imagem de sua glória, a despeito das imperfeições que o tempo havia cunhado ou que a genética lho tivesse imposto, corrigindo sobre a tela as marcas de sua fealdade, de modo que na representação cumprida figurasse a aparência de um belo homem.

Aliás, não há muito algum espirituoso autor houve publicado um artigo, menos de valor histórico que anedótico – justiça seja feita -, onde se refere a esta mesma história do livro aqui em nota como fosse a primeira cirurgia plástica narrada e de alguma forma documentada pela pintura. E cita esta passagem em que declara o aristocrata da história: “Que Deus tenha-me atado a este fardo, que me tenha esculpido em mármore tão áspero, não apenas ignorando a expressão de sua imagem e semelhança, mas fazendo-me do outro lado à imagem e semelhança de um pobre diabo, nada poderá contra o poder que teve ele próprio investido às mãos sagradas desse pintor. E, se em vida hei degustado o sabor amargo da feiúra, tornar-me-ei belo, d’outra forma, após a morte que me espera - como triunfo último de minha tão eloqüente vaidade.”

Mas também há notas nos escritos que se detiveram em catalogar a errância da obra pintada, que após passar às mãos de seu segundo dono e deparar-se subitamente com a vista de uma bela princesa, esta teve em medida um longo suspiro ao qual se sucedeu a seguinte passagem, também descrita por anônimo literato: “Mas que belo, belíssimo! Irrepreensível é o amor divino que propositado com a beleza dos céus, dotou as mãos singelas de um pintor assim delicado com tamanho talento.” E ignorando o título que conferia nome e nobreza ao rosto ali retratado, tratou de tomar nota do nome que assinava.

Assim, devemos supor que mais resiste ao tempo a beleza da mão que pinta, que a autoridade severa daquela que paga.