quarta-feira, 25 de setembro de 2019

Curtindo a vida adoidado às avessas (Ferris Bueller's day on)



“I want you to panic. I want you to feel the fear that I feel everyday. I want you to act.”

Essas palavras saídas do discurso de uma menina sueca de 16 anos expressam a medida exemplar do nosso sistema de circulação de imagens e ideias. Uma pessoa, individualizada ao máximo no nome e na imagem do herói inocente e puro, aqui feito heroína (o que apenas convoca mais um elemento nessa dimensão libertadora da redenção), vem ao mundo dar sua mensagem – parece que até aqui a mensagem não havia sido dada com essa ênfase ou essa clareza. Não é, no entanto, uma mensagem de “esperaça” dirá ela, mas uma mensagem de desespero, conclui, para logo depois assoprar a ferida. “Mas ainda há tempo!”. Ela quer que você sinta o medo que ela sente todos os dias. O medo dela é real, não se engane, mas é somente o medo que ela conhece. Há uma semana uma menina de 8 anos chamada Ágatha era baleada e morta no Rio de Janeiro. O que uma coisa tem a ver com a outra? você vai perguntar, com criticismo justificado. As tragédias em questão não se anulam, nem se sobrepõem, é verdade. Mas eu as coloco aqui lado a lado, apenas para dar a você a dimensão abstrata do medo que ocupa a consciência da ativista sueca. Sim, é um medo abstrato, apesar de real, porque é um medo refletido, é um medo alimentado por uma consciência inclusive política; uma consciência que reconhece responsabilidade - uma responsabilidade moral sobre o futuro da existência humana, civilização. Não é o medo da arma do policial que espreita na esquina, pronto para atirar em qualquer um com a pele mais escura. É o medo abstrato de alguém privilegiado o suficiente para achar que seu medo tem o rosto e a dimensão do problema mais global e mais urgente.

Por que é o medo da menina sueca que ganha mundo? Porque ali se encontra a figura vestida do nosso sistema de circulação de imagens e ideias. O mensageiro traz um grito que convoca a luta, como ele mesmo faz, com seu olhar que se alterna entre o papel que lê a sua frente e a plateia em silêncio ao redor. A seriedade não poderia ser mais real, porque não é o produto de uma dramatização fictícia, é real como a menina e o seu medo. Ela quer que você aja, como ela está agindo (o termo ativista não está a disposição por mera coincidência, e aqui eu uso a palavra agir e não atuar para que você não confunda uma arte com a outra). Mas nas palmas alçadas e no alívio da tensão muscular depois da fala, o espírito de luta se dissolve – os gregos chamavam a isso de catarse. Ainda que o agir e o atuar sejam os empenhos de duas profissões distintas, o resultado final aqui é o mesmo.

O medo continua lá, mas ele estará adormecido enquanto a menina dorme, enquanto você trabalha, enquanto eu confecciono o meu texto, enquanto – em resumo – cada um de nós exerce a individualidade de uma existência reverênciada por esse espírito liberal que nos alimenta e que nós alimentamos. A menina usa o termo homo sapiens, em todo caso. Pedindo - com a consciência de quem sabe o exato significado das palavras que fala - uma identificação como espécie entre esses indivíduos dispersos que somos, mas não percebe que é a sua própria imagem que nos impede de identificarmo-nos. Uma imagem do indivíduo privilegiado das celebradas e minoritárias democracias europeias. A classe média daqui, quem sabe, poderá vir a se identificar com ela, mas não é essa classe (acostumada a certo conforto) que vai dar significado algum para o que a menina, de fato, quis dizer com “eu quero que você aja”. O meu respeito e admiração por ela é grande, inclusive na medida da ingenuidade e inocência daqueles que acreditam que ela é o anúncio de uma mudança. Você precisa lembrar - o tempo todo, se possível - que quem colocou (permitiu, pelo menos) ela ali para falar foram os mesmos agentes que deram um púlpito e um microfone para o presidente em exercício dessa nação em pedaços falar na ONU. Ela quer que ajamos, mas eu pergunto: não estamos todos agindo? Ou estamos apenas atuando? Depois de assistir 2 horas em sequência em filmes e seriados no netflix, impossível não conservar a impressão quase permanente de que a vida é uma obra de ficção.