terça-feira, 9 de janeiro de 2018

Tome Nota!





Então, eu havia parado de tomar notas. Percebi-me completamente outra pessoa, pois, aquele de antes, sempre disposto a tomar notas das ideias mais incabíveis era uma criatura sã e consciente de si – uma contradição tão harmoniosa quanto a própria palavra, já que a consciência de si conserva um parentesco inevitável com a loucura. Afinal, a consciência de si é a própria negação da vida, resultado do fluxo incessante no qual o mundo - a envolver-nos com suas coisas de mundo - faz de nós parte dele. Quanto menos conscientes de nós mesmos, mais nos permitimos ser com o mundo, e isto é o resumo próprio da sanidade.

Mas nas ideias que deixamos pra trás, pintam-se retratos de uma realidade que nos apresenta o mundo em singular clareza. Por isso mesmo, a sanidade difere essencialmente da consciência de si, que é lucidez, clareza… a sanidade , por outro lado, é contraste, instável, indeterminada – é encontrar-se no fluxo ininterrupto das ideias sem prender-se a nenhuma delas. Mas ideas, veja você, todos as tem, o tempo todo. Diferem, no entanto, aqueles que tomam notas, alcançando-as – as ideias – fora da água corrente da vida ela mesma. Percebem-se, então, como seres pensantes, porque pensam ideias e, em dado momento, param-se nelas, interrompendo a sequência inabitável dos pensamentos que dão margem a própria vida. Recortam - no mar das coisas pensadas, passadas e presentes – um instante impregnado de um sentido tão particular, que não é possível ter os dois ao mesmo tempo: a vida e o pensamento. Porque a vida é o movimento dos passos que se ultrapassam, e o pensamento é o momento preciso da chegada do pé ao solo.

Foi quando parei de tomar notas que o tempo correu, como quem corre ao supermercado para comprar café, açúcar ou batatas. Nimguém é, de fato, consciente de si enquanto compra batatas e, no entanto, é a sanidade necessária para comprá-las. Mas quando tomo notas, reconheço que as ideias existem em si e por si; eu mesmo existo porque as concebo e as circunscrevo à parte da vida mesma, mas posso deixar-me novamente perder no fluxo incessante que a sanidade me pede, porque tenho naquelas inscrições pontuais um recipiente seguro para esse líquido semitransparente que são as ideias. Tomar notas, alguns dizem, é a atitude dos acumuladores, guardando caixas e partes sem todo, apenas porque esperam que o mundo que agora os rejeita, recorra novamente a eles, num tempo ainda não desdobrado… mas a memória também é acúmulo. Foi, pois, quando parei de tomar notas que me vi sem importância para um eu futuro – um eu que tangencia a consicência do agora, mas que se projeta adiante, como um membro que se alonga para alcançar aquilos que os olhos apenas veem a distância. O homem que se pára diante de um pensamento, reflete a si mesmo, como ali houvesse um espelho, o pensador indisfarçável de uma ideia, mas ao refletir essa imagem, anuncia também uma criatura nova e que se transforma a cada movimento da luz no espaço.

Tomo, assim, mais essa nota – da frustração dirigida de quem há muito não as tomava - a vida vivida sem elas, parecia-me menos sã, ainda que mais salutar... talvez porque me tenha acostumado a pensar-me como alguém que as toma.

Mandarei escrever na minha lápide, tomando a nota em pedra: “Também não há mal algum em comprar batatas, ainda que as batatas nada digam de ti. Pois, somos mesmo, apenas até onde nossa fome nos dá permissão.”


A vida, de qualquer modo, é outra coisa… e não cabe na nota.