quarta-feira, 2 de setembro de 2009

A Saga do Homem-morcego no. 1

Em algum universo paralelo - de um paralelismo impensável, mas tão possível como qualquer desses que figuram no desconhecimento recíproco de retas que não se cruzam jamais - onde algo menos que alguma imaginação sórdida e insensata não seria capaz de inventá-lo, existe uma cena muito particular que a nós, que nos fundamos cepticamente em nosso próprio e estreito universo, parece absurdamente engraçada. Mas, em verdade, é a tragédia quem melhor a nomeia. Pois eis que o Batman (sim, o homem-morcego herói e burguês tão bem conhecido) por um problema qualquer no motor de seu Batmóvel e na dificuldade de reposição das peças de tão elaborada engenharia, esperava numa fria madrugada na Central do Brasil o ônibus 565 – Lapa-Gotham City.

Batia o pé seguidamente numa ansiedade irônica, queria chegar logo em casa.. digo, na Batcaverna. Olhava seguidamente em seu relógio que, não fosse o disparate daquele objeto servir propósitos tão variados como o de escalar prédios e paralisar criminosos, muito irritado estaria com ele o próprio Batman, já que aquela complexa ciência contida em uma pequena pulseira fazia de quase tudo, mas não dava as horas como ali se pedia. Mas não era por estar atrasado para algum compromisso marcado que sua mente ansiava, era o desconforto da demora quando aquele mauricinho fantasiado nunca antes havia pego um ônibus. Ora, eram já lá pelas 4 da madrugada, os bandidos todos já estavam de volta as suas casas (pois apesar do que se diga em contrário, criminosos também dormem) e esse poço de físicas virtudes que é nosso comprometido herói, como todos já devem saber, pelo auspício de uma técnica brilhante aprendida com sabe-se lá quem, só necessita de alguns poucos minutos de sono. Mas ainda que durma de cabeça pra baixo, mais absurdo que isso certamente é pensar que ele esperava o ônibus na Central do Brasil e que o motorista de algum ônibus, desses capengas que passam por lá, saiba o caminho e siga o rumo da tal Gotham City.

(...)

A parte mais comovente da história – e a única que importa realmente, diga-se de passagem - é que a certa altura, já tomado pelo frenesi do desconforto da espera (já nem medo nem frio o poderiam atingir – um porque tinha ele o famoso cinto de utilidades capaz de deter com perícia inescusável qualquer “indelicado cidadão”, o outro porque seu uniforme que cobre dos pés a cabeça é feito de tecido singular a prova de frio, de fogo e que não mancha com vinho), percebeu a trágica irrelevância de sua atuação como herói. Assaltado por uma espécie de culpa pequeno burguesa, Batman se viu desolado ao tomar consciência do fato de que enquanto ele gasta seus milhões de dólares em jatos turbinados e capas de cetim a prova de balas, milhares de pessoas partilham desesperançosas a inoperância do sistema público de transporte coletivo. Pensava em seus grandes inimigos e nas dificuldades que um Coringa, por exemplo, passara ao encostar-se por horas num desses pontos mal cheirosos onde se espera por um ônibus que leve aos subúrbios empobrecidos de Gotham. Pois convenhamos (e naquele minuto também o Batman conveio), o pobre Coringa, cruel, delinqüente e enlouquecido que seja, não teve como o próprio Batman as oportunidades das classes mais ricas daquela cidade. Ora, ora, ora! O Batman, aquele mesmo que pensava salvar o mundo quando impedia que um duas caras explodisse uma bomba, ou quando adivinhava uma xarada nebulosa de homônimo vilão, percebia agora que nunca considerou distribuir sua riqueza entre os pobres. Não da forma como antes pensava fazê-lo, nas pesquisas absurdas de sua empresa que quase nunca faziam mais que inventivas e letais carabinas ou, de modo inverso a proposta, armava, com sombrios poderes, novos e perigosos inimigos. “Não! Não dessa forma!” – Pensava ele agora e invejava um precursor seu chamado Robin Hood. A ironia dessa inveja, a saber que se tratava de um herói bastante mais humanista que ele próprio Batman, residia na estranha coincidência de seu fiel escudeiro (tal qual Sancho Pança) - criatura tão subestimada apesar do qualificativo prodígio – tratar-se, no nome, de um cognato daquele herói de contos medievais. Pois bem! Uma criança, como era Robin, não deveria arriscar a vida em tão pretensiosa labuta, menos ainda sob a porfia exploratória de burguês egocêntrico. Deveria estar na escola, estudando como os de sua idade para que o exemplo da falta de oportunidade de um Coringa não lhe fosse parâmetro. Pelo menos assim pensava naquele instante o homem-morcego angustiado, do alto de uma moralidade que só pode emergir em momentos de desconforto.

Mas foi apenas até cessar o desconforto que se teve ele acometido por esse tipo de pensamento – “Radical de esquerda”, segundo ele próprio apressava-se em rotular. Um porque o ônibus logo depois chegara. Dois porque vinha vazio - àquela hora os moradores de Gotham já estavam em casa, dormindo e de portas bem trancadas, já que, apesar do Herói que ostentam, sabem tratar-se de lugar bastante violento. Violento, aliás, como a noturna cidade do Rio de Janeiro em que Batman esperava sua condução – sem medo, mas com olhos bem abertos por baixo da mascara de borracha. E, tão absurdo quanto a história, é uma outra em que se veria o famigerado Pingüim com suas delirantes tramóias ali nas redondezas da Central, Cinelândia e afins. Sabe-se que é por lá que residem os mais valentes “vilões”, e mesmo um mamífero (apesar da alcunha) como aquele recusaria atrever-se a armar lá por aquelas bandas.

(...)

Sentado num banco macio de ônibus a caminho de casa, Batman voltaria a pensar nas suas aventuras homéricas e em suas épicas de lutas armadas. O ônibus parou e o herói encapado subiu de peito estufado, deu boa noite ao motorista e de cara com o trocador descobriu o porquê daquela comédia ter sido anunciada, tão precocemente, como tragédia. E foi o desfecho que teve: Pôs a mão naquele letrado cinto (visto que a armadura não tinha bolsos) e percebeu que havia esquecido a carteira, sentindo, pela primeira vez, a absoluta impotência daquele bumerangue que lhe veio à mão.

2 comentários:

  1. Postado originalmente em:
    www.fotolog.com/brunofritz

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  2. Coisas como o cotidiano comum, não devem ser vistas por pessoas boas de alma duvidosa.

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