domingo, 28 de novembro de 2010

Pública República - pequenas crônicas sobre grandes cidades...

A cidade é fria.

Em pleno verão, os raios das primeiras horas de sol não são suficientes para aquecer o estrangeiro aviltado pela realidade dantesca que o cerca. “São Paulo” – Pensará ele, como se o próprio nome evocasse cada detalhe do espaço, do clima, e das pessoas que parecem constituir algo como uma natureza do lugar. “Natureza?!” – é o que se perguntará o forasteiro, certo de que não há nada de natural naquilo.

Saindo do metrô na estação da República, atravessando a praça o deslocado aventureiro se deparará com uma jovem que se deita ao chão, escorando-se no metal da porta corrediça de uma loja qualquer (talvez uma casa lotérica ou um curso de inglês, mas a jovem lhe atrairá em demasia a atenção para deixar espaço a especulações desse tipo – pouco importa qual loja será). Cobre-se com um velho cobertor enquanto empunha um sorriso tão deleitoso que parecerá a jovem ter esperado toda a noite por aquele descanso impróprio – ou o deleite é conseqüência de algum entorpecente pesado, justificando assim o prazer em total despropósito. A jovem tem lábios lindos e grossos, e as bochechas enrubescidas contrastam o tom de pele com a posição que a menina ocupa numa calçada perpendicular à praça da República. O piercing no nariz e o cabelo - despenteado em arranjo intencional – acusam também a disparidade com a realidade que ela molda a si ao deitar-se sobre o concreto de uma rua imunda. O estranho continua andando sob o risco de perder-se naquela bela jovem e apaixonar-se por ela, que lhe desvirtua a mais conservadora orientação classista. Cessa o olhar, no entanto, visto que nem lá nem na Normandia é direito sustentar a visada diretamente sobre o rosto de um inteiro desconhecido.

Mais tarde no trajeto, dois jovens efeminados e uma moça de cabelos coloridos (que parecem saídos dos subúrbios de Berlim em um filme B de algum diretor desconhecido) conversam como se o dia não houvesse descido. Divertem-se em alguma discussão que o estranho jamais estará apto a introduzir-se. Divertem-se, mas parecerão dispostos a brigar ao rapaz que chega pela rua que vem da praça. E seja qual ou quais forem os motivos de uma possível briga, não será gratuito e nem poderia ser. Contornando o Largo do Arouche pela Av. Duque de Caxias o passante será convidado a parar-se diante de um solene mural na av. São João onde a mesma está estampada numa fotografia da década de 50. Lê-se logo acima: “Departamento de polícia de proteção a cidadania”. Os tempos, em todo caso, são outros. As pessoas de terno e chapéu deram lugar a moicanos, travestis, piercings, bonés. Também os bonés que se espalham pelas cabeças locais irão causar estranheza ao gentio abismado, tal qual alguma religião ortodoxa se fizesse presente na distância que separa esse homem da cidade sob seus pés e sobre sua cabeça.

É, sem dúvida, uma cidade hostil. Mas isso tem como mérito, a honestidade. Hostil é como todas as cidades são e como não poderiam jamais não ser. Caso esse evidente na justa necessidade de uma polícia para proteger a tal - a “cidadania”. Não que seja necessária a visão dos dois pombos se alimentando dos pequenos pedaços brancos espalhados num vômito rosado, conforme verá nosso homem ao retornar de seu passeio pelo outro lado da mesma av. Vieira de Carvalho que o haveria levado mais fundo na celebre São João não fosse a pressa ou a necessidade de dar tapas contra o tempo, para se compreender o dado. Nem que essa realidade justifique qualquer ato desumano e impensado que atente contra a paz de espírito de um outro cidadão qualquer. Nada obstante, a hostilidade que a cidade carrega é resultado do simples fato de haver uma estrutura tal como “a cidade”. E não é por conta das múltiplas identidades que ali se encontra, como se a diferença fosse sempre sinônimo de guerra iminente. Tampouco haverá culpa alguma subjacente ao fato de ter sido construída toda em substância tão dura como o concreto. A hostilidade da cidade vem, de outro modo, da indiferença.

Se é possível transitar por toda extensão visível de asfalto é porque o valor chapado de uma nota de 50 reais é o mesmo para o comerciante ávido como para o bandido a espreita, para o taxista esperto como para o mendigo desesperançoso. E aqui ou ali se compra com a mesma retórica não importando de que mão veio o dinheiro, nem para que mão irá.

O estrangeiro, pois, perceber-se-á estranho toda vez que saindo de um lugar seu de origem, onde já naturalizou todas as formas de relações confusas como aquelas às quais o mesmo se absteve de dar nomes em terra natal, chegar a uma cidade outra – como aquela ou qualquer uma – onde o direito a cidadania é um bem em permanente vigilância, como a carteira no bolso de trás da calça que o paranóico apalpa a cada minuto, pois dá mais valor ao dinheiro que traz no bolso que à vida que pulula diante dos olhos. O que dizer, então, dessa paranóia necessária chamada polícia que qualquer cidadão ostentará como título de ordem a cada vez que um desafio qualquer lhe for posto ao alcance? Dir-se-á que é coisa da cidade, lá onde o grito é um desabafo tanto quanto um alarme, um comando ou uma forma de arte.

segunda-feira, 11 de outubro de 2010

Da primeira vez que invejei um cego.

Esperava o ônibus numa das largas calçadas da Central do Brasil. Disposto na direção oposta à que vinham os carros na grande avenida, percebi que me situava na região central de um longo corredor que se formava. De um lado havia os “atentos”. Pessoas que se alinhavam rentes ao meio-fio - com olhares fixos no horizonte, por onde chegariam seus ônibus como que numa aparição maquinal – e se perfilavam à direita do corredor (devo dizer, com o perdão do trocadilho: pessoas direitas). Do outro lado, criaturas mais vagas tomavam forma no semblante impreciso de sua atenção. Esperavam também seus ônibus, certamente, afinal é essa a lógica daquele espaço instituído, o “ponto de ônibus”. Mas das suas expressões empedernidas por fora, pude julgar – a partir de um método especulativo qualquer que me é peculiar – que por dentro faziam-se da embriagues de um pensamento volumoso: “pensavam na vida”.

Eu, que me colocava no meio daquela disposição diligentemente conceituada por mim, vi-me obrigado a conceber que também naquele centro havia um sentido; e se eu me diferenciava – em minha “embriaguês” de pensamento – dos à esquerda, era porque eu, na forma inversa daqueles que pensavam na própria vida, pensava mesmo era na vida dos outros. Afinal, foi nesse eterno diálogo entre um individualismo do "eu" absoluto com a sensibilidade humanista de um olhar de alteridade que o caso que sucedeu se desenrolou. Meus pensamentos foram interrompidos por um homem que caminhava pelo “corredor” há alguns metros à frente. Era cego e quicava seu cajado pelo chão, sistematicamente, à direita e à esquerda, enquanto vinha em minha direção. Contudo, tinha um aspecto viril como poucas vezes antes eu houvera visto em um cego; os braços fortes lembravam os de um estivador, ainda que a delicadeza com que empunhava o cajado desmentisse a altivez do corpo sadio - era mesmo um homem cego. Vinha sem os tradicionais óculos escuros e de olhos abertos - bem abertos - em plena consciência de sua cegueira e nenhuma vergonha daqueles dois inúteis que eram seus olhos. Logo que entendi do que se tratava dei um passo ao lado (à direita), posto que estava na rota de colisão de uma criatura que não me podia ver. Talvez tenha escolhido a direta por uma questão prática: tão logo meu ônibus chegasse, estaria mais próximo e seria menos custoso alcançá-lo. Aliás, pra mim, era essa mesma praticidade que definia os daquela coluna. Mas assim que o homem cego passou por mim (a meio metro de distância, talvez) uma belíssima mulher se colocou entre nós em alta velocidade, fazendo-me dar um passo para trás de sobressalto e esbarrando no cego que não pode prever sua presença repentina e quase se estabaca no chão – a destreza do corpo bem trabalhado, no entanto, foi suficiente para que o homem fincasse no chão o cajado e recuperasse o equilíbrio das pernas. A mulher seguiu dando as costas ao cego e, assim como o homem que quase derrubou, nem tomou conhecimento da cena. Ignorara completamente a deficiência do homem como também o homem ignorava a beleza dela, a mulher. Mais uma vez, dois tipos apareciam na minha concepção de mundo porque eu julgasse todos o tempo todo e não pudesse parar de fazê-lo sem que isso me custasse o sofrimento esculpido em um certo vazio que preenche toda espera: Um introspectivo – o cego -, contido hermeticamente em universo próprio e despreocupado com as ações instantâneas que surtiam segundo após segundo no mundo material (de certa forma, era como os da esquerda, os que pensavam na vida e concediam à espera do ônibus apenas uma atenção secundária que deveria despertar apenas quando o ônibus chegasse afinal). A outra, absolutamente externa a si, deslocava-se da coluna da esquerda à da direita porque seu transporte acabara de ter-se estacionado no ponto. A pressa era o aspecto externo que completava a transição em que se tornava agora, a mulher, um daqueles pragmáticos à direita, que se fixavam com vista única em um objetivo. Coincidências à parte, não poderia defini-la, ali, de outro modo senão por aquela pura exterioridade que declarava sua aparência – beleza física. E era também esse aspecto que fazia tocante a mim aquela criatura.

Falavam por mim, então, os desejos de um “eu” sem fronteiras, que era tudo e queria ser todo o resto; e se martirizava pela distância que se impunha entre o desejo de possuir aquela mulher (e todas as que fossem como ela belas) e a impossibilidade patente de efetuar a posse. Senti-me fraco. Um porque me teve mais apelo aquela volúpia que certo humanismo que me deveria comover com a cegueira e a vulnerabilidade do homem naquele instante. E outro porque, ainda que eu fosse o mais humano dos homens e minha generosidade ultrapassasse o vigor incessante de minha libido, eu jamais teria em mãos os contornos sutis daquela beleza - aprofundada pela superficialidade dos meus imperfeitos instintos - que era a mulher.

Senti o peso daquele desejo e desejei não desejar.

Foi nessa hora que me reportei à indiferença do cego para com a beleza que o havia quase jogado ao chão - como se não houvesse qualquer diferença se o corpo que o tocara fosse o de uma deusa encarnada ou o de um suíno mal adestrado – e foi essa a primeira vez que invejei um cego.

terça-feira, 28 de setembro de 2010

M93

Entrar no ônibus parece-me a parte mais difícil embora também seja difícil sair dele. Mas como tudo na vida, pior que o golpe de misericórdia é a tortura diligente e silenciosa que procura amparo psicológico antes do problema físico. Em todo caso, entrei. Contive-me lá dentro como o líquido se contém na garrafa. Não me era possível sair a não ser pelo único lugar que define a saída no distintivo de uma garrafa: o gargalo.

O ônibus andou uns poucos metros e parou diante de um quilométrico engarrafamento e só a partir desse dia me foi possível compreender porque assim o chamam. Estávamos todos enfileirados no trajeto de alguma indústria perversa. A maquinária daquele organismo arrastava, a lentos passos, umas milhares de unidades da produção com destino aos seus respectivos mercados. Continha-nos grossos recipientes feitos de vidro e metal, e tirávam-nos, naquela tormenta de pequenos incômodos, o mais ínfimo nódulo de uma possível individualidade. Tínhamos todos a consistência dos líquidos que são passíveis de conter-se em garrafas. Como refrigerante quente, embora não tão doce, borbulhavamos apenas quando abria-se espaço para o que de nós tornava-se gás. Quão triste era quando essa minha ingênua metáfora ganhava dimensão literal... provável que eu nem devesse tê-la armado, mas, de fato, dentre os incômodos que se poderia listar seria esse o que melhor definiria a ocasião em acordo com a analogia em que pessoas comuns se constituíam da mesma matéria de um quente e pouco agradável refrigerante.

Eu olhava pela janela. Apenas aos olhos o ambiente me tinha em certo conforto. A fumaça negra que se espargia lá fora encatava-me pela soltura e eu, ali, desejava um pouco de dióxido de carbono como um peixe que tem pulmões e espreita no fundo do lago deseja o ar da superfície. Eu só olhava pela janela enquanto o ônibus permanecia parado. Andava, é verdade, mas permanecia parado - assim como a Terra que gira abaixo dos pés, e permanece, também, parada. E Newton não explicaria isso melhor que o senhor ao meu lado, que reclamava de 4 em 4 minutos que iria chegar atrasado ao trabalho.

Uma sirene enlouquecida fazia-se baixa e aos poucos inundava o ambiente. Avolumava-se e preenchia, pelas pequenas frestas, aquele recipiente no qual eu estava contido. Era um som louco de fato. A imagem que suscitava nao podia ser senão a de um demente clínico a gritar pedindo passagem ou anunciando o apocalipse. Aos poucos, conforme aqueles latidos alucinados da sirene ganhavam a imagem inquieta da ambulância, os carros assumiam as personalidades de seus donos e tentavam ajeitar-se para dar passagem ao veículo berrante. Percebi, então, que todos no ônibus olhavam pela janela com semelhante obstinação. Senti-me parte daquela grande massa uniforme que era o líquido que o onibus continha. E pude sentir, com a unidade perene dos sentidos coletivos, o que se passava com toda a gente. Penetravam na ambulância e com diligência insensata mapeavam todas as possibilidades. Descreviam com imaginação cada traço oculto dos habitantes daquela viatura. É claro que alguns deveriam duvidar que houvesse ali um doente - esses preferiam supor a desonestidade do motorista que usava a sirene como medida de por-se mais alto. Mas a grande maioria, aqueles dos quais eu fazia parte, o grosso do líquido por assim dizer, olhavam o sujeito na maca na luta contra uma morte prematura e o invejavam. Senti também essa inveja, mas no surto de minha conspícua racionalidade fiz-me recobrar o panorama da coisa. E daí que ele estivesse confortavelmente deitado, que o seu carro andasse em velocidade superior a todos os outros e que ele, possivelmente, chegasse ao seu destino antes de qualquer um de nós? O seu destino seria, de qualquer forma, a ala de emergência de um mórbido hospital ou um sombrio necrotério – enfim, a morte.

E enquanto um sem rosto ao meu lado se ajeitava e eu sentia o desconforto lancinante daquela garrafa, dissolvia-se a minha racionalidade pretensa e insensível. Transformava-me, então, no quinhão indeciso de um bruto coletivo e novamente pude sentir o torpor palpitante daquele líquido organismo que me envolvia.

A morte. Ah! A morte! E que inveja eu sentia daquele sortudo.

domingo, 12 de setembro de 2010

Enquanto isso, na sala da Justiça...

Entrou na van um garoto segurando um pacote de papel daqueles de uma famosa rede de lanchonetes americana. Sentou-se na primeira fileira, logo quando puxou para fora do pacote uma caixa que abriu, sacando dali um sanduíche gorduroso. Nem precisou dar a primeira mordida e o cheiro já se havia espalhado pelo automóvel – o ar condicionado pedia que as janelas se mantivessem fechadas.

Alguns minutos depois, uma senhora, que se localizava na fileira logo atrás da do rapaz, comentou:

- O senhor não pode comer na van.

Um pouco confuso com a denominação de “senhor” – que se usava ali apenas como medida de formalidade prática, já que o menino não tinha mais que quinze ou dezesseis anos – e ofendido com a repreensão da senhora, devolveu-lhe:

- Como não?! É o que eu estou fazendo agora.- e desferiu uma mordida performática no sanduíche, enquanto puxava uma batata frita de dentro do saco, que iria por na boca ainda em processo de mastigação.

A senhora se articulou cheia de razão, revelando o inconveniente e a ética da questão.

- Isso é um absurdo! O sanduíche é seu, mas o cheiro... O cheiro temos que agüentar nós todos aqui dentro, né? Você não percebe o quanto isso é incômodo?

- É só cheiro de hambúrguer! – retrucou o garoto.

- Ninguém é obrigado a sentir esse cheiro. Estamos dividindo um espaço aqui! – disse a mulher e, não bastasse o litígio que já impregnava o ambiente muito além do cheiro do hambúrguer, o rapaz – fundamentado naquela sentença que diz que “a melhor defesa é o ataque” - resolveu que iria chamar atenção para uma característica física da mulher; e retomando a pauta “divisão do espaço” levantada pela senhora, declinava o processo em favor do acusado, fazendo notar uma nova disputa que até então não se tinha em relevo.

- É, estamos dividindo o espaço. A senhora reclama do meu sanduíche, mas se a senhora hoje ocupa tanto espaço (e, daqui, eu especularia coisa de um lugar e meio no banco da van) é porque já deve ter-se atracado com alguns desses nos últimos anos, pelo menos.

A senhora cerrou os olhos fingindo não acreditar que houvera sido chamada de gorda, ofensa que seria pouco eficaz se ela não o fosse de fato.

Um burburinho especulativo começava a tomar conta do veículo, cujo motorista tentava permanecer imparcial – e nesse caso a imparcialidade era, e somente poderia ser, o silêncio.

- Isso não é justo. – Levantou a voz a senhora, mais uma vez. – Ele me chamou de gorda! Vocês ouviram isso? – Apelava para a opinião pública agora que havia sido deliberadamente ofendida.

O rapaz recuou na ofensa e tentou defender-se com um pouco mais de diplomacia, coisa que se fazia inexistente nas primeiras investidas do menino que advogava em favor de causa que ele próprio parecia considerar banalíssima.

- Minha senhora, estamos dividindo um espaço, isto é certo. Mas o cheiro do meu hambúrguer deveria incomodar tanto quanto uma conversa despretensiosa, já que o cheiro se espalha no ar conforme o som. E se o cheiro nos incomoda aos narizes, do mesmo modo o som nos deveria incomodar aos ouvidos. Vá lá que a senhora não goste muito do cheiro do sanduíche, mas eu poderia, por exemplo, não gostar de ouvir esse casal do meu lado falando de seus planos para o almoço de amanha, mas não vou também criar caso por isso, pois o fato é que se o cheiro de comida incomoda alguém, muito mais que ele, incomoda é essa discussão descabida que acabou com toda a tranqüilidade dos passageiros, e aqui me incluo entre estes.

O rapaz foi bastante preciso na sua argumentação – de se admirar para um garoto de sua idade, cabe dizer -, mas na ânsia de colocar seu ponto-de-vista, acabou por criar desconforto também no senhor ao seu lado, que minutos antes conversava com a esposa sobre o almoço que teria com a família e o chefe no dia seguinte. E nesse pequeno deslize estratégico, também o senhor tomou parte na discussão e ponderou sobre a argumentação do garoto:

- Veja lá, filho: Você está dizendo que cheiro e som são a mesma coisa e que incomodam do mesmo jeito?!

- E não incomodam? – disse o rapaz, respondendo com uma pergunta.

A senhora logo se pôs a bufar, ridicularizando a analogia referenciada pelo garoto: - Veja só querer comparar uma conversa miúda ao cheiro empesteante do hambúrguer...

O senhor, então, tomou fôlego para argumentação e iniciou: - Pra inicio de conversa, o cheiro do sanduíche é orgânico.

- E o que exatamente isso quer dizer? – perguntou cepticamente o rapaz.

- Quer dizer que o cheiro que estamos sentindo e que chega aos nossos narizes é formado de pequenas partículas de substâncias que deixam o sanduíche e penetram nas nossas narinas e, portanto, no nosso corpo. Substâncias que fazem parte e são, de certo modo, o próprio sanduíche. Diferentemente do som, que é uma propriedade do espaço, digamos assim... Ondas que se propagam e são decodificadas pelos nossos ouvidos.

- Certo, então, Einstein! Quer dizer que se eu deixar o meu sanduíche intocado, cheirando ao relento até que todas essas “partículas” se soltem, ele vai desaparecer? Porque se são, mesmo, estas partes integrantes do sanduíche, isso é o que deveria acontecer quando todo o cheiro se dissipasse. E o que você me diz do plástico, da borracha e do metal, todos materiais não orgânicos que, ainda assim, têm cheiro? Não vale pra eles sua teoria?

O senhor deu um leve sorriso levando o braço novamente aos ombros da esposa (“donde nunca deveriam ter saído” – Pensou). Vendo até certa graça na réplica do garoto: leviana Mas lá com alguma presença de espírito; e furtou-se de respondê-lo, sobretudo, por julgar que a discussão era, muito além de imprópria, sem pé nem cabeça.

A senhora, tomada ainda pela dor da ofensa a que fora submetida cinco minutos antes, tratou de avivar o litígio: - Que garoto insolente. Depois de me chamar de gorda, deixar a van toda fedendo, ainda se acha no direito de falar besteiras como esta. – Reclamou ela olhando para aquele senhor que a havia defendido naquele embate, ainda que por mero posicionamento crítico.

Antes que a discussão fosse além, uma voz profunda e temerária se impôs a desavença e ordenou ao motorista: - Pare a van! – No que foi atendido de pronto. Todos se voltaram para o final do veículo, de onde se praticava aquela voz um tanto rouca (mas cheia de subtons complexos e dona de uma autoridade irretorquível), e se deram diante daquela figura austera, sob uma indumentária incomum constituída, em particular, por capa, botas e máscara, e onde no peito se estampava a logomarca do destemido homem-morcego. Como não fosse possível questionar a autoridade que vinha colada à voz, aos trajes e ao rígido semblante do herói, serviram-se todos do imperativo de que devia ser mesmo o Batman.

Após o silêncio seguido à parada do automóvel, o homem-morcego continuou, olhando diretamente para o garoto:

- Em primeiro lugar, você não pode comer dentro da van, especialmente com as janelas fechadas. O cheiro não só incomoda algumas pessoas como pode impregnar suas roupas. – tomou a capa nas mãos, levou-a ao nariz e completou: - Vejo só, o cheiro do hambúrguer entranhou na minha capa. Imagine você se eu estivesse indo diretamente para uma reunião com o comissário ou o prefeito... Seria realmente desagradável entrar na sala com esse cheiro de gordura na minha capa.

O rapaz, que ainda mastigava os últimos pedaços de seu sanduíche, permaneceu por alguns segundos com a boca aberta, por cuja abertura se podia ver, ainda, o bolo alimentar que se formava de forma irregular, quando teve a notícia, por parte do todo poderoso Batman, de que deveria sair do ônibus naquele exato instante.

A senhora, que ouvia tudo com um sorriso que ia de um lado a outra daquela boca experiente não apenas nas reclamações de direitos, como, provavelmente, nas largas refeições que fazia, comentou satisfeita e aliviada:

- Graças a Deus o bom senso venceu... – Mas antes que fechasse a boca, foi interrompida pelo homem-morcego que se dirigiu a ela assim: - A senhora, também, não tem o direito de ocupar tanto espaço. Então, a não ser que pague por duas passagens deverá se retirar agora mesmo junto com o rapaz.

Não se sabe bem se o super-herói sustentou aquela posição por força de um rigoroso senso de justiça em que declarava a senhora, de certa forma, culpada pela condição de sua estrutura corporal (certamente não levando em conta o caso de seu arqui-inimigo Pingüim, que ostentava uma volumosa barriga ainda que submetido, desde tão cedo, a uma dieta a base de peixes), ou se tomou a sentença como forma de amenizar a derrota do menino que, em um dado momento, lembrou-lhe a personalidade juvenil e arrojada de seu pequeno ajudante e afilhado Robin. Mas o caso é que nenhuma palavra, além das necessárias a definição das sentenças, foi dita a mais.

- Que absurdo.. – Sussurrou a senhora um pouco temerosa de uma possível reação do homem encapuzado. Levantou-se, fazendo menção de retirar-se, já que pagar uma segunda passagem seria assumir como culpa a condenação, pedindo passagem ao homem que se colocava entre ela e a saída. Como o corpo da mulher fosse desproporcionalmente grande em relação ao espaço que sobrava como passagem, teve o homem que descer da van para dar chance a senhora de se retirar do veículo sem que para isso fosse necessário passar por cima de alguém.

Curioso mesmo é que quando a van partiu, permaneceram no local não apenas a senhora e o garoto como também esse homem que havia descido para dar passagem a ela. Não se sabe se porque tivera chegado ao seu destino ou por receio do que pudesse fazer o homem-de-preto, tão sinistramente resoluto e imperturbável.

Os três se entreolharam e, assim, terminou a história; sem se ouvir reclamações de nenhuma das partes, do que se pode inferir que, mais uma vez, prevaleceu a justiça. Provável, ainda, que o homem-morcego tenha, antes do seu destino final, dado uma rápida passada na bat-caverna com vistas a trocar o uniforme que cheirava a hambúrguer. Mas certa mesmo foi a desconfiança em que restaram aqueles todos que testemunharam a cena: se era apenas um lunático fantasiado fora de época, ou se era, de fato, um moral e inquestionável Batman, obrigado a fazer as vezes de passageiro de van porque o batmóvel estivesse ainda em conserto.

sábado, 28 de agosto de 2010

Trompe le main

Mulheres lindas. Tudo que se movimenta no cenário urbano sobre duas lindas coxas. Vestidas a caráter, já que é o próprio cenário quem sugere o texto.

Secretárias, executivas, garçonetes...

Também as meninas. Perfeitamente ajustadas em suas roupinhas de colegial.

Desse modo elas se dispõem ao uso. Desse modo meu desejo as contempla: em plena abertura, ainda que em discreta observação.

Vestidas.

Aliás, eu nem nunca soube de caso algum onde o homem haja-se retirado da batalha após o inimigo despido. É de se supor – concluo – que pouco importa como elas são peladas.

Muito mais atento às silhuetas que ao código genético, meu desejo vai muito além de uma mera atribuição evolutiva, como a vontade de procriar. Meu desejo é desejo, antes de ter nome e antes de ser carne.

Mulheres lindas.

Lindamente vestidas.

Entre os ombros e os calcanhares, algum tecido que lhes caia sobre o corpo e que lhes esconda uma faculdade inata qualquer. Belas tetas ou uma bucetinha bem delineada.

Curvas.

E quando no momento da masturbação as realizo em uma imagem semi-sólida que se põe diante de mim, estão ainda vestidas. Despidas as faço apenas na medida do ajuste para uma penetração adequada e bem imaginada.

A imaginação deve seguir os desígnios da boa representação, assim como a pintura antiga. Parraso, por exemplo, fez de sua pintura o próprio embrulho, a própria imagem de que estava a pintura embrulhada. Ora, aquilo que se esconde também na imaginação é porque não há necessidade alguma de ser revelado.

Mas quem melhor pinta um corpo que se quer deflorado é quem sabe que a imagem transborda por todos os lados. E se algum pássaro bicou, de fato, as perfeitas uvas por Zeuxis pintadas, foi porque o espaço a volta se devia ter, também, muito bem representado.

Já eu tenho a imaginação débil. Por isso, sou obrigado a montar esse roteiro em que as moças são conduzidas sob argumentação razoável até o meu banheiro, onde a imagem tecida ao esforço da memória é situada pelo cenário tangível em que posso me satisfazer a portas trancadas.

É mesmo uma pena.

Meu desejo por elas é indissociável da imagem primeira, aquela em que não as tinha. Imagens inacessíveis ao contato do corpo declarado.

Na rua.

No ônibus.

No banheiro feminino, através da janela deixada pela porta entreaberta – E seria essa mesma a moldura desse quadro capturado. Não se poderia roubar a paisagem ao fundo sem que o contexto do desejo também se alterasse. Seria um outro desejo, portanto. Um desejo distinto...

Bem aventurados aqueles que se masturbam em público, pois, ali, a imaginação os toca na origem e na origem ela é também tocada. O meu pudor, no entanto, não me permite esse recurso hábil - embora o testemunho diga o contrário em meus registros escolares.

sábado, 7 de agosto de 2010

O Colosso de Rhodes

Entre julho e agosto daquele ano, qualquer um que circulasse pelos arredores do Castelo, desde o Museu de Belas Artes até o Tribunal da Justiça Eleitoral, teria a desfelicidade de encontrar a velhinha em questão. “Desfelicidade” não porque fosse velha e, certamente, não por desgosto a senhora – que tão mal não fazia a ninguém – mas pelo súbito questionamento ao termo humanidade com o qual se depararia um que fosse, assim,  afeito a questionamentos.

O andar vagaroso acusava a debilidade do corpo, que se mantinha arqueado numa rigidez tão plena que nos fazia imaginar os ossos petrificados na forma de parábola tal que o olhar da mulher não poderia subir acima dos ombros de um que alcançasse pelo menos um metro e setenta de altura. Mas era o aspecto ímprobo das roupas da senhora que dava a tonalidade miserável e a tez anti-social da personagem. De fato, abuso seria até mesmo chamar “roupas” àqueles trajes, que se constituíam de dois pedaços de tecido – possivelmente antigos lençóis, puídos pela usura do tempo – enrolados desde os ombros até a cintura, um de cada lado, de forma que se cruzassem ali na região dos quadris, descendo pelas pernas conforme alguma espécie de saia pouco ajustada. Do improviso oportuno, ainda que o tétrico e o trágico tão prontamente se exprimissem naquela figura – que tão engenhosamente ajustara as “roupas de cama” ao corpo -, sobrava-lhe alguma dose de comicidade e seria permitido até rir da senhora, não fossem os últimos traços de dignidade roubados por um único tablete de balas halls que a velha trazia não mão esquerda estendida, como se o oferecesse em troca de algumas moedas para as quais a mão direita se mostrava em espera, segurando, um pouco abaixo dos ombros, um copo plástico descartável.

Os cabelos brancos, que se podia pensar serem cinzas dado o estado de encardimento em que se encontravam, interrompiam-se nos ombros e pareciam ignorar os pesarosos movimentos da cabeça, petrificados tal como os ossos que sustentavam aquela carcaça. Os olhos baixos escapavam por baixo das pálpebras semi-cerradas e alcançavam timidamente os olhos dos passantes. Haveria o passante, no entanto, de fazer certo esforço e inclinar-se um pouco diante da senhora se pretendesse encará-la, quem sabe, em aceno de humanidade que se pediria acompanhado do gesto de colocar algumas moedas no copo que a mão segurava - e isso, ignorando o tablete de halls que se estendia junto à outra mão, como que oferecido como objeto de troca na transação que se sugeria. Então, a velha sacudiria – não sem alguma dificuldade – o copo em reposta de agradecimento e continuaria sua peregrinação na mesma forma esculpida em que o corpo se apresentava - duro como o mármore -, sem que os braços deixassem a posição do trato, estendidos até quando o caminho era vazio e silencioso – como a própria protagonista da história - numa tarde de domingo no centro do Rio.

O recurso era claro. As esmolas eram parcimoniosamente mendigadas, já que na mão esquerda o tablete de halls, visivelmente amarrotado pelo manuseio constante, se queria afirmar como produto de venda. Não era, e o mais insensível dos homens poderia reconhecer o mecanismo pelo qual a senhora intentava se resguardar de algum acanhamento de cunho moral. Bem, talvez não o mais insensível dos homens...

Certo dia, parou-se diante da velha um rapaz de terno e gravata com o rosto liso, marcado, talvez, apenas pela ingenuidade dos seus vinte e poucos anos, tirou do bolso a moeda de maior valor e depositou no copo da senhora. Mas antes que a cena estivesse terminada, surpreendentemente, o rapaz levou a mão direita ao pacote que se comprimia na mão esquerda da velha e segurou. A fotografia em que velha e rapaz compartilhavam estáticos o mesmo tablete de halls, dividido entre a mão esquerda da senhora e a mão direita do jovem, durou cerca de dois segundos, quando veio, então, seguida de duas ou três tentativas, por parte do jovem, de tomar o pacote da mão da senhora. A velha apertou como nunca aqueles dedos frágeis e inflexíveis e reteve as balas na mão. Foi quando o rapaz se deu conta do mal entendido, largou o pacote em questão e seguiu constrangido o seu trajeto até o escritório em que trabalhava. Constrangido não pela luta que se teve em segundos pelo pacote de balas, mas pela ausência de bom senso que o assaltou naquele momento. Afinal, aquele tablete de halls não era – ou não deveria ser – apenas mais um produto para venda através do qual esmolaria a velha, recebendo ofertas superestimadas por um mísero pacote de balas que não valia, de fato, mais que alguns centavos. Era ele, vertical e ereto como se queria a velha, o próprio símbolo de sua dignidade perdida. Um correlato material não apenas da juventude, que se esvaiu no corpo agora arqueado, mas a estandartização de uma moral empedernida, vazia e sem sentido; pilar de sustentação de um último sopro de consciência da velha, que se não era louca, lúcida tampouco era.

quarta-feira, 23 de junho de 2010

O velho e Omar

Esquentava as mãos sobre o latão na fogueira que se sustentava ao custo de folhas de jornais velhos e dos pedaços de madeira arrancados aos antigos móveis, abandonados bem ali, naquele beco imundo. Permaneci em silêncio até que se aproximou um senhor, cuja branca barba atravessava a linha do pomo-de-adão, dobrando-se ao peito coberto com o grosso tecido de um casaco escuro. Cumprimentou-me com um aceno sutil da cabeça e pôs suas mãos sobre o fogo em compassiva atitude, compartilhando não apenas o calor necessário ao corpo enrijecido pelo frio intenso, como também a desavença com o mundo que mantinha a margem os freqüentadores daquele beco.

- A noite vai ser fria – comentou o senhor dando espaço a um assunto qualquer, como quem admitisse o diálogo antes mesmo da pauta sugesta.

- O dia já está frio – eu retruquei, lógico e agudo.

O velho riu-se, comedidamente, e me perguntou as horas. Puxei a manga do sobretudo, confirmando que já se passavam das 4 da tarde, no que fui imediatamente agradecido por ele, que logo em seguida comentou:

- Nunca te vi por aqui.

- Eu não costumo entrar por esses becos, é que hoje tive uma notícia ruim e resolvi dar uma volta pelo bairro. – respondi certo de que seu comentário implicitava a pergunta qual minhas palavras fizessem saciar.

O senhor permaneceu em silêncio. Mas o silêncio falava por si; tinha os ouvidos abertos e auscultava minha dor com todo coração. Aliás, pedia-me que desabafasse, pois éramos “Irmãos de fogo” e dividíamos juntos o calor, o frio e as dores. Afinal, por baixo de uma barba tão volumosa, devia mesmo haver um espírito nobre e doce, conforme as lendas que nos descrevem esses sábios.

Expus, então, o que me incomodava: - Não existe justiça no mundo?! Não se vestem mais os homens com o mesmo traje. A humanidade que nos devia cobrir deu lugar às fardas e hierarquias da força e da desproporção.

O velho olhou-me nos olhos e consentiu, lacônico: - É... Mundo cão!

Comecei, então, a contar-lhe o caso: - Fui demitido. Sem mais nem menos. Chamaram-me no departamento de recursos humanos e me disseram que os meus serviços não eram mais necessários. Que humanos são esses se os seus recursos são sempre os mais sórdidos? Os meus serviços não são mais necessários?! Ora essa! Nunca precisaram, de fato, de mim. Não é por necessidade que se sustentam relações como a de empregado e empregador. As pessoas precisam trabalhar, ganhar dinheiro, comprar coisas. Assim fazem trabalhos desnecessários produzindo coisas inúteis que serão compradas por outros, que produzem outras inutilidades. Então, um dia alguém chega e diz que a inutilidade daquilo que você produz é ainda mais inútil que todo o resto. Te joga na rua sem a menor culpa.

O senhor permaneceu recluso numa compostura honesta e comedida. Olhava para o fogo e dava-me de esguelha a atenção que minha história pedia. Eu continuei:

- Justiça. Justiça! É isso que falta ao mundo. Se os homens fossem mais justos... Afinal, de quantas coisas precisamos pra viver? É mesmo necessário que todos trabalhem o tempo todo? Claro que não! Bastava um revezamento planejado e trabalharíamos todos no máximo 3 meses por ano, dividindo tudo igualmente entre os homens, todos os homens. Isso sim seria justiça. –

E me excedendo, como que atribuindo necessidade maior que aquela realmente disposta sobre a atenção que o homem me dava, perguntei-lhe: - Justiça! O senhor sabe lá o que é isso?

Virou-se na minha direção e começou uma história: - Li certa vez uma história sobre um antigo reino em que certo ladrão, tendo o olho furado, acidentalmente, por um tear enquanto invadia, na escuridão da noite, uma fábrica de tecidos (por engano, já que queria, de fato, era roubar a loja de um cambista), havia reclamado justiça ao rei, porque cego de um olho não poderia agora cumprir com perfeição seu ofício, o de ladrão. O rei, comovido com a dor do ladrão, mandou que chamassem o tecelão, dono do estabelecimento, e exigiu que lhe furassem um olho para que assim se re-estabelecesse a justiça. O tecelão disse ao rei que precisava dos dois olhos para exercer seu trabalho, já que o trabalho lhe exigia aptidão com as mãos e também com os olhos, mas comentou sobre um seu vizinho que era sapateiro remendão e que, portanto, não tinha necessidade os dois olhos para o cumprimento do seu trabalho. O rei, então, mandou que chamassem o sapateiro e furaram-lhe um dos olhos. E a justiça foi feita, concluía a história – disse o velho.

Demorei um pouco a assimilar esse gênero de “sabedoria” Gibran Khalil que saltava por entre os pelos da barba do homem e, por fim, concluí eu mesmo e comigo em silêncio: “velho de merda”.

quarta-feira, 9 de junho de 2010

O caminho das pedras

Andei pensando. Literalmente.

Não sei o que é, mas me faz sentir bem.

Ignoro o percurso, porque enquanto caminho sou todo cérebro.

Há quem já tenha dito que no andar alguma transcendência toma forma no espírito e é apenas enquanto estamos andando que a existência se mostra a nós por completo. Bom, há também quem diga o contrário.

Os que meditam, por exemplo, dizem do corpo imóvel a urgente possibilidade do encontro com o superior – estado da alma que escapa a esses brutos que por aí se mexem à toa.

Mas se assim fosse, creio que haveria muito mais mérito nas estátuas vivas que o que de costume atribuímos a elas - essas que assombram nossas praças pintadas em pelo, muitas das vezes segurando um livro atilado em um tecido da cor da tinta que trazem no corpo e fechado, como se a leitura ultrapassasse a razão: - “Estátuas não lêem!”, bradam elas em silêncio, com o corpo imóvel e os lábios batidos, mas infladas daquela mesma sabedoria que os monges budistas se valem no exercício da meditação.

Ficar parado? Que merda de sabedoria é essa?! Não me admiraria se o Buda fosse ainda mais gordo que o que se vê naquelas estatuetas, embora isso também não seja tão provável.

Por isso, eu ando. E nem por isso limito a consciência, que trabalha tangente ao corpo em suas próprias demandas. Quarenta minutos à fio, até que cansem as pernas; porque a mente não pára e tem vida longa muito além desses músculos mecânicos, motores; e anda sozinha na periferia do olhar vagabundo, compreendido entre o trajeto do corpo que guia e as não-bordas que à volta se quase enxergam.

Filosofia de vida, eu diria. Andar pensando (ou seria pensar andando?). Ainda que possa dar nota aos modelos que passam, ou parar pra tomar um açaí (caso tenha dinheiro), é o andar quem descreve a atividade.

Rezam, os mais comprometidos com a filosofia, que se deve sempre andar sem destino.

Eu, por acaso, parei na frente desse puteiro. Um dos mais sujos da cidade. Mas o que não tem brilho na face compensa no preço. Agora, as protagonistas são as pernas de terceiras. Verdade que ainda estou sóbrio demais pra encarar uma dessas...

Enquanto isso, escrevo.

terça-feira, 20 de abril de 2010

Fênix Hotel

Entraram pela porta que, desde a rua, conduzia esses amantes despatriados até o salão principal do hotel. Ele, cabelos grisalhos, pele castigada e abdômen saliente. As marcas ao redor dos olhos sugeriam-lhe a idade de cinqüenta e poucos anos. Vestia-se respeitosamente, desde que os botões daquela camisa de tecido nobre mantivessem-se fechados até a gola. Ela, cabelos cacheados - deliciosamente soltos e leves -, pele branca e de textura suave como a do açúcar que cobre o bolo das noivas. Tinha olhos negros profundos que lhe davam tonalidade misteriosa, embora, ainda assim, não fosse provável julgar, desde uma primeira vista, que já houvesse ela alcançado a maioridade.

Andaram até o balcão, que se dispunha ao centro do salão, e dirigiu o homem a palavra à recepcionista: “Queremos um quarto.” Subiu os olhos até o dono da voz que interrompera seus pensamentos ociosos naquela madrugada de pouco movimento no centro do Rio de Janeiro (e especialmente naquele estabelecimento), e vasculhou com um vagar escrupuloso de olhar - que ia das sombrancelhas cinzas e grossas do respeitável senhor até a sapatilha vermelha da pequena que, timidamente, se recolhia ao seu lado - aquele casal inoportuno que buscava abrigo para uma noite de 4 horas (talvez menos). Não satisfeita com a visão que teve, a mulher ao balcão voltou os olhos abaixo e se reteve por um breve minuto seu (e quem há de negar que mesmo a cronologia mais diligente tem duração distinta para cada indíviduo), adiando a resposta que esperava o casal. A mulher, que se protegia atrás de um uniforme asseado e justo composto por tailleur e blusa de seda, tinha olhos redondos e grandes, boca larga e lábios grossos, e um nariz abatatado que combinava com as bochechas gordas. Gordas como, aliás, eram os braços, o rosto, o pescoço e o busto, ou seja, todas as partes que se punham à vista. A frase que proferiu logo em seguida, no entanto, não era a resposta que esperava o homem, mas uma pergunta que causou constrangimento irrevogável para os dois que estavam de pé: “A menina possui documento de identidade?”

A preocupação era clara. O homem era velho demais para a menina que, provavelmente menor de idade, havia sido arrastada para lá por aquele velho sem coração: perverso, calculista e imoral – sobretudo imoral. Mas o julgamento da moça atrás do balcão logo se viu ameaçado, por conta do movimento que fez a menina. Puxou da bolsa uma carteira da qual tirou um documento verde e com graças de autêntico. A recepcionista alisou o rabo de cavalo com a mão direita - movimento pelo qual se pôde inferir a aspereza do cabelo esticado pela escova - e com a mesma mão tomou o documento da menina e se parou nele com cuidado. Leu o campo que indicava a data de nascimento. Uma, duas, três vezes. A menina havia completado os dezoito anos há coisa de duas semanas atrás. O que não pareceu suficiente para a apreciação discriminativa e “moralmente sólida” da senhora que guardava as chaves e liberava os quartos. Devolveu a identidade à menina e se dirigiu ao homem, pedindo-lhe também o documento. O homem se surpreendeu: “Isso é mesmo necessário?” Do que teve em resposta: “Senhor, é o procedimento padrão. Eu não posso lhe entregar a chave do quarto sem isso.” O homem puxou do bolso, contrariado, a carteira, de onde tirou o documento e entregou à mulher.

A senhora leu com o mesmo atilamento de antes, contou alguma coisa nos dedos da mão direita e devolveu o documento ao senhor com uma posição resoluta e irrevogável: “Senhor, eu não posso liberar um quarto.” O homem avivou o sentimento de espanto que o assaltara há poucos segundos e retrucou já com certa indignação na voz: “Como assim você não pode liberar um quarto? Qual é o problema?” E a mulher: “Senhor, o senhor tem quarenta e sete anos e a menina apenas dezoito. Não posso entregar a chave a vocês. Não seria uma coisa legal da minha parte.” A menina permanecia calada e imóvel, encostada sutilmente ao corpo dele que teve em resposta: “A senhora não sabe o que está falando. A menina tem dezoito anos. É perfeitamente legal que aluguemos um quarto para o fim que seja. Sinceramente, não entendo essa sua cerimônia.”

A essa altura a situação era insuportavelmente constrangedora para a menina, que além da repressão corrente que já sofria “lá fora”, por se haver envolvida com um homem mais velho, sentia-se agora impotente sob os auspícios e o julgamento de uma senhora que nunca antes houvera visto. A mulher detrás do balcão, então, solicitou que os dois se retirassem dali, porque ela não lhes poderia alugar quarto nenhum. Ele, que poderia simplesmente ter tomado o rumo de um outro hotel, não o fez porque não aceitasse estar a mercê do julgamento individual e arbitrário de uma mera recepcionista de hotel. E foi enfático ao dizer à senhora que ficaria ali até que lhe entregasse a chave. A senhora, então, endureceu a voz com que falava ao recalcitrante e disse: “Se o senhor e a menina não se retirarem, vou ser obrigada a chamar a polícia” O homem se riu - ironicamente, e com alguma artificialidade, mas falso que fosse ainda assim era um riso: “Pois a senhora chame a polícia agora, porque isso é um grande absurdo. Com que direito a senhora se põe a julgar sermos dignos ou não de alugar um quarto aqui? Quem você pensa que é?” Foi a primeira vez que ele a teve tratado por você e essa informalidade talvez tenha ofendido mais a mulher que o nervosismo e a agressividade que ele impunha aos termos. Nesse instante ela se levantou, tomou um gole de ar profundo ao peito e discursou com gravidade: “O senhor pode tentar tomar a chave a força ou sair direto pela porta por onde entrou. O caso é que de boa vontade não vai conseguir quarto nenhum. Toda vez que vejo um homem sem escrúpulos como o senhor eu sinto não poder fazer nada para ajudar pobres meninas com essa. Provável que o senhor saia daqui e arrume um quarto em outro lugar em que os funcionários não sejam tão corretos e guiados por virtude moral como a minha, mas quanto a isso, eu nada posso fazer. Mas do que depender de mim, o senhor não vai estragar a vida dessa coitada inocente que veio debaixo das suas asas.”

A coisa, agora, alcançava um ponto sem volta. Não seria possível dizer que a mulher, cheia de vigor de espírito e senso de auto-conduta moral, não estava lá na sua razão. Tinha uma razão bem sua - isso é certo. Mas tão prontamente a desobedecesse, aí sim sua atitude poderia ser tomada por imoral, posto que a moral que tinha não a pudesse ignorar. O homem, cujos quarenta e tantos anos não foram suficientes para blindá-lo dos conseqüentes transtornos causados pela irresolubilidade da situação, não menos errado se poderia julgá-lo. Nada que fizesse ali estaria fora da ordem da legalidade, já que sua companheira chegara àquele local por vontade própria e espontânea, mas isso, e ainda que houvesse sido a menina coagida de alguma forma, quem saberá ao certo? Tanto faz como tanto fez se a sociedade em questão julga seus membros aptos às escolhas tais como fazer sexo ou eleger um presidente a partir dos dados dezoito anos, assim como se declarava nos documentos daquela.

E justo quando a hostilidade insurgente se fazia epigráfica diante das circunstâncias, foi quando a menina puxou pelo braço seu parceiro e disse as suas duas primeiras palavras desde que adentrou ao recinto: “Vamos embora!” E não como nota em defesa do homem, que transgredia talvez algum preceito moral daquela sociedade antiquada, mas é de se questionar se aquela atitude sensata que a sobejou, qual seja a de anunciar retirada diante de disputa tal em que se não pode haver vencedores, não justificava que uma pessoa (assim munida de razão e bom senso) não fosse suficientemente capaz de bem escolher o local, a hora e com quem fazer sexo – ainda que seus escolhidos tivessem já os cabelos desbotados pela ação dos anos...

Mas difícil mesmo é imaginar como seria o evento sexual em questão depois de uma preliminar tão desgastante como aquela.

quinta-feira, 25 de fevereiro de 2010

A existência limita

- Me fala mais sobre você.

- O que você quer saber?

- Tudo... quer dizer, qualquer coisa.

- Sou atriz.

- Sério?

- Não, tive vontade de dizer isso agora.
Na verdade sou um pote de biscoitos.

- Sim, que você é um pote de biscoitos eu sei.
Posso ver. Mas quero saber mais; o que te desafia?
o que você tem dentro?

- Teria biscoitos se você não os tivesse comido.

- Eu não falo disso. Quero saber o que você tem dentro do
dentro; a sua essência. (Adomais, aqueles biscoitos
estavam velhos).

- Desculpa, mas como pote de biscoitos eu costumo rejeitar
questões existenciais. Mas você pode dizer que além
de guardar biscoitos sou uma obra de arte.

- Uma obra de arte? E porque você acha que eu poderia dizer
uma coisa dessas?

- Eu sou uma obra, e isso é fato. A parte da arte, você pode julgar, pois, sou vísivel; tenho apelo estético. Embora todo esse engajamento para com o belo esteja voltado para o banal de guardar biscoitos, há que se querer minha presença. Senão os biscoitos poderiam perfeitamente permanecer em seus pacotes, como produtos consumíveis que são. (E se estavam velhos você não os devia ter comido. E, além de tudo, "do cavalo dado não se olha os dentes")

- Essa é a sua motivação? “Há que se querer sua presença”? “Ser” pelo simples desígnio de “ser visto” te basta?

- Não, se existe motivação aí deve ser invenção sua. A minha deve se apenas guardar biscoitos. Melhor que isso, eu não tenho motivação, sou um objeto desmotivado, que guarda biscoitos por ofício e não por motivo.

- E isso te incomoda? vc queria ser outro, outra coisa? Atriz?

- Eu não queria nada, não tenho nem motivos pra querer. Talvez, se eu atriz fosse, minha maior motivação fosse interpretar um pote de biscoitos; captar, em um único momento vivo, toda a morbida desmotivção de ser um pote; ou não ser nada. Sendo atriz ou pote de biscoitos, não há porque querer ser outro. E se a atriz interpreta o pote ela só o pode fazer sendo atriz. Já eu, como pote que sou, não interpreto, me foge essa capacidade. Tampouco desejo ser outra coisa; talvez seja essa uma característica inerente aos potes (e falo apenas pelos de biscoitos, já que só posso falar pelo que sei), somos independentemente de desejos, vontades e afins. Mas e você?

- O que tem eu?

- Qual o seu “dentro”, sua “essência”?

- Eu costumo dizer que sou um dragão.
(Apesar do seu tom irônico)

- Metaforicamente?
(A ironia fica por sua conta. Como pote de biscoitos que sou, a ironia também me foge, como a paciência parece também muitas vezes querer fazer)

- Não. Sou um dragão de verdade. Cuspo fogo pelas narinas e aterrorizo vilarejos em filmes e fantasias. Não sou uma metáfora porque existo. Talvez eu seja um símbolo, ou uma alegoria, mas eu existo mesmo que como dragão de fantasias e isso ninguém pode tirar de mim.

- E se você não fosse um dragão... o que gostaria de ser?

- Uma palavra. Fico sempre encantado com a abstração que se sucede ao grafismo ou ao fonema. Todo esse jogo de significar, que antecede a você enquanto pote de biscoitos ou a mim enquanto dragão. Embora eu, como bom dragão que sou, sou dragão antes mesmo da palavra que me diz: “dragão”.

- Pois eu não sou pote de biscoito antes da palavra me dizer? "Pote de biscoitos"?

- Certamente que não. Antes da palavra você é vidro. Recipiente, no máximo. Isso se entedermos essa palavra na acepção moderna da tentativa científica de submeter à palavra sua função. Mas pote de biscoitos você só é depois que a palavra biscoitos é apresentada e o jogo semiótico te agrega o valor de comando, de uso.

- Pois te digo que sou pote de biscoitos antes disso. Na motivação originária de meu artesão ou meu projetador. Em sua busca inegavelmente pré-racional pela concepção da arte ou por anseio ao lucro. Que não tivesse ele escrito em meu corpo, que não tivesse colocado nem um sequer cream cracker dentro de mim, ainda assim eu seria um pote de biscoitos. E todos somos capazes de diferenciar um “balde” de uma “lata de lixo”, ainda que lhes faltem os nomes e que estejam ambos vazios; e um que coloque seus biscoitos em um deles, ao invés de coloca-los num como eu mesmo, fardará seus biscoitos ao total desperdício. E você, como “bom dragão” que é, deveria se conter aos graves e sonoros grunhidos de sua classe e a destruir seus indefesos vilarejos nas fantasias e filmes, e não se meter a filosofo, que esses já vão muito mal com as limitações todas dos seres humanos, que dirá fossem, como você, répteis agigantados e falastrões.

- E, afinal, que diferença essencial mesmo é essa entre o balde e a lata de lixo? Não poderia, de qualquer modo, o balde fazer as vezes do pote de biscoitos ou de lata de lixo? Que postulado absurdo advindo de um pote de biscoitos é mesmo esse que me impede de ser dragão e filosofo a um só tempo?

- É justo a mesma diferença (ou uma diferença de mesma natureza, em todo caso) que existe entre a atriz que interpreta o pote de biscoitos e o pote. A diferença entre o balde, a lata de lixo e o pote de biscoitos é inquestionável, ainda que um porco como você se ponha a comer biscoitos da lata de lixo. Que um dragão filosofe nas fantasias dos outros, isso é coisa que eu não vou questionar. Mas na minha própria (e, sim, se um dragão me dirige a palavra é apenas porque eu, humilde “pote de biscoitos”, rumino também as minhas próprias fantasias), a conversa termina quando eu bem quero e o dragão que se cale ou procure objeto mais obtuso que ele próprio pra problematizar sua existência.(Recomendaria-lhe a colher de pau, não fosse ela, além do apetrecho que é para as cozinhas pacíficas, uma arma de empunhadura dolorosa e certeira contra aqueles que falam demais). Pois antes de importunar outros que, como eu mesmo, estão no mundo apenas por um capricho de uma natureza humana, fique sabendo disso: A condição é uma condição. Não porque a palavra significa, mas porque a existência limita.

sexta-feira, 5 de fevereiro de 2010

Bebo, logo existo.

Sem inspiraçao ou um problema epistemológico perfeitamente a mao, resolvi por em prática o metodo das últimas noites: uma bebida e um tema.

Poucos percebem que a bebida, por si só, é já um tema. No entanto, não deveriam se perguntar, aqueles que o percebem, sobre a probabilidade de serem ou não alcoolatras? De qualquer modo, hoje a coisa nao me parece lá muito afiada. Vou de Domecq: Se o resultado nao valer um suspiro interessado de minha catatônica intelectualidade, ou ao menos umas risadas, pelo menos nao doeu no bolso.

A consciência se move um pouco antes da marretada que irá levar: Domecq puro? Um limaozinho daria pra quebrar um cadinho o tino de "alcoolatra inveterado".

Não tem limao.

Gelo?

Nem pensar. Pior que a sina do bêbado imundo é Domecq aguado.

E o tema chega logo depois, como natural consequência da vida que levo e que insiste em tomar forma nas minhas consideraçoes filosòficas. Minha casa fede. É o mesmo cheiro que associaria a minha vida se eu pudesse colocar nestes termos o problema da existência. Minha vida fede. O cheiro do Domecq é o melhor cheiro que me passou pelas narinas o dia todo.

A bem da verdade, o nariz me é táo inutil quanto um abridor de latas para um aborigene na selva. Nunca deixei de cumer uma sequer empada por julgar o cheiro desagradàvel. Tomo banho apenas pra arrancar do corpo os pedaços de comida que vão ficando presos em mim com o passar da semana. Me serve menos ainda que o pau, esse nariz torto e exibido que trago na cara. Se não o tivesse, respirava pela boca. Não faria a menor diferença.

(Como um experiente somelier e ao contradito das minhas palavras, dou uma boa inalada no copo. Segue-se o gole. E o Domecq está onde deveria. Desce mais uma dose! Grito pro barman... que sou eu mesmo)

Quem leva a sério um existencialista servido a Domecq? Pois digo isto: há tanta dignidade ali quanto em qualquer Uísque de 8 anos pra baixo.

(O vômito quase se antecipa a minha sobranceira conclusão, mas ficou parado no exôfago e voltou pro bucho)

Não é a bebida, tenho andado mal do estomago nessa ultima semana. A bebida, ao contrario, só ajuda. Foi o que disse o meu mèdico... que também sou eu mesmo e segura um copo atè a metade com Domecq em uma das mãos.

Viro mais uma dose. Depois da terceira o organismo assenta. E o vômito vai ter que esperar o sono. So vai aparecer quando eu já estiver dormindo. Dormir me concede alguma especie de licença existencial, quase como quando estou bêbado por completo. Não me envergonho de nada que não possa me lembrar. Menos ainda do que se teve apenas em sonho, onde posso estuprar uma freira, espancar um velho com dificuldades de locomoção e me cagar todo. Se quando eu acordo a merda aparece como que pra dizer que a cagada do sonho foi real, foda-se. Se a policia aparece na minha casa com uma freira aos prantos, aí sim eu começo a me preocupar.

Enquanto isso, o Domecq me serve de aviso. Vai a terceira dose e a cadeira jà começa a balançar. Me vem a cabeça um problema fenomenologico: é a cadeira que balança ou é a minha percepçao que impõe movimento á cadeira? A resposta vem com o tombo e a dor que depois vai ficar nos quadris: era a cadeira que balançava. Mas não foi uma só gota da bebida ao chao. O copo tava vazio. Existe lá alguma coordenaçao entre as idéias e esse corpo surrado que as contem. Pra confirmar o equilibrio, encho o copo e viro mais uma dose. Uma constataçao: o copo vai sempre direto à boca, nunca erra. O importante é nao prolongar o tempo que o Domecq fica no copo - logo depois de ter saido da garrafa e antes de entrar pela goela. Coordenaçao é ritmo.

Na quinta dose o primeiro sinal de fraqueza. Ao me perguntar sobre o problema da unidade do ser - como posso ser ao mesmo tempo minha cabeça e meu braço sem que meu braço e minha cabeça nao sejam individualmente? - um vacilo no manejo e a bebida escapa pelas bordas e molha o chão. É o sono chegando. Existência com as horas contadas. Pelo menos ate amanha de manha. O corpo reclama: quer deitar.

Vou dar uma cagada antes... pra não acontecer como na ultima noite.

domingo, 24 de janeiro de 2010

És um senhor tão bonito...

23:47

- Branco. Maldita cor!

Faz semanas desde a última vez que escrevi algo que não tenha destinado à lixeira ou apagado sem dó. Sei lá que são comuns essas crises de inspiração entre os escritores do gênero, eu mesmo venho passado por crise ou outra sem precisar recorrer ao expediente de uma bala nas têmporas, mas desta vez é diferente. O Sr. Morelli acaba de me ligar do escritório central para lembrar-me que o prazo expira amanhã e ronda-me os nervos a trágica sensação de que nunca mais conseguirei escrever uma história.

A editora é pequena, mas costuma se orgulhar da fama que tem, de que lança novos escritores todo ano. Lancei meu primeiro livro (e único, até então) em agosto do ano passado. Não fosse a iniciativa do Sr. Sálvio Morelli, aquelas páginas soltas ainda estariam atravancando o movimento de papel, aqui, nas minhas prateleiras. O livro não vendeu bem, mas isso já era esperado. O caso é que fiquei comprometido de entregar até a data de amanhã um opúsculo, coisa de cinco mil palavras, para compor uma coletânea que a editora lança todos os anos, exibindo novos trabalhos dos autores que tenham publicado no ano anterior.

Até agora não tenho nada. Comecei inúmeras vezes, mas em nenhuma delas vislumbrei valer a pena continuar. A verdade é que tudo que venho escrevendo já desde há algum tempo me parece terrível. Nem ao menos nos nomes consigo acertar. Soam-me todos falsos ou exageradamente ordinários. Eu mesmo não culparia um gênio como Göethe se os primeiros nomes do jovem Wether fossem, como os seus próprios, Johann Wolfgang; ou, ainda, se houvesse dado o nome de Fausto a todos os seus personagens. Dar nomes, em verdade, sempre me pareceu difícil, mas agora, tampouco, consigo imaginá-los anônimos. Enfim, nomes são sempre nomes. E ainda que os tivesse muito faltaria a constituir uma história. Afinal, nunca um pai deixou de dar nomes aos próprios filhos sob a desculpa patética da falta de inspiração. Os nomes se arranjam, ainda que à força, se arranjam...

***
23:49

O Sr. Morelli é um bom homem e lhe sou imensamente grato pelo que tem feito por mim. Mas é, ainda assim, um homem de negócios. Trabalha com resultados. Deve estar se lixando pouco para crises de inspiração, ainda mais as minhas (é sabido que os escritores por profissão só se podem dar ao luxo de uma crise de inspiração após, ao menos, um primeiro best seller). Amanhã mesmo mandará um empregado qualquer tomar-me o texto em mãos. Se não o tiver mandará arrancar-me – à força – as vísceras, o coração e talvez um rim. Não pudesse ser pior, a essa angústia se acaba sempre seguindo uma violenta orgia alcoólica, mas isso é coisa de que eu não quero falar a respeito. Tenho por certo que um rim fará mesmo muita falta. Já as vísceras e o coração não têm serventia há algum tempo.

***
9:42

Acordei há pouco. São nove e quarenta da manhã, mas ninguém veio, ainda, à minha porta buscar o maldito texto - texto que não existe, é claro. Estou considerando entregar um relatório das minhas atividades de escritor em crise de inspiração. Algo como: “Enquanto as idéias não vinham esfregava uma lapiseira sobre o papel em branco em uma página de fundo de um livro largado na estante. Acho que era um livro de auto-ajuda, não tenho certeza, já não tinha a menor paciência para letrinhas miúdas àquela altura.” Mas não. O Sr. Morelli não é afeito a experimentalismos. Eu ainda lhe poderia argumentar que este tipo de escrita por encomenda se assemelhava um tanto com o aspecto dos relatórios que profissionais de áreas menos criativas são obrigados a entregar todos os meses, às vezes todas as semanas. Mas o Sr. Morelli não tem sensibilidade para metáforas ou simbolismos, menos ainda um humor requintado. Homens de negócios não costumam ter senso de humor, essa é a verdade. Estou, então, de mãos vazias, como bem se vê.

Já até posso imaginar a minha cara lavada ao abrir a porta ao mandado da editora, dizendo-lhe que espere cinco minutos enquanto procuro uma versão corrigida do dito “trabalho” em meio à nebulosa bagunça que é meu quarto. Ou ainda a vergonha estampada quando revele ao suposto encarregado que nada tenho a lhe entregar, pedindo que volte outro dia, como diz o homem educado quando não tem ou não quer dar uma esmola, ou um pão, a um que lhe bate a porta.

É-me fácil imaginar possíveis futuros nos quais sou o derrotado escritor sem palavras, mas uma simples história, ficçãozinha qualquer, isso não vêm às idéias nem por um decreto. Maldita profissão! Geniozinho bastardo esse seu!

***
10:20

O dia se alonga minuto após minuto e como se o tempo já não me fosse raro, tornam-se cada vez mais improdutivas, conforme se estendem as horas. Vejo, assim, que o problema não é o tempo - e não é mesmo. Ora, ora, que alívio – desse modo tenho a vida inteira pra ruminar minha absoluta falta de criatividade ou, então, morro logo em dez minutos como prática de covardia bem executada. O Sr. Morelli não teria a história escrita, mas poderia quiçá escrever uma sobre essa inesperada fatalidade. Não me daria crédito de autor, isso é fato. Mas, certamente, lhe ajudaria vender ao menos alguns exemplares de meu livro, que estão até hoje a ganhar poeira nas prateleiras daquela editora.


***

10:33

Senso de humor! Trago ainda algum em meio a essa angustiante espera de minha degola. E uma garrafa de vodka, também. “Devias beber bourbon”, disse-me certa vez um amigo, explicando-me que era essa a “bebida dos grandes escritores”. Não considerei o caso, pois nunca parei, de fato, a tentar descobrir que bebidas embriagam os grandes escritores. Também porque não me apetece Bourbon. Não importa. Isso tampouco me dá uma história. Pois se bastasse apenas Bourbon para erguer grandes escritores, nossos clássicos da literatura seriam tão numerosos quanto às vítimas da cirrose que invadem nossos hospitais todos os dias.

***
18:45

Ando de um lado a outro, da sala ao quarto, do quarto ao banheiro. Lavo as mãos obcecadamente por mania ou nervosismo, ou mesmo por superstição, não sei ao certo.
Os olhos me doem e a cabeça. É a ressaca. – Maldita ressaca! – Não tenho muito que fazer agora, senão esperar. - Chegaram! Seja o que Deus quiser!

***
19:00

As onze da matina meus olhos latejavam - queriam sair pelas órbitas. Eu não tinha absolutamente nada sobre o papel. Meu tempo estava se esgotando, e eu insistia em acreditar que ainda era possível escrever qualquer coisa. Isso porque me restavam umas poucas horas (supondo que, se eu não sabia ao certo a hora em que viriam, devia dar-me o beneficio da dúvida, atribuindo a este tempo incógnito o lenitivo de “umas poucas horas”) e, ainda que eu escrevesse uma crônica barata, umas poucas páginas seriam o suficiente pra ser eu considerado um escritor indigno, um literato sem criatividade ou, simplesmente, um mero representante da mediocridade que assola nossa época de raros talentos. Mas nunca o trabalhador sem caráter que se poupa ao esforço por comodidade ou indiferença – pois, de fato, esse eu não sou. Também por isso decidi sair à praça.


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19:01

Um tanto atordoado pelo calor da manhã, vasculhei a praça à vista de um lugar calmo, um banco vazio ou qualquer pedaço de chão que me prometesse a dádiva da inspiração instantânea. Algo como uma fonte de onde as histórias jorrassem e fosse preciso apenas embolsar uma ou outra. Na falta de uma dessas, sentei-me num banco próximo ao jardim principal, donde um grande círculo gramado continha umas quantas arvores e, à volta, um calçado de paralelepípedos oferecia o caminho sereno aos flaneurs de plantão.

Papel e caneta a mão e era isso. Apenas isso. Nada que justificasse a caneta o passeio por sobre a superfície branca. Rabisquei uns desenhos abstratos e dali em meia hora já estava me pondo a desenhar a paisagem num esforço representativo que era quase nulo, visto que se nem desenhista eu era, menos ainda dispunha da calma necessária ao pintor de paisagens que se entrega aquela visão como se ele próprio não existisse. Eu, em todo caso, existia. E era por existir mesmo que todas as minhas preocupações se faziam atuantes. Dissimulei aquele esboço paisagístico rabiscando violentamente com a caneta por cima das arvores tortas que eu desenhara na folha. Botei de lado papel e caneta e me entreguei aquele imenso vazio que eu simbolizava tão bem no texto que tinha até o momento.

Sem que eu percebesse um tipo raro havia sentado ao meu lado naquele banco desconfortável (era mesmo desconfortável, devo dizer) e se punha lendo um livro de páginas amareladas, da capa dura e caindo aos pedaços, mas que eu não pude identificar por conta das letras miúdas (também, eu devo considerar que não enxergo lá essas coisas). Um senhor alto e magro. Bastante magro, mas cuja barba avolumava-se por sob o queixo e fazia compor uma certa excentricidade condizente com os trajes, de uma elegância aristocrática embora surrados e um tanto encardidos, daquele senhor.

Percebendo que o fitava o senhor arrancou os olhos das paginas e os direcionou a mim. Esbocei um sorriso sem graça, amarelo (não como as páginas do livro, um amarelo metafórico, em todo caso, já que eu os escovava todos os dias). E o senhor voltou serenamente as suas páginas secretas como se eu nem mesmo estivesse ali. Pensei, então, no texto que o devia absorver; algo profundamente instigante - devia ser - para tomar-lhe a atenção com tanta eficácia. E tentava novamente reconhecer uma frase ou mesmo desvendar um autor ou um título, procurando por sobre o braço direito do homem alguma palavra que me revelasse aquela obra. O senhor, então, deixou escapar os olhos das páginas amareladas e, mais uma vez, direcionou-os a mim, dessa vez com uma ausente severidade como se me repreendesse a curiosidade, mas ao mesmo tempo indulgente, sem ostentar o papel de uma figura opressora. E tornou os olhos ao livro.

- Lendo?! – perguntei, sem jeito, ao senhor.

A resposta me veio sem uma palavra sequer, precisou apenas consentir com as sobrancelhas ao alto e um leve acenar da cabeça.

Eu o invejava profundamente posto que se largasse tão despreocupadamente a uma história já pronta diante de si, enquanto eu permanecia perdido atrás (ou ao lado) de uma história desconhecida, “inteiramente” incompleta e “possivelmente” inexistente. E murmurei comigo mesmo: “Sorte a sua.” Como em resposta ao aceno com o qual o senhor confirmara laconicamente a obviedade retórica e desnecessária da minha pergunta. Tinha por certo que aquelas palavras não haviam passado de puro pensamento quando o senhor evadiu-se por completo de seu livro e veio a mim com aquela pergunta um tanto jocosa:

Não sabes ler?! – Surpreendeu-me, ali, determinado humor que eu jamais atribuiria ao velho, não tivesse eu mesmo testemunhado. Respondi logo, sem a mesma sutileza do homem:

- Claro que sei! – Eu realmente não tinha a presença de espírito que naquele momento se pedia, mas meu interlocutor sobrava com a sua. Disse-me:

- Então a sorte é sua também. Aliás, sorte de todos aqueles que dispõem de olhos e sabem ler.

- Não é isso. – Ponderei ao velho. - É que me falta tempo. Se o tivesse agora sobrando, estaria, de certo, como o senhor. Debruçado a um livro, possivelmente com as páginas já amareladas como as do seu. – E ele, novamente, exibiu aquele tácito humor, de sutiliza irrepreensível:

- Ora, o velho aqui sou eu. E, ainda assim, tenho tempo para os livros e as praças e toda essa atividade humaníssima que alguns preferem chamar a ócio. Tu que és jovem, então, devias dispor de todo tempo do mundo. Isso se é mesmo que o mundo contém essa quantidade tão significativa de tempo, que valha enunciar com tanto entusiasmo.

Ri, então, com o despojamento do homem. Era mesmo uma criatura formidável. O tom doce da voz era de uma beleza inigualável. O discurso era impecável em execução e conteúdo, e trazia, na forma, o carisma de uma juventude eternizada. No conteúdo, a sabedoria de mil anos vividos. “Absolutamente perfeito”, encantei-me, imediatamente, por aquele ancião. E, ainda sorrindo, prossegui com a conversa:

- É mesmo de se duvidar. Confesso que “todo tempo do mundo” me parece também demasiado abstrato e, a mim também, não me deixa tão desejoso. Me agradaria mesmo se pudéssemos criá-lo. Não acha?! Criasse eu o tempo, como criasse o espaço em perspectiva apenas usando linhas de fuga, ora... Leria todos os livros da terra e ainda mais um pouco. Ainda hoje, me seria muito útil criar um pouco de tempo.

- Se pudesse ser criado, meu caro, aí é que não teria utilidade alguma. – Disse o velho, cheio de sua própria razão. E continuou:

- Veja só. Deus inventou os homens e estes não tem utilidade nenhuma pra ele. Poder-se-ia dizer, de outro modo, que os homens criaram deus. Mas dizem isso apenas aqueles que já não vêem utilidade nenhuma também para esse. Afinal, que utilidade teria mesmo um Deus inventado?! Meu jovem! Criasses tu o tempo, e o tempo te seria tão inútil quanto é a vida para o homem em estado vegetativo. Ficarias perdido em teu infinito particular. Não há tanta beleza nisso, se é mesmo que pensas assim.

Eu não pude contestar o argumento do velho, mas precisei ponderar visto que se tratava da condição mesma de meu ofício como escritor.

- Veja o senhor! Eu, não me posso dar ao luxo desse tipo de pensamento, já que “criar” é todo o sentido de meu trabalho e, devo dizer também, de minha vida. Sou escritor, meu caro, e considero-me escritor não só como honra de ofício. Escrever é a síndrome de minha obstinação nesse mundo. Não fosse isso – criar e recriar – eu consideraria insuportavelmente difícil viver. Como já nos últimos meses tenho considerado. Sei que muitos duvidam que sejam mesmo necessárias as ficções, mas creio nelas e em sua necessidade, porque eu mesmo as tenho como necessárias a minha vida.

- Meu jovem! – intercedeu o velho com uma voz amável e um tom de reprovação. – Não vos disse jamais que as ficções sejam desnecessárias. De modo algum eu vos diria uma coisa destas. Primeiro, porque eu falava de utilidade e, realmente, entendo que, a quem cria, a criatura perde todo valor utilitário. Pois desse mérito, não pode figurar seu valor senão por sua própria condição de objeto criado. Quero dizer, a quem cria vale todo o esforço por criar e isso só é justificativa suficiente para essa sua criatura que nasce. Mais ainda que uma qualquer possível utilidade que a ela se venha supor. E se pudésseis mesmo criar o tempo, que sentido teria para vós esse mundo tão adequado ao tempo de que ele mesmo - o próprio mundo - dispõe? Mas, como escritor que sois, bem entendo que tanto vos deis ao ofício da criação. Aliás, chego mesmo a estranhar que um homem que julga insuficiente o tempo que tem e que se diz tão apaixonado pelo trabalho de escritor, esteja perdido, aqui, nessa praça ociosa, a que se entregam apenas os que se deixam pela vida a passeio.

Com a argumentação digna de um filósofo, o senhor me arrancou daquele dialogo despropositado e me jogou de volta a vida. Aquela vida áspera e angustiante que eu trazia aos ombros, junto com a desculpa trágica de minha falta de inspiração. Lembrei-me, nesse momento que o tempo – esse monumento abstrato ao qual nos referíamos – tinha definições bem mais precisas no mundo prático em que minha desgraça se desenrolava. Vasculhei ao entorno da praça girando o pescoço, procurando um relógio a vista que me pudesse indicar a hora; precisamente, como na prática métrica em que as criaturas de Deus faziam do tempo suas próprias criaturas. E, se aquele tempo específico me era inútil, não era simplesmente por haver sido criado. O caso é que marcavam já quinze minutos para o término do horário comercial - horário que eu supunha limítrofe para entrega do meu improvável trabalho. Improvável, em todo caso, muito menos pelo tempo que escoava que pela falta total de uma idéia sobre a qual escrever.

Levei, então, o rosto às mãos e não consegui esconder o desespero contido de minha existência. Tornei novamente a cabeça ao alto e olhei para aquele sábio senhor que me fizera companhia nesses minutos finais de minha derrota. Disse-lhe:

- Estou arruinado. Não devo mais ter sequer um motivo para esta vida. – O sábio, então, manifestou-se apenas com compaixão aos olhos. Pois se eu ainda parecia sóbrio e calmo, era porque dessa maneira particular é que se manifestava o meu desespero. A fleuma do escritor era a armadura subcutânea que minha doença vestia. Mas soube o velho do que se tratava assim que olhou em meus olhos. Era mesmo uma criatura iluminada. Certamente, também criador de sua própria iluminação. E enquanto eu lamentava por não ser forte ou apto suficiente para essa vida mundana cheia de impedimentos, ele estacionava aquele rosto plácido e inalterado diante de mim e com um leve acenar de cabeça tentava me fazer compreender que se tratava de um tolo lamento.

Estarrecia-me, no entanto, essa equanimidade de alma e conduta que aquele senhor exalava. Logo ele, que, provavelmente, vivera uma vida cheia de privações; ele que (a julgar por seus trajes) soubera como nenhum outro a impiedade do mundo que me inconsolava, mas que a ele parecia perfeito como a morte parece ao coveiro.

E eu, despindo-me da calma, da fleuma e de toda razão de escritor, praguejei. E em troca dos meus pecados ofereci ao deus (que eu mesmo negava) um aceno de reprovação - um gesto obsceno, devo dizer. Mas como último verso, entreguei-lhe mesmo foram essas palavras, que saíram ao ar:

"Foda-se. Eu desisto de tudo. Não há coisa tão dificil como esta, de se viver dia após outro e nunca chegar ao fim, ter sempre o vazio como premissa. Sou já agora uma fruta seca, sem mais nada a oferecer a esse mundo. Estou farto, cansado e é isto. Deu!"

Essas palavras, d'outro modo, não chegaram ao deus imanente ao qual minhas queixas se dirigiam. Não só porque não houvesse um - e, de fato, não havia - mas porque antes disso, aquele probo homem absorveu-as sem hesitação e não deixou que passasse mais uma sequer sem a devida resposta. Sinto mesmo que tomou para si a vergonha do deus omisso, esse que não dava retorno e que a nada dava respostas. Sacudiu a cabeça, um tanto comovido com o meu lamento, mas deixou-se perder na serenidade que seu espírito velava antes de me dizer:

- Não há reprovação tão nobre quanto o silêncio e nem queixa mais orientada que a indiferença. Entendo sua maledicência, filho. Mas estás longe da desistência que anuncias. E, afinal, quão dificil pode ser viver se já está tudo dado de antemão. Pois acredite, e falo isso sem acusar-te de ingratidão, já que também não há a quem ser-te grato. O fato é que não há tarefa mais difícil que a de nascer. A todo resto compra-se o ingresso.

Sombreei seus olhos com espanto renovado. Não pude sorrir posto que estivesse por demais comprometido com aquela cena de homem traído e vítima do circunstancial. Mas dei-lhe em troca um suspiro de concórdia, não simplesmente porque concordasse, mas era também essa a minha maneira de mostrar a admiração em que lhe tinha. Era ele o filósofo, ao meu lado. Enquanto eu oferecia apenas os ouvidos (e a estupidez como contraste, é claro); ele me dava o conforto das sábias palavras, as quais dizia em frases concisas e melodiosas, mas também as que implícitas estavam.

Pois era mesmo nascer a mais difícil tarefa. E ele o anunciava como quem contesta ao nada o valor de potência e atribui a cada partícula incompreendida a capacidade do nascimento. Como se a probabilidade existisse antes mesmo do fato e o nascer de uma criatura encerrasse em si o não-nascer de milhares e incontáveis não-criaturas, veladas pelo simples acaso do não nascimento.

Não me tentava fazer sentir-me homem de sorte, visto que ele também de antemão a negasse. Eu era, pois, sob a conjectura daquele discurso, o valoroso ente que penetrara - por mérito próprio - a obscuridade do nada absoluto e atravessara ileso até alcançar a luz de uma consciência tangível. Um mérito duvidoso, confesso. Mas também nas dúvidas havia esse silencioso remir de uma existência latente. Duvidar significava estar vivo e isso aquele senhor me disse em palavras que, em verdade, nunca chegaram a sair de sua boca. Eram também elas criaturas não-existentes que justo eu – o escritor sem história – fazia-as existir, eu mesmo, a partir de uma economia secreta do discurso do velho.

O ancião, nesse momento, mostrou-se a mim transparente. Sorriu-me como quem antecipa o final ao próximo; como quem dá a vida como presente ao outro e a morte, a si próprio, como trocado. Desfez-se, então, da transparência que ainda o vestia - a que até então o acomodava sob minha vista incrédula -, e desapareceu no ar como desaparecem as sombras ao meio dia. E se ele mesmo já não existia, o fundamento de sua razão ontológica permanecia. Se veio ele, das profundezas do inexistente, comunicar-me o que eu de todo já sabia - ou devia saber - restava-me então um questionamento:

"Se eu penso nele, logo ele existe?"

Pois se eu nunca mais cheguei a considerar a morte ou a desistência como solúvel, após aquilo, foi porque estava agora preso a essa particular existência como jamais estivera. E mesmo que as tantas zilhares de não-criaturas (as que não chegaram a nascer) não me pudessem contar a angústia perene de sua ilimitada inexistência, eu poderia contá-las, a cada qual delas, as agruras da vida pungente, ainda que elas não me pudessem ouvir.