segunda-feira, 28 de maio de 2012

Um filósofo, um travesti e um papagaio


Três homens caminhavam por sobre o couro calvo da cabeça de um gigante, este sentado em uma cadeira minúscula, que estaria, certamente, mais adequada às proporções daqueles três que encimavam o monstro que ao próprio senhor, cujo peso que sustentava sobre a cadeira  era pelo menos vinte mil vezes maior que o indicado pelo fabricante do assento para uma utilização supostamente segura. A cabeça calva daquele senhor, no entanto, oferecia espaço suficiente para que os três cavalheiros circulassem pensativos, de lá para cá, em provável busca por resposta a pergunta que se havia formulado segundos antes do início da cena. E se os pequeninos pés sobre sua cabeça não o incomodavam é porque nas mãos o gigante trazia um livro que roubava cada centímetro de sua atenção (que poderia também ser medida em litros tão prontamente uma conversão fosse solicitada) fazendo-o ignorar esses antropomórficos insetos que lhe bagunçavam o escalpo.

O primeiro cavalheiro, baixo e gordo, trazia no rosto um enorme bigode, que alguns anos antes havia sido companhia de uma vasta barba e cabeleira. O cabelo, embora um pouco mais ralo, se mantinha sobre o cucuruto, mas a barba havia sido vítima de uma curiosa alopécia que o acometeu na região do queixo e das bochechas, determinando a queda gradual de todo aquele pelo que antes envolvia seu rosto, deixando agora apenas um bigode, solitário conquanto orgulhoso, dando ares de lusitano ao homem que atendia pelo título de filósofo - e se lhe fosse questionado o dado, imediatamente ele puxaria do bolso uma sumária e irrepreensível identificação indicando a veracidade da titulação.

O segundo, de cabelos longos, fartos seios e trajando um vestido vermelho justíssimo, era, em verdade, um travesti. Caminhava pensativo e rebolante enquanto girava uma pequena bolsa na altura da cintura quase onde terminava o vestido, que assim deixava expostas as coxas e boa parte das nádegas. O primeiro cavalheiro o teria tomado por mulher, não fosse ele mesmo filósofo, ou seja, homem de cuja sabedoria se poderia destilar com suficiente raciocínio as desavenças entre as configurações de gênero que atestavam o homem não ser, de fato, mulher.

O terceiro homem, consideravelmente menor que os outros, sustentava o corpo verde coberto por penas (ou o corpo coberto por penas verdes, desde que os olhos que enxergassem fossem suficientemente conscientes para se dar conta de que o corpo embaixo das penas não tinha cor, uma vez que não podia ser visto) sobre duas estreitas garras que marchavam, em passos comedidos, à direita e à esquerda. Era, na realidade, um papagaio. Nesse ponto um leitor poderá reclamar contradição a minha iniciação nesta narrativa: “Como poderia ser um homem e ao mesmo tempo um papagaio essa curiosa criatura?” - A esse leitor, justifico que não há contradição alguma. Tratava-se de um papagaio e não de um homem e se foi dado a entender de outro modo num primeiro instante, deve o leitor considerar-me com mais cuidado e recúo. Entenda, pois, esse que vos narra não é seu amigo e não tem, portanto, a pretensão de lhe ser honesto todo o tempo. O caso é que o papagaio falava e, se lhe fosse perguntado sobre a razão de ser ou não homem, poderia muito bem responder ao revés de sua condição aparente. E nesse caso poderíamos tomar por mentiroso menos o narrador - que atendendo a descrição de si dada pelo pássaro se faria enganar sobre os fatos - que o próprio papagaio, esse sim galante na astúcia tanto quanto sórdido na resposta, uma autêntica e inescrupulosa rapina da boa moral e do senso de ética. Mas isso não aconteceu, pois o papagaio, assim como os outros dois homens, se punha a pensar na questão desconhecida que impulsionara a narrativa; e essa não versava, muito provavelmente, sobre os termos da sua condição espécime.

..................................................................................................................................................................
Repare o leitor, que a cena constituía-se em presença das figuras descritas e seus acessórios e da pequena cadeira. O espaço a volta, não tendo sido posto em diligente descrição, poderá ficar a critério daquele que imagina. Como sugestão – apenas no sentido da sugestão, todavia – eu mesmo recomendaria como cenário, o fundo de um aquário decorado com uma carcaça de um pequeno navio de plástico, por onde levantariam pequenas borbulhas de ar a cada cinco segundos, corais e algas reluzentes desenhados ao fundo, como num papel de parede perfeitamente encaixado aos moldes do vidro do aquário. Nesse caso, deverá o próprio leitor dispor da imaginação necessária a ajustar nesse quadro a figura do gigante sobre a pequena cadeira com o livro em mãos e os três cavalheiros (um dos quais, papagaio) e suas devidas proporções para que não se desvaneça a harmonia da cena.
..................................................................................................................................................................

Após segurar os olhos sobre livro durante algum tempo, pareceu que alguma outra coisa chamou sua atenção, quando a parte escura e circular de cada olho seu começou a ganhar movimento circular dentro das devidas órbitas, como que indicando uma dispersão imperativa, fosse por vasculharem esses olhos o espaço em busca de um inseto voador sobre cujo zumbido não se teve notícias nesse lado da história, ou fosse um surto convulsivo iminente que tomasse forma a medida que algum dispositivo fisiológico no corpo do gigante o fizesse perder o controle das esferas oculares. Os olhos pararam-se e ouviu-se, então, um reco-reco barulhento como o de uma serra, conforme uma estreita linha se desenhava na altura da testa pouco acima das sombrancelhas. Alguns segundos depois da linha atravessar toda a testa, desde uma visão frontal – e, portanto, parcial – do gigante, o barulho cessou. Os três cavalheiros se desviaram de seus pensamentos, preocupados com aquele som que se iniciara e terminara como no resoluto ecoar de uma ação objetivamente desdobrada no tempo e finda bem sucedida, se entreolharam e fizeram caretas quando sentiram o chão abaixo de seus pés mover-se. Naquele instante, como uma catapulta arremessando aquelas criaturas outrora pensantes, foi assim que se seguiu quando, descolado na altura da linha traçada na testa, o tampão da cabeça do gigante se abriu, alavancando da direita para a esquerda aqueles três e se pode ouvir seus gritos – vozes minúsculas e agudas como agora se podia vê-los quando o gigante assumia proporções de um homem mediano. Só, então, foi possível enxergar em foco e com nitidez o título que estampava a capa do livro que o homem tinha nas mãos, sobre uma cadeira ainda inadequada ao seu tamanho.

Dizia o título: “A metafísica onde menos se espera” e concluía com um subtítulo bastante sugestivo: “Homens domesticam cachorros, cachorros domesticam pulgas, e as pulgas domesticam os deuses, por P. S. Higgs” 

quarta-feira, 9 de maio de 2012

Uma raposa



De pelo escuro, dentes afiados, corria sobre quatro patas ágeis e coordenadas.

Não! Engano meu... não era uma raposa, mas um rato.

E roeu todo queijo que lhe servi gentilmente sobre uma pequenina ratoeira de prata.