sábado, 12 de setembro de 2009

A lapa dos desjustados

Já há algum tempo a Lapa vem perdendo sua aura de “lugar de desajustados”. Os desajustados a continuam frequentando, diga-se em respeito, mas já não parecem mais a alma desse negócio de lá, como antes pareciam. Dito isso, vocês devem supor que eu, como imperfeito caractere até no desajuste, já não me sinto tão à vontade por aquelas bandas – e, de fato, a suposição calha. O preço da cerveja subiu vertiginosamente – eis a verdadeira alma do negócio. Já ouvi dizer que era coisa de sexo, drogas e Rock’n Roll. Suspeito que o rock’n roll fique de fora dessa vez. O resto pode ser quantificado e trocado por notas de 10. De 5 ou de 2, muitas vezes. Depende mesmo é da disponibilidade que você tem das notas.

Me lembro que 5 ou 6 anos atrás, a movimentação cessava ali na altura do arco-íris, onde se via o último cabelo loiro bem tratado e último vestido da moda. A partir dali começava a contra-lapa. A “lapa dos mal vestidos”, pra quem gosta de um jargão mais jocoso. Eu me sentava no banco de cimento na sinuca da lapa e estava perfeitamente aberto ao calor absurdo do lugar; acontece que é um lugar pequeno, com muitas mesas e algumas tantas pessoas. O som também era caótico. Eclético. Ruidoso, talvez. Mas reinava uma tolerância discreta que hoje já não mais se vê. Estamparam, na frente do lugar, uma política da boa vizinhança. Da vizinhança boa, digamos. Assim: que entrem os bons vizinhos, eles e os seus bons bens. É tudo muito rasteiro, subliminar. Um letreiro vermelho reluz em neon o nome do estabelecimento. Um nome que, no entanto, já sabíamos todos ainda quando era escrito na parede interna do lugar, com tinta preta. Começaram a cobrar entrada: foi o que me disseram. Mas já aboliram essa prática... pouco importa. A cobrança é ainda feita de uma forma menos vulgar. Um segurança se mantém de pé a frente do lugar, com cara de poucos amigos. São poucos, sim, mas eu pouco duvido que eles tenham mais grana que a média geral dos antigos frequentadores do local.

Me senti impelido a andar mais um pouco. A antiga lapa não me oferece mais o mesmo conforto, o abrigo. Seguindo a Mem de Sá, me deparei com esse lugar indeciso. Eu não conhecia. Achei que a lapa terminasse ali na altura da “casinha da cachaça”, nos limites da Gomes Freire. Não, não. Não mais. Parece que o desenvolvimento acentuado arrastou aquela margem mal assalariada um pouco mais pra direita. Tudo bem, talvez não sejamos tão mal assalariados assim alguns de nós. Mas importa mesmo é a imagem que fica. Bom, o amigo que me acompanhava também ficou surpreso com a disposição do lugar. As mesas se enfileiravam no fundo, quase no mesmo esquema espacial da antiga sinuca, que ainda existia - não pra mim. Santiago sugeriu que entrássemos. Largamos fora as cervejas que trazíamos a mão (isso porque nos proibiram de entrar bebendo, já que aquelas garrafas não houveram sido compradas ali mesmo no estabelecimento) e entramos. Tudo bem, a política é ainda a do lucro, mas como eu disse: “o que vale é a imagem”.

Uma cerveja e três fichas: como reza a remessa que se tem em vista quando apenas dois se metem ao jogo. Ao nosso lado direito 4 mulheres se derretiam ao som sabe-se lá de que variados gêneros musicais que fugiam de uma jukeboxe alimentada pelos mais distintos espíritos que ali fulguravam. Lembrava-me a antiga sinuca, onde o desmedido ecletismo (que se podia ver em uma musica do Led seguida por um funk grosseiro e em, talvez, uma ou outra da legião urbana que figurassem entre clássicos do Steve B) assumia a naturalidade de um diálogo entre Jesus Cristo e Napoleão numa casa de tratamento psiquiátrico. Junto às 4 mulheres um tipo magro e efeminado compunha a cena aos esfregões com as histéricas dançantes, enquanto Eu e Santiago locupletávamo-nos com a crônica, como se uma nostalgia nos invadisse a alma a todo instante nos lembrando que o mundo era também feito de absurdos inofensivos como aquele. A cerveja escorregava pela minha goela como fosse a manteiga descendo por entre os dentes do garfo aquecido; o copo de Santiago, esvaziava-se a cada 45 segundos. Entre uma musica do Red Hot e outra da Claudia Leite – que se fazia ali contingente e, por isso, nem de longe machucava os ouvidos sensíveis da maior parte dos “roqueiros”, que eram, talvez, maioria no lugar – as meninas puxaram as bolsas e saíram.

Chegaram outras duas. Lésbicas. Não preciso aqui descrevê-las. Deixo à imaginação de vocês o que se toma na média por duas lésbicas. Uma delas perguntou alguma coisa a Santiago. Ele sorriu e respondeu. Não consegui ouvir o diálogo, mas certamente não envolvia qualquer componente sexual. Preciso dizer que lésbicas não fazem sexo com homens? A essa altura, paráramos com a sinuca: 9 fichas jogadas, placar: 5 a 4 pra mim. Nada tão disputado, joguei a ultima ficha com vitória já garantida. Sem me gabar. Santiago não é lá muito bom nesse jogo.

De repente, um grupo de 5 se instala na mesa que deixamos à espera. Um casal clássico: a gordinha de preto e o cabeludo roqueiro e magricela; uma ruivinha saliente que se esfregava constantemente no amiguinho viado. Não me entendam mal, é que eu não conheço palavra melhor que essa pra apresentar um viado; e uma baixinha atarracada de pele morena e cabelo encaracolado. Atarracada porque a gravidade parecia ter efeito mais intenso no corpo dela, que se mantinha mais próximo ao chão fazendo-lhe a largura parecer mais visível à volta do tronco. Eu diria gordinha ou fofelete se ele tivesse um pouco mais carne. Não era o caso.

Começou o show. A ruivinha dançava orbitando lascivamente o rapaz que eu outrora chamara viado. Chamarei novamente, me desculpem – ele era mesmo viado. Consciente de que aquele não me oferecia qualquer concorrência, fixei meu olhar na garota. Ela satisfazia, também, as exigências de um certo tipo “roqueira”. Blusa branca estampada, shortinho preto curto, onde, no limite, descia uma meia-calça escura com um ou outro pequeno rasgo. Na perna direita, no entanto, a meia-calça começava um pouco mais tarde, deixando uma pequena faixa de pele exposta. Era a minha deixa. Comentei o caso com o Santiago. Ele retorquiu: “Será que é proposital?” Respondi-lhe que se fosse, ela ganharia mais alguns pontos. Levantei-me e fui até ela.

- Diz uma coisa. Esse pedacinho de perna exposta é proposital mesmo ou o acaso de uma meia-calça mal posicionada? – Disse cheio de lascívia.

Ela sorriu. – É que a meia desse lado ta um pouco mais frouxa. É sem querer, acredite. – Me disse mordendo os lábios. Aihh, aquela vadia...

Nesse meio tempo a amiga atarracada se aproximou com meia garrafa de Brahma. A ruivinha tomou da mão dela, virou a garrafa e disse que viraria ainda que estivesse cheia. Senti como uma indireta. Puxei uma Brahma e entreguei na mão dela. Ela tentou virar. Foi até a metade. Com muito esforço virou o resto em mais dois ou três goles. Senti que o “casal clássico” conversava alguma coisa a respeito com Santiago. Me virei pra eles e a gordinha disse:

- Cara, ela faz essas coisas. Fica provocando e as pessoas acabam dando bebida pra ela, mas isso não vai dar em nada.

Me senti ofendido. Não porque ela fosse a tal provocadora. Ela era e eu sabia. Mas porque julgou o casal que eu não seria suficiente pros meus próprios objetivos para com a garota. Respondi-lhes em defesa:

- Eu entendo. Mas to tranqüilo. Faz parte da brincadeira né? Como é a medalha dada a um Usain Bolt por uma façanha qualquer como correr muito rápido. Digamos que a cerveja é a justa medalha que ela merece. – E voltei a sentar ao lado do Santiago.

Ela não merecia. Não mesmo. Que se foda, ou vai ou racha!

Santiago reiterou o argumento do casal: “Ela é uma ‘teaser’, cara. Uma provocadora.”
Há algum tempo que se seguia música após música a voz do Eddie Vedder vindo das caixas de som. Algum fã qualquer do Pearl Jam, jogou 5 ou 6 fichas e nos encheu com, talvez, meia hora de “Ten”. E a vadia dançava que dançava. Não me olhava diretamente. Mas fazia cara de quem queria olhar. Vocês entendem o que eu quero dizer? É um olhar sem olhar, mas com sorriso, saca? Ela andou até jukebox procurando algum título especifico. Cheguei do lado dela e sussurrei no seu ouvido alguma coisa indecente. Talvez o conteúdo nem fosse indecente, mas era possível saber a indecência pelo meu tom de voz. Ela saiu. Deixou a espera uma musica do Prince. Maldita vadia. Saquei dois reais da carteira e coloquei a musica. Com os outros dois créditos restantes coloquei duas músicas do Dire Straits. Porque não queria perder muito tempo ali e essas estavam logo na cara, mas também porque satisfazia a noção do ecletismo que pedia o lugar logo após o Black sexual do Prince (se não me engano era Kiss).

Ela ficou excitada. Percebeu que tinha ganho aquela também. Se sentou ao lado do amigo viado. Eu tomei lugar na cadeira do outro lado, do lado dele. Comentei com ele: “Ela é uma teaser, né irmão? Sacana...” Ele se riu e confirmou. Ela percebeu que conversávamos e entrou no meio pegando a mão dele e acariciando-a sensualmente. Explicou logo depois que os dois moravam juntos. Que ele a via de calcinha regularmente. Uma imagem um tanto desnecessária naquela conversa perdida, não fosse a intenção dela, a de me provocar. Pensei: “Basta.” Puxei a mão dela até a entrada do bar, onde a calma era mais convidativa. Ela se deixou puxar. Segurei-a pela cintura e ela então se esquivou. Me disse: - Eu tenho namorado, não to interessada em nada disso!

Eu forcei mais um pouco e soltei essa: - Olha, eu não me importo. Se você quiser chama ele e a gente faz uma sacanagem juntos! – Ela riu um pouco sem graça e me empurrou com mais veemência. Disse, dessa vez com ênfase: Não! Não quero. – E voltou pra lá onde estavam os amigos. Segui de volta. Quando cheguei, a cabeça de Santiago tombava para o lado enquanto ele se esparramava na cadeira. Estava dormindo. Dei-lhe um tapa no braço que semi-apoiava a cabeça tombada e ele acordou no susto. Perguntou: “E aí?” Eu respondi: “Me deu toco.” E ele, em perfeita sincronia com os meus pensamentos: “Vadia!”. Finalmente alguém com algum bom senso, além de mim, naquela porra.

Quando o grupo se preparava pra ir embora, a amiga baixinha veio ter comigo. Não lembro bulhufas do que ela disse. Sei que a puxei pela cintura e roubei um beijo sem muita força. Ela se deixou beijar. Parei por uns segundos e percebi: Ela se queria beijada. Beijei novamente. Mencionei que era preta? Pois é. Não era “preta preta”. Mas um “preta” que bem se mostra sob a alcunha do “moreninha”. Entende? O bronzeado era natural e o beiço carnudo. Bom, perdi o voto de uma mais minoria, eu sei. Mas a honestidade ta aí, pra quem quiser ler. E sabe o que mais? Tomei a morena por troco - é essa a verdade. E a ruivinha que lá se foda, sabendo que a cerveja e as três músicas estavam pagas e bem pagas.

Eles se foram. Santiago voltara a dormir:

- Acorda seu puto! Vambora...

Vinte reais a menos no bolso e a mesma sensação da saída na sinuca da lapa de 5 anos atrás na bagagem. Doidera mermão! Vinte reais... Nada proletário demais, mas, também, nem assim tão burguês. A lapa dos desajustados...

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