terça-feira, 8 de setembro de 2009

A Questão do Tamanho e o Tamanho da Questão

Percebi que a questão da obesidade tem sido abordada aqui com uma notável e negativa ênfase. Ponderando-se as críticas levantadas, me sinto, como gordo, no papel de comentar sobre o assunto, tendo em conta o respeito que nutro pelos meus colegas deste repositório de idéias.

Acho que qualquer gordo esclarecido tem duas certezas: a primeira, de que é um gordo; a segunda, de que sua gordura, ao menos depois dos dois ou três anos de idade, vai aos poucos deixando de ser um motivo de atração física pelo caráter de “fofura” e vai se tornando um problema social – não na medida em que o indivíduo afeta a sociedade, mas, antes, a hostilidade da sociedade sobre este indivíduo. Quando falo em “gordo esclarecido”, é justo para separar-me do joio, isto é, daquelas pessoas que se recusam a se reconhecerem como gordas. Tais pessoas, de fato, seriam de forma justa objetos de toda jocosidade de que a maledicência nossa é capaz. Não pelo gosto ou desgosto por suas (ou melhor, nossas) redondas formas, mas por fazerem uso de todo expediente retórico no esforço vão de disfarçar pelas palavras o que é explícito aos olhos.

Uma vez reconhecendo-se como gordo, cabe agora ao cidadão pensar-se não no modo mais usual, como membro de um corpo social que na maioria das vezes sente certa repulsa estética por ele, como implicitou meu amigo Henrique em seu divertido texto sobre a ressaca alguns posts abaixo; mas reconhecer-se principalmente enquanto um cidadão que pela natural iniciativa de viver em centros urbanos e habitar espaços públicos, comete um suposto e involuntário abuso, como explicitou meu colega Davi em sua experiência rodoviária, e articulou narrativamente meu colega Bruno. É importante ressaltar também que não falamos aqui daquela beleza pneumática da Renascença, esse tipo que ainda resiste a qualquer imperativo estético contemporâneo baseado em ossos e músculos. As moças descritas nas crônicas de meus colegas, tal como eu, não portam somente a gordura pontual e comedidamente distribuÍda em pontos específicos da silhueta, tal qual a faixa de gordura que inevitavelmente aparece anexada a um delicioso pedaço de filet mignon. Ao contrário, somos excesso do mediano, ocupamos o espaço extra no mundo, um espaço do qual prescinde uma pessoa esquálida - mas que é a justa medida de uma pessoa de proporções medianas.

Por ser gordo desde a mais tenra infância, percebi o quanto minha forma física provocava um desconforto onde quer que eu estivesse. A minha educação exigia dos professores um esforço constante em conciliar uma educação sobre os problemas na manutenção de minha forma física com um trabalho de auto-estima. Por contraditório que fosse tal projeto pedagógico, fui percebendo que eles tentavam ao mesmo tempo me fazer me sentir bem comigo e querer mudar. Considerando que meus pais, idiotas funcionais, se limitavam seguir recomendações dessa gente (professores primários e psicólogas infantis), passei a minha infância e parte da minha adolescência vítima desse estrabismo pedagógico. Por outro lado, esse destacamento em relação ao grupo de alunos também me permitiu desenvolver, sem maiores esforços, uma visão sobre meu próprio lugar neste grupo, e em, maior medida, o meu lugar na sociedade em geral.

Não ignoro, em momento algum, o desconforto que causo em lugares onde cada vez parece mais restrito o espaço para a ocupação de uma pessoa, quer estejamos falando de um banco de ônibus ou van, quer estejamos falando dos assentos de um teatro, de um banco de praça, de uma discoteca, de uma academia de ginástica. Ao contrário do caso dos homossexuais, em que a eventual repulsa que ainda provocam se restringe aos momentos de expressão pública de sua sexualidade, no caso dos gordos tal repulsa incide em um aspecto que independe do indivíduo querer expressar ou não, posto que repousa sobre a presença mesma do indivíduo em um espaço determinado para pessoas com setenta, sessenta ou cinqüenta por cento de sua compleição física.

Quando Davi – seja ele o autor do post autobiográfico ou o personagem da narrativa fictícia de Bruno – acenava para violação que um obeso comete ao ocupar um espaço maior que o determinado para ele, cerceando o direito de outra pessoa ocupar um espaço determinado para ela, podemos daí nos perguntar: e quanto ao direito de um homem exercer completo controle sobre seu corpo? E quanto ao direito de qualquer homem, como cidadão, habitar um espaço público e fazer uso dos recursos públicos da mesma maneira que os demais, posto que paga proporcionalmente os mesmos impostos? Quando meu ilustre colega mede os direitos dele, é inevitável atentarmos que ele está ali cometendo um grave e comum equívoco, típico daqueles a quem ele costuma dirigir suas críticas: o de olhar o outro como quem se olha em um espelho.

A bem da verdade, estamos aqui lidando com a situação, não exatamente rara, da dificuldade de uma justaposição de direitos em situações nas quais estes aparecem conflitantes. Por conseqüência, a dificuldade está em se formular uma resolução para o impasse que se faz quando cada parte escolhe lançar mão de um direito como argumento da correção de seu ponto, sem que se viole qualquer dos direitos levantados. Poderia-se responsabilizar o Estado (ou, no caso, as empresas de transporte público) por oferecerem um banco que, por garantir dois lugares, não permite a ocupação destes lugares por duas pessoas quaisquer, mesmo as mais obesas. A pergunta um pouco mais geral imbricada a esta, e que está longe de se restringir à obesidade, é: há lugar no mundo para tantos direitos?

Considerando a dificuldade que inevitavelmente emerge da discussão sobre o conflito entre proclamados direitos, e até mesmo na fundamentação ética e moral de tais direitos, concluo manifestando o meu alívio por ter um carro, uma cama king-size, e uma natural aversão a aglomerações.

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