domingo, 12 de setembro de 2010

Enquanto isso, na sala da Justiça...

Entrou na van um garoto segurando um pacote de papel daqueles de uma famosa rede de lanchonetes americana. Sentou-se na primeira fileira, logo quando puxou para fora do pacote uma caixa que abriu, sacando dali um sanduíche gorduroso. Nem precisou dar a primeira mordida e o cheiro já se havia espalhado pelo automóvel – o ar condicionado pedia que as janelas se mantivessem fechadas.

Alguns minutos depois, uma senhora, que se localizava na fileira logo atrás da do rapaz, comentou:

- O senhor não pode comer na van.

Um pouco confuso com a denominação de “senhor” – que se usava ali apenas como medida de formalidade prática, já que o menino não tinha mais que quinze ou dezesseis anos – e ofendido com a repreensão da senhora, devolveu-lhe:

- Como não?! É o que eu estou fazendo agora.- e desferiu uma mordida performática no sanduíche, enquanto puxava uma batata frita de dentro do saco, que iria por na boca ainda em processo de mastigação.

A senhora se articulou cheia de razão, revelando o inconveniente e a ética da questão.

- Isso é um absurdo! O sanduíche é seu, mas o cheiro... O cheiro temos que agüentar nós todos aqui dentro, né? Você não percebe o quanto isso é incômodo?

- É só cheiro de hambúrguer! – retrucou o garoto.

- Ninguém é obrigado a sentir esse cheiro. Estamos dividindo um espaço aqui! – disse a mulher e, não bastasse o litígio que já impregnava o ambiente muito além do cheiro do hambúrguer, o rapaz – fundamentado naquela sentença que diz que “a melhor defesa é o ataque” - resolveu que iria chamar atenção para uma característica física da mulher; e retomando a pauta “divisão do espaço” levantada pela senhora, declinava o processo em favor do acusado, fazendo notar uma nova disputa que até então não se tinha em relevo.

- É, estamos dividindo o espaço. A senhora reclama do meu sanduíche, mas se a senhora hoje ocupa tanto espaço (e, daqui, eu especularia coisa de um lugar e meio no banco da van) é porque já deve ter-se atracado com alguns desses nos últimos anos, pelo menos.

A senhora cerrou os olhos fingindo não acreditar que houvera sido chamada de gorda, ofensa que seria pouco eficaz se ela não o fosse de fato.

Um burburinho especulativo começava a tomar conta do veículo, cujo motorista tentava permanecer imparcial – e nesse caso a imparcialidade era, e somente poderia ser, o silêncio.

- Isso não é justo. – Levantou a voz a senhora, mais uma vez. – Ele me chamou de gorda! Vocês ouviram isso? – Apelava para a opinião pública agora que havia sido deliberadamente ofendida.

O rapaz recuou na ofensa e tentou defender-se com um pouco mais de diplomacia, coisa que se fazia inexistente nas primeiras investidas do menino que advogava em favor de causa que ele próprio parecia considerar banalíssima.

- Minha senhora, estamos dividindo um espaço, isto é certo. Mas o cheiro do meu hambúrguer deveria incomodar tanto quanto uma conversa despretensiosa, já que o cheiro se espalha no ar conforme o som. E se o cheiro nos incomoda aos narizes, do mesmo modo o som nos deveria incomodar aos ouvidos. Vá lá que a senhora não goste muito do cheiro do sanduíche, mas eu poderia, por exemplo, não gostar de ouvir esse casal do meu lado falando de seus planos para o almoço de amanha, mas não vou também criar caso por isso, pois o fato é que se o cheiro de comida incomoda alguém, muito mais que ele, incomoda é essa discussão descabida que acabou com toda a tranqüilidade dos passageiros, e aqui me incluo entre estes.

O rapaz foi bastante preciso na sua argumentação – de se admirar para um garoto de sua idade, cabe dizer -, mas na ânsia de colocar seu ponto-de-vista, acabou por criar desconforto também no senhor ao seu lado, que minutos antes conversava com a esposa sobre o almoço que teria com a família e o chefe no dia seguinte. E nesse pequeno deslize estratégico, também o senhor tomou parte na discussão e ponderou sobre a argumentação do garoto:

- Veja lá, filho: Você está dizendo que cheiro e som são a mesma coisa e que incomodam do mesmo jeito?!

- E não incomodam? – disse o rapaz, respondendo com uma pergunta.

A senhora logo se pôs a bufar, ridicularizando a analogia referenciada pelo garoto: - Veja só querer comparar uma conversa miúda ao cheiro empesteante do hambúrguer...

O senhor, então, tomou fôlego para argumentação e iniciou: - Pra inicio de conversa, o cheiro do sanduíche é orgânico.

- E o que exatamente isso quer dizer? – perguntou cepticamente o rapaz.

- Quer dizer que o cheiro que estamos sentindo e que chega aos nossos narizes é formado de pequenas partículas de substâncias que deixam o sanduíche e penetram nas nossas narinas e, portanto, no nosso corpo. Substâncias que fazem parte e são, de certo modo, o próprio sanduíche. Diferentemente do som, que é uma propriedade do espaço, digamos assim... Ondas que se propagam e são decodificadas pelos nossos ouvidos.

- Certo, então, Einstein! Quer dizer que se eu deixar o meu sanduíche intocado, cheirando ao relento até que todas essas “partículas” se soltem, ele vai desaparecer? Porque se são, mesmo, estas partes integrantes do sanduíche, isso é o que deveria acontecer quando todo o cheiro se dissipasse. E o que você me diz do plástico, da borracha e do metal, todos materiais não orgânicos que, ainda assim, têm cheiro? Não vale pra eles sua teoria?

O senhor deu um leve sorriso levando o braço novamente aos ombros da esposa (“donde nunca deveriam ter saído” – Pensou). Vendo até certa graça na réplica do garoto: leviana Mas lá com alguma presença de espírito; e furtou-se de respondê-lo, sobretudo, por julgar que a discussão era, muito além de imprópria, sem pé nem cabeça.

A senhora, tomada ainda pela dor da ofensa a que fora submetida cinco minutos antes, tratou de avivar o litígio: - Que garoto insolente. Depois de me chamar de gorda, deixar a van toda fedendo, ainda se acha no direito de falar besteiras como esta. – Reclamou ela olhando para aquele senhor que a havia defendido naquele embate, ainda que por mero posicionamento crítico.

Antes que a discussão fosse além, uma voz profunda e temerária se impôs a desavença e ordenou ao motorista: - Pare a van! – No que foi atendido de pronto. Todos se voltaram para o final do veículo, de onde se praticava aquela voz um tanto rouca (mas cheia de subtons complexos e dona de uma autoridade irretorquível), e se deram diante daquela figura austera, sob uma indumentária incomum constituída, em particular, por capa, botas e máscara, e onde no peito se estampava a logomarca do destemido homem-morcego. Como não fosse possível questionar a autoridade que vinha colada à voz, aos trajes e ao rígido semblante do herói, serviram-se todos do imperativo de que devia ser mesmo o Batman.

Após o silêncio seguido à parada do automóvel, o homem-morcego continuou, olhando diretamente para o garoto:

- Em primeiro lugar, você não pode comer dentro da van, especialmente com as janelas fechadas. O cheiro não só incomoda algumas pessoas como pode impregnar suas roupas. – tomou a capa nas mãos, levou-a ao nariz e completou: - Vejo só, o cheiro do hambúrguer entranhou na minha capa. Imagine você se eu estivesse indo diretamente para uma reunião com o comissário ou o prefeito... Seria realmente desagradável entrar na sala com esse cheiro de gordura na minha capa.

O rapaz, que ainda mastigava os últimos pedaços de seu sanduíche, permaneceu por alguns segundos com a boca aberta, por cuja abertura se podia ver, ainda, o bolo alimentar que se formava de forma irregular, quando teve a notícia, por parte do todo poderoso Batman, de que deveria sair do ônibus naquele exato instante.

A senhora, que ouvia tudo com um sorriso que ia de um lado a outra daquela boca experiente não apenas nas reclamações de direitos, como, provavelmente, nas largas refeições que fazia, comentou satisfeita e aliviada:

- Graças a Deus o bom senso venceu... – Mas antes que fechasse a boca, foi interrompida pelo homem-morcego que se dirigiu a ela assim: - A senhora, também, não tem o direito de ocupar tanto espaço. Então, a não ser que pague por duas passagens deverá se retirar agora mesmo junto com o rapaz.

Não se sabe bem se o super-herói sustentou aquela posição por força de um rigoroso senso de justiça em que declarava a senhora, de certa forma, culpada pela condição de sua estrutura corporal (certamente não levando em conta o caso de seu arqui-inimigo Pingüim, que ostentava uma volumosa barriga ainda que submetido, desde tão cedo, a uma dieta a base de peixes), ou se tomou a sentença como forma de amenizar a derrota do menino que, em um dado momento, lembrou-lhe a personalidade juvenil e arrojada de seu pequeno ajudante e afilhado Robin. Mas o caso é que nenhuma palavra, além das necessárias a definição das sentenças, foi dita a mais.

- Que absurdo.. – Sussurrou a senhora um pouco temerosa de uma possível reação do homem encapuzado. Levantou-se, fazendo menção de retirar-se, já que pagar uma segunda passagem seria assumir como culpa a condenação, pedindo passagem ao homem que se colocava entre ela e a saída. Como o corpo da mulher fosse desproporcionalmente grande em relação ao espaço que sobrava como passagem, teve o homem que descer da van para dar chance a senhora de se retirar do veículo sem que para isso fosse necessário passar por cima de alguém.

Curioso mesmo é que quando a van partiu, permaneceram no local não apenas a senhora e o garoto como também esse homem que havia descido para dar passagem a ela. Não se sabe se porque tivera chegado ao seu destino ou por receio do que pudesse fazer o homem-de-preto, tão sinistramente resoluto e imperturbável.

Os três se entreolharam e, assim, terminou a história; sem se ouvir reclamações de nenhuma das partes, do que se pode inferir que, mais uma vez, prevaleceu a justiça. Provável, ainda, que o homem-morcego tenha, antes do seu destino final, dado uma rápida passada na bat-caverna com vistas a trocar o uniforme que cheirava a hambúrguer. Mas certa mesmo foi a desconfiança em que restaram aqueles todos que testemunharam a cena: se era apenas um lunático fantasiado fora de época, ou se era, de fato, um moral e inquestionável Batman, obrigado a fazer as vezes de passageiro de van porque o batmóvel estivesse ainda em conserto.

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