sábado, 7 de agosto de 2010

O Colosso de Rhodes

Entre julho e agosto daquele ano, qualquer um que circulasse pelos arredores do Castelo, desde o Museu de Belas Artes até o Tribunal da Justiça Eleitoral, teria a desfelicidade de encontrar a velhinha em questão. “Desfelicidade” não porque fosse velha e, certamente, não por desgosto a senhora – que tão mal não fazia a ninguém – mas pelo súbito questionamento ao termo humanidade com o qual se depararia um que fosse, assim,  afeito a questionamentos.

O andar vagaroso acusava a debilidade do corpo, que se mantinha arqueado numa rigidez tão plena que nos fazia imaginar os ossos petrificados na forma de parábola tal que o olhar da mulher não poderia subir acima dos ombros de um que alcançasse pelo menos um metro e setenta de altura. Mas era o aspecto ímprobo das roupas da senhora que dava a tonalidade miserável e a tez anti-social da personagem. De fato, abuso seria até mesmo chamar “roupas” àqueles trajes, que se constituíam de dois pedaços de tecido – possivelmente antigos lençóis, puídos pela usura do tempo – enrolados desde os ombros até a cintura, um de cada lado, de forma que se cruzassem ali na região dos quadris, descendo pelas pernas conforme alguma espécie de saia pouco ajustada. Do improviso oportuno, ainda que o tétrico e o trágico tão prontamente se exprimissem naquela figura – que tão engenhosamente ajustara as “roupas de cama” ao corpo -, sobrava-lhe alguma dose de comicidade e seria permitido até rir da senhora, não fossem os últimos traços de dignidade roubados por um único tablete de balas halls que a velha trazia não mão esquerda estendida, como se o oferecesse em troca de algumas moedas para as quais a mão direita se mostrava em espera, segurando, um pouco abaixo dos ombros, um copo plástico descartável.

Os cabelos brancos, que se podia pensar serem cinzas dado o estado de encardimento em que se encontravam, interrompiam-se nos ombros e pareciam ignorar os pesarosos movimentos da cabeça, petrificados tal como os ossos que sustentavam aquela carcaça. Os olhos baixos escapavam por baixo das pálpebras semi-cerradas e alcançavam timidamente os olhos dos passantes. Haveria o passante, no entanto, de fazer certo esforço e inclinar-se um pouco diante da senhora se pretendesse encará-la, quem sabe, em aceno de humanidade que se pediria acompanhado do gesto de colocar algumas moedas no copo que a mão segurava - e isso, ignorando o tablete de halls que se estendia junto à outra mão, como que oferecido como objeto de troca na transação que se sugeria. Então, a velha sacudiria – não sem alguma dificuldade – o copo em reposta de agradecimento e continuaria sua peregrinação na mesma forma esculpida em que o corpo se apresentava - duro como o mármore -, sem que os braços deixassem a posição do trato, estendidos até quando o caminho era vazio e silencioso – como a própria protagonista da história - numa tarde de domingo no centro do Rio.

O recurso era claro. As esmolas eram parcimoniosamente mendigadas, já que na mão esquerda o tablete de halls, visivelmente amarrotado pelo manuseio constante, se queria afirmar como produto de venda. Não era, e o mais insensível dos homens poderia reconhecer o mecanismo pelo qual a senhora intentava se resguardar de algum acanhamento de cunho moral. Bem, talvez não o mais insensível dos homens...

Certo dia, parou-se diante da velha um rapaz de terno e gravata com o rosto liso, marcado, talvez, apenas pela ingenuidade dos seus vinte e poucos anos, tirou do bolso a moeda de maior valor e depositou no copo da senhora. Mas antes que a cena estivesse terminada, surpreendentemente, o rapaz levou a mão direita ao pacote que se comprimia na mão esquerda da velha e segurou. A fotografia em que velha e rapaz compartilhavam estáticos o mesmo tablete de halls, dividido entre a mão esquerda da senhora e a mão direita do jovem, durou cerca de dois segundos, quando veio, então, seguida de duas ou três tentativas, por parte do jovem, de tomar o pacote da mão da senhora. A velha apertou como nunca aqueles dedos frágeis e inflexíveis e reteve as balas na mão. Foi quando o rapaz se deu conta do mal entendido, largou o pacote em questão e seguiu constrangido o seu trajeto até o escritório em que trabalhava. Constrangido não pela luta que se teve em segundos pelo pacote de balas, mas pela ausência de bom senso que o assaltou naquele momento. Afinal, aquele tablete de halls não era – ou não deveria ser – apenas mais um produto para venda através do qual esmolaria a velha, recebendo ofertas superestimadas por um mísero pacote de balas que não valia, de fato, mais que alguns centavos. Era ele, vertical e ereto como se queria a velha, o próprio símbolo de sua dignidade perdida. Um correlato material não apenas da juventude, que se esvaiu no corpo agora arqueado, mas a estandartização de uma moral empedernida, vazia e sem sentido; pilar de sustentação de um último sopro de consciência da velha, que se não era louca, lúcida tampouco era.

3 comentários:

  1. Senhorinha verídica essa?

    Ps: Comentário respondido no meu blog. ;)

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  2. Este comentário foi removido pelo autor.

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  3. como o constrangimento tem o poder cômico para quem não o sofre me pus a rir do pobre rapaz

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