terça-feira, 28 de setembro de 2010

M93

Entrar no ônibus parece-me a parte mais difícil embora também seja difícil sair dele. Mas como tudo na vida, pior que o golpe de misericórdia é a tortura diligente e silenciosa que procura amparo psicológico antes do problema físico. Em todo caso, entrei. Contive-me lá dentro como o líquido se contém na garrafa. Não me era possível sair a não ser pelo único lugar que define a saída no distintivo de uma garrafa: o gargalo.

O ônibus andou uns poucos metros e parou diante de um quilométrico engarrafamento e só a partir desse dia me foi possível compreender porque assim o chamam. Estávamos todos enfileirados no trajeto de alguma indústria perversa. A maquinária daquele organismo arrastava, a lentos passos, umas milhares de unidades da produção com destino aos seus respectivos mercados. Continha-nos grossos recipientes feitos de vidro e metal, e tirávam-nos, naquela tormenta de pequenos incômodos, o mais ínfimo nódulo de uma possível individualidade. Tínhamos todos a consistência dos líquidos que são passíveis de conter-se em garrafas. Como refrigerante quente, embora não tão doce, borbulhavamos apenas quando abria-se espaço para o que de nós tornava-se gás. Quão triste era quando essa minha ingênua metáfora ganhava dimensão literal... provável que eu nem devesse tê-la armado, mas, de fato, dentre os incômodos que se poderia listar seria esse o que melhor definiria a ocasião em acordo com a analogia em que pessoas comuns se constituíam da mesma matéria de um quente e pouco agradável refrigerante.

Eu olhava pela janela. Apenas aos olhos o ambiente me tinha em certo conforto. A fumaça negra que se espargia lá fora encatava-me pela soltura e eu, ali, desejava um pouco de dióxido de carbono como um peixe que tem pulmões e espreita no fundo do lago deseja o ar da superfície. Eu só olhava pela janela enquanto o ônibus permanecia parado. Andava, é verdade, mas permanecia parado - assim como a Terra que gira abaixo dos pés, e permanece, também, parada. E Newton não explicaria isso melhor que o senhor ao meu lado, que reclamava de 4 em 4 minutos que iria chegar atrasado ao trabalho.

Uma sirene enlouquecida fazia-se baixa e aos poucos inundava o ambiente. Avolumava-se e preenchia, pelas pequenas frestas, aquele recipiente no qual eu estava contido. Era um som louco de fato. A imagem que suscitava nao podia ser senão a de um demente clínico a gritar pedindo passagem ou anunciando o apocalipse. Aos poucos, conforme aqueles latidos alucinados da sirene ganhavam a imagem inquieta da ambulância, os carros assumiam as personalidades de seus donos e tentavam ajeitar-se para dar passagem ao veículo berrante. Percebi, então, que todos no ônibus olhavam pela janela com semelhante obstinação. Senti-me parte daquela grande massa uniforme que era o líquido que o onibus continha. E pude sentir, com a unidade perene dos sentidos coletivos, o que se passava com toda a gente. Penetravam na ambulância e com diligência insensata mapeavam todas as possibilidades. Descreviam com imaginação cada traço oculto dos habitantes daquela viatura. É claro que alguns deveriam duvidar que houvesse ali um doente - esses preferiam supor a desonestidade do motorista que usava a sirene como medida de por-se mais alto. Mas a grande maioria, aqueles dos quais eu fazia parte, o grosso do líquido por assim dizer, olhavam o sujeito na maca na luta contra uma morte prematura e o invejavam. Senti também essa inveja, mas no surto de minha conspícua racionalidade fiz-me recobrar o panorama da coisa. E daí que ele estivesse confortavelmente deitado, que o seu carro andasse em velocidade superior a todos os outros e que ele, possivelmente, chegasse ao seu destino antes de qualquer um de nós? O seu destino seria, de qualquer forma, a ala de emergência de um mórbido hospital ou um sombrio necrotério – enfim, a morte.

E enquanto um sem rosto ao meu lado se ajeitava e eu sentia o desconforto lancinante daquela garrafa, dissolvia-se a minha racionalidade pretensa e insensível. Transformava-me, então, no quinhão indeciso de um bruto coletivo e novamente pude sentir o torpor palpitante daquele líquido organismo que me envolvia.

A morte. Ah! A morte! E que inveja eu sentia daquele sortudo.

4 comentários:

  1. publicado originalmente em www.fotolog.com/brunofritz

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  2. É, quem nunca foi engarrafado assim, que atire a primeira rolha.

    Gostei do texto, moço. Fiquei bastante desconfortável com a atmosfera limítrofe que você criou (ou reproduziu) e acredito que talvez fosse a idéia... ;)

    bjos

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  3. talvez fosse... Acho que a gente nunca sabe qual a idéia até que o texto termina (ou fica pronto).

    Mas eu tava pensando sobre o texto, agora que você falou... sobre quando o Brown tentou descobrir alguma coisa sobre o movimento das partículas nos líquidos... Será que ele descobriu alguma coisa? Tipo, se as partículas se sentiam desconfortáveis, pelo menos..?

    bjs

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