Uma mulher e dois
homens conversam na calçada de uma esquina, em frente a um bar, numa
quarta-feira sem muito movimento naquele estabelecimento, sob a
iluminação amarela e precária de um poste de luz, por volta das
2:30 da madrugada.
A mulher, um tanto elegante sob uma jaqueta de couro preto vestida por cima de uma camiseta de botões de um tecido fino, com o cachecol enrolado com pompa ao pescoço, gesticulava enquanto dizia aos seus dois interlocutores:
- Mamãe tinha aquele
apartamento enorme no Jardim Botânico. Lembra, G.? – lançou olhar
a um dos homens que estavam consigo e continuou – Eu dava aquelas
festas incríveis quando ela viajava. Saudades daquele apartamento...
G., que aparentava ser
apenas um pouco mais velho que a mulher, em cuja elegância e
expressões faciais se poderia apoiar a sugetão de que tinha cerca
de 40 anos de idade, confirmou com ela as lembranças do antigo
apartamento ao se dirigir ao terceiro com alguma intimidade e
legítima satisfação:
- O apartamento da mãe
dela era um sonho. Quatro quartos, uma sala gigantesca e dois
banheiros lindos. – bebeu um gole da taça de vinho que tinha na
mão – Transei e cheirei muito naqueles banheiros – completou.
Ela, antes que ele
recuperasse o fôlego depois da última fala, iniciou nova narrativa:
- Lembra daquela vez
que alguém quebrou uma pia, fudendo ou sei lá o quê? E no dia
seguinte mamãe chegou, entrou no banheiro e saiu sem dizer nada, com
sangue nos olhos...
- Acho que foram Marcos
e Ney – interrompeu G. com sincronia a fala dela, que prosseguiu –
Foram eles mesmo? Não sei. Sei que mamãe chegou, entrou no
banheiro pra tomar banho, saiu de cara fechada e não falou nada
comigo durante umas 2 horas.
O terceiro perguntou
com honesto interesse: - Que desculpa você deu a ela?
- Desculpa?! Minha mãe
nunca foi burra, e se tem uma coisa que deixava ela fora de si era
mentira mal contada. Por isso, quando uma coisa dessas acontecia, eu
evitava mentir. Só fazia se tivesse um álibi muito razoável. –
Logo assim que a fala da mulher terminou, num ritmo que poderia fazer
aquilo parecer uma cena de filme, um taxi parou do outro lado da rua
e buzinou seco duas vezes. Os três olharam para o carro e depois
entre si, não reconhecendo, contudo, a razão daquele sinal.
O motorista do táxi abriu a porta do carro e se levantou esbaforido e entusiasmado, vindo em direção a mulher. Era um sujeito baixinho, careca, com bigode grisalho, aliás, da cor dos cabelos que ainda lhe restavam ao redor do cucuruto. Trajava calça jeans e um suéter listrado que lhe ia por dentro de um cinto marrom da cor dos sapatos. Parou-se em frente a mulher , esticando as mãos até seus ombros e segurando-os com firmeza, quando se pode ver um relógio prateado de ponteiro em seu punho. Exclamou, então: - V.?!
Ela, sem ainda
reconhecer o cinquentão, mas se esforçando sem gratuidade alguma
por fazê-lo, já que o senhor sabia seu nome e quando o disse alguma
intimidade parece lher ter saltado com honesta simpatia através dos
olhos, balançou a cabeça como se perguntasse sem jeito ao homem
pelo seu nome.
- J.! J. Barcelos! Não
lembra de mim?! – disse o senhor.
Alguma ideia na cabeça
de V. parecia trabalhar em busca da memória perdida, mas antes que
ela pudesse encontrar o homem se adiantou: - Estudamos juntos na CAO!
Turma de 95, lembra?
- J.! – Devolveu ela
o reconhecimento, aliviada. – Quanto tempo?! Nossa, deve fazer uns
10 anos que não te vejo.
- Quatorze e alguns
meses - corrigiu ele, acrescentando, ainda, com um ar forçado de
desleixo – mas quem tá contando, né? - e seguiu com a conversa –
E você? Como tá? Ainda atuando?!
- Nada J. Parei de
atuar há alguns anos. Faço, de vez em quando, uma ponta aqui e ali
em trabalhos de amigos, mas só pela camaradagem. – Disse ela.
- Poxa, e tem feito o
quê nesse tempo? – perguntou indiscritamente.
Ela: - Trabalho com
produção.
- Teatro, cinema?! –
seguindo com o inquérito.
- Teatro, eventos,
festas... Todo tipo de produção. Mas e você, dirigindo táxi? –
E nesse momento sentiu-se no ar um jogo de forças estranhas, onde as
perguntas pareciam se estabelecer conforme disputa em que se deveriam
, V. e o senhor, afirmar, numa projeção dos anos que se passaram
desde seu último encontro, como bem sucedidos profissionais desde o
ponto de vista crítico de cada um. Os dois homens ao lado de V.,
alheios ao diálogo que tomou lugar, limitavam-se a sorrir e balançar
a cabeça conforme se exigia deles alguma presença de espírito.
- Continuo atuando. Tô
fazendo um curta agora. Esse visual aqui é pro filme – e passou a
mão sobre a cabeça e no rosto, sob o nariz, indicando a cabeça
calva e o bigode. – Um curta do M. Karini, conhece ele? – e deu
apenas meio segundo (o tempo para recuperar o ar perdido durante a
fala ininterrupta) interrompendo uma negação iminente da parte dela,
continuando a fala – O táxi é só um bico, mas é um laboratório
incrível. Você conhece todo o tipo de gente, gente real,
verdadeira. Eu acho que interpretação é isso. Você tem que beber
nas ruas. Naturalismo é interpretar como vivem as pessoas comuns, a
prostituta, o cafetão, o playboy, o advogado... – Nesse momento,
G. e o terceiro se entreolharam. G. deu mais um gole em seu vinho e
voltaram os dois novamente as vistas ao senhor, sem que nenhum
julgamento mais estreito tomasse forma aparente. O homem continuou em
seu monólogo, enquanto V. lhe endereçava um sorriso artificial e
honesto ao mesmo tempo, pois não queria de fato sorrir, mas não
tendo antipatia alguma por aquele senhor, pedia-se ali que sorrisse
como sinal de acolhimento: - Outro dia, imagine você, eu tava
passando ali por Ipanema, em frente aquele restaurante italiano. Sabe
aquele?! Do mesmo dono daquele hotel no Leblon?! Enfim, advinha quem
fez sinal pro meu táxi? Tony Ramos! Ele entrou, falou que tava indo
pra Barra da Tijuca e eu ali, taxista, sem sair um momento do
personagem. Falei pra ele “conheço o senhor de algum lugar, o
senhor não trabalha na televisão?”, ele bufou e me respondeu meio
impaciente “trabalho sim, sou ator”. Você acredita nisso?
Realismo puro. Fui puxando conversa a viagem toda, assuntos banais,
ele meio irritado durante todo o trajeto. Em nenhum momento imaginou
que eu também fosse ator. Curioso né? Essas coincidências da
vida...
G., a essa altura já dirigia atenção para um grupo de garotões que havia parado ao lado deles há alguns minutos, enquanto o terceiro pensava consigo: “Qual a coincidência? O Tony Ramos pegou um táxi. E aí?”. V. começava a sentir-se desconfortável com a narração e a performance do antigo colega ao ponto que o sorriso já não mais se sustentava, deixando no lugar apenas uma boca um tanto distorcida, porque ela também já não tivesse a medida do gesto que articulavam os lábios.
O senhor, sentindo o enfado que se armava, onde já não houvesse outro interlocutor interessado que não ele mesmo, olhou ao relógio e disse: - Bom, tenho que ir. Fechar o ponto do dia. Pago 120 reais na diária desse carro, acredita?
V., solidária a
inconformidade de J., exclamou: - Nossa! – e em seguida pediu ao
colega um cartão, fazendo referência ao fato de que volta e meia
precisava de táxi. Ele abriu a carteira de couro marrom, em
combinação com o cinto e o sapato, tirando dali um cartão que
entregou a ela. Abraçou-a e se despediu com essas palavras: - Muito
bom te ver. Temos que marcar alguma coisa algum dia. – Ela
confirmou a convenção com polimento: - Vamos marcar sim!
O homem entrou no táxi,
acenou com uma buzinada sutil e seguiu seu caminho.
V. retomou a atenção
aos dois colegas e perguntou: - Sobre o que falávamos?! – Os dois
pensaram um pouco e, em sincronia, fizeram menção a história do
antigo apartamento da mãe de V. no Jardim Botânico, mas como o
assunto já estivesse esgotado, virou-se para o terceiro e disse: - E
você B.? Fala alguma coisa você. Você tá aí caladão, não falou
quase nada a noite inteira.
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