A questão sobre a legalização ou criminalização do aborto esconde uma disputa ideológica mais essencial que a questão em si. Mas tal disputa parece ter ficado de lado quando os reclamantes de ambos os lados levantam suas vozes sobre as particularidades dessa uma disputa ideológica, largando-se fanaticamente sobre a questão, encetando o direito a vida – considerada a partir da formação original do embrião ou da fecundação primeira – ou o direito do indivíduo – a mulher, no caso – de determinar o curso da sua vida particular (sexual, afetiva e, mesmo, fisiológica), e ignorando quase por completo que uma discussão mais ampla deve tomar lugar na esfera social.
Quando a mulher,
entendida como pertencente a um grupo minoritário (no sentido dos
direitos reivindicados a uma questão de gênero) evoca o direito
sobre o seu corpo (ainda que seja um direito legítimo) ela permite
que a discussão percorra um trajeto superfícial que não revela o
caráter social mais amplo e necessário da questão. Quero dizer com
isso que a criminalização do aborto projeta – nas bases
ideológicas mais essenciais dessa disputa – a redefinição e
perda de um direito que não é apenas da mulher, mas do indivíduo
enquanto membro de uma sociedade acolhida por um estado.
A definição de que o
embrião é já uma alma (e que assim pressupõe a existência da
alma nos termos dos quais a filiação religiosa é pretendente) quer
projetar sobre o estado a incumbência da proteção desse,
limitando, assim, os direitos da mulher sobre o seu corpo e, em
última instância, sobre a sua sexualidade. Tal assumpção sugere
que o Estado ceda a uma posição ideológica que tem em vista as
premissas de instituições religiosas particulares, transformando
essa premissa – a primeira vista religiosa – em uma determinação
política. Ou seja, conforme todos os cidadãos adquirem direitos que
estão previstos nas cartilhas de determinada religião, ao mesmo
tempo, eles se encarceram sob os deveres descritos também nestas
cartilhas.
O direito do embrião
de se desenvolver em um indivíduo ativo, no entanto, é uma pura
abstração (como são, em todo caso, os direitos previstos e
instituídos e a determinação social e jurídica desses direitos).
A posição ideológica outrossim defendida sob a nomínia desse
direito, por outro lado, aparece de forma mais concreta na atual
situação política do país. Parece desnecessário dizer que tal
posição ideológica tem como anteparo as religiões cristãs de uma
forma geral, mas o que não aparece nessa bandeira é que a atual
disputa (a disputa particular sobre legalização ou criminalização
do aborto) se apresenta segundo a realidade em que um grupo
particular de cristãos ganha terreno no cenário político e põe a
frente essa (e outras disputas menores) que, apesar de visíveis e em
pauta em tempos passados, não assumiam até então a dimensão
política que ora temos em vista. Forçando, assim, uma investida
pungente contra o Estado laico e angariando na oposição corrente um
antagonismo que generaliza e se reveste da rivalidade contra a
própria religião. O Estado laico, no entanto, não deve ser
anti-religioso (um Estado ateu, por definição), mas um estado em
que a religião não implica diretamente aos cidadãos como um todo
uma determinação que deveria ser propriamente política.
Diante desse cenário,
é impendente que as instituições religiosas segmentárias se
manifestem em favor do próprio laicismo do Estado, sob o risco
inconveniente de deixarem de existir: Um Estado religioso é,
invariavelmente, um Estado que suporta apenas uma religão. A
religião, em todo caso, é definida pelas suas instituições; e
instituições distintas, como ocorre, fundamentam religiões
distintas em cujos deuses e dógmas (ainda quando partilhem nomes e
origens afins) se promovem direitos e deveres distintos. Ao mesmo
tempo, parece-me importante que a disputa em razão da legalidade ou
não do aborto deva sempre estar na visada desse contexto e não se
transforme numa disputa alijada onde, talvez, uma maioria composta
por grupos culturalmente influenciados pelo “repertório” cristão
tomaria a posição religiosa em detrimento da posição política,
sem perceber que, desse modo, eles mesmos estão sendo preteridos e
submetidos na disputa política.
É preciso, assim, que
os partidários da posição religiosa tenham nome, que suas
instituições estejam visíveis e que a disputa que tem em destaque
a questão do aborto seja vista como expondo de forma irreversível à
vulnerabilidade o estado laico, impossibilitando a orientação a uma
sociedade inclusiva a diversidade cultural, étnica e religiosa - e
gênero.
Vivemos em uma
sociedade sexista em que as revindicações sob bandeira de gênero
são legítimas e devem ter lugar e evidência nas discussões
políticas atuais e advindas. Mas essa guerra particular, parece-me
muito maior e nenhuma bandeira deveria ser alçada que não a
bandeira da justiça social, da participação política plural e
inclusiva e dos deveres postos em vigilância em nome dos direitos
diversos dos grupos, instituições e indivíduos. Do direito ao
aborto legítimo e subvencionado pelo estado, do direito a educação
e saúde, a livre circulação de ideias e informações, mas tambem
o direito à prática religiosa. Sempre quando esses direitos se
mostrarem contraditórios e conflitantes é preciso retornar as bases
da disputa ideológica e se verificar se a razão da disputa é mesmo
a noção imprecisa de justiça e humanidade (que deve abarcar
indivíduos tão distintos) ou se é o caso da manipulação
(intencional ou não) em favor de um grupo minoritário.
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