Felipe, de 11 anos,
pula de cima da cama com um boneco empunhado e alcança uma massa de
brinquedos depositada no chão, projetando a figura que tem em mãos
como se se dispondo a atacar um inimigo cruel, a quem não se deve
conceder abono nem na fantasia mais inocente.
Do outro lado do
quarto, Luis, prestes a completar seu décimo segundo ano de vida,
organiza uma fortaleza com caixas de sapato e livros, para servir de
base ao exército de plástico que mantém ao seu redor. Silencioso,
trabalha diligente naquela organização enquanto, vez por outra,
levanta a cabeça para observar a movimentação do amigo.
Trata-se de uma
brincadeira em comum, mas em que os dois participantes, em juízo de
duas personalidades muito distintas respectivamente, encontram prazer
e motivação. Felipe, aos golpes e gritos, encenando situações de
combate e, eventualmente, narrando sua própria continuidade. Luis,
concentrado, escolhendo posições estratégicas e exercitando seu
talento em encontrar soluções arquitetônicas, que deveriam
satisfazer tanto aos desígnios da diplomacia entre amigos quanto à
guerra fictícia que se anuncia como cenário em vista.
A mãe entra no
quarto e interrompe a ação, ordenando indulgentemente às crianças
a seguir para a cozinha, onde o lanche se faz à espera. No caminho
do quarto à cozinha, encontram-se o pai e a avó de Luis, sentados
no sofá, assistindo tevê, calados. O pai tem consigo um copo de
refrigerante, enquanto a avó se entretem à mão com um de Whisky. A
sala se estende como um largo corredor entre a porta do quarto e a
abertura que inicia a cozinha, mas a resignação dos dois diante do
aparelho determina que a única atenção dirigida à cena pelas
crianças se direcione aos ruídos que se projetam da televisão para
fora, de onde se pode ouvir com clareza apenas a voz do apresentador
de um programa de auditório, que tanto reconhece o despropósito do
show que se limita a ler as indicações de roteiro no prompt
eletrônico, incluindo aqui e ali uma expressão indiomática
qualquer para dar cor a uma fala que não enaltece senão o enfado da
proposta.
Durante a refeição,
Felipe explica a Luis seus planos para o grupo de soldados que se
encontram sob seu comando, enquanto Luis, com os olhos e ouvidos
atentos ao amigo, mastiga apropriadamente cada pedaço que, com uma
ou duas mordidas, arranca do sanduíche. Vez por outra, pergunta
sobre uma qualquer irrelevância, mas apenas para garantir ao outro a
atenção que, de fato, investe em seu interlocutor.
Ao cair da noite,
após muitas idas e voltas, brincadeiras findas e reiniciadas, a mãe
de Luis retorna ao quarto e anuncia aos garotos que a hora de deitar
se aproxima. Ela explica a Felipe onde ele deve dormir e orienta - em
mãos com uma toalha entregue a ele em seguida – o menino que siga
para o banho. Luis, no conforto e intimidade de sua própria casa,
cuida de si e esforça-se ao máximo para que o amigo não se sinta
deslocado. Por exemplo, quando lhe pede um copo d’água, conduz-o
ao armário em que se guardam os copos e lhe apresenta a garrafa com
água na porta da geladeira, sem contudo tomá-la consigo, dando a
entender ao menino que abra a geladeira e se sirva sempre que
desejar.
Já deitados, a luz
se apaga. Alguns minutos em silêncio e Felipe chama o amigo: “Você
tá acordado ainda?!”
Luis responde: “O
que é?” - com economia, mas sem a intenção de ser rude.
Felipe, então,
explica que alguma coisa se forma em seu peito, um desconforto sutil,
mas suficiente para tirar-lhe o sono. Ao mesmo tempo em que se
articula para explicar-se ao amigo, começa a entender do que se
trata. Percebe-se, subitamente, “longe de casa”. Longe de toda
aquela estrutura que, nos últimos 11 anos, havia sido a sua
fortaleza. Pai e mãe - os dois que até ali se afirmaram como a
linha de frente sempre disposta a protegê-lo do menos anunciado
perigo - lá não estão. Ansiedade e melancolia se misturam. Ele
levanta o tronco e se enconsta na cabeceira da cama. Pede a Luis que
acenda a luz.
Luis atende,
imediatamente. Em seguida, fixa o olhar no rosto do colega por alguns
segundos e pergunta, um pouco constrangido, mas com curiosidade
genuína: “Você tá chorando?”
Felipe limpa o rosto
imediatamente, mas sem efetivamente negar a pergunta, diz que sente
falta da mãe.
Luis não sabe o que
fazer e acaba batendo na porta do quarto dos pais – a quem pede
ajuda. O pai pergunta: “O que a gente faz?” - Transferindo
imediatamente à mãe a responsabilidade de tomar uma decisão em
ação.
A mãe segue ao
quarto, conversa com Felipe tentando acalmá-lo. Ele retém o choro,
mas as lágrimas ainda assim escorrem, enquanto ele explica que não
está acostumado e dormir fora de casa. Ora, ele mesmo talvez não
imaginasse que o cair da noite traria todos aqueles sentimentos à
tona; que o entusiasmo do dia se transformaria em medo e insegurança
e em todo aquele sussurrar de vozes ausentes pela casa toda vez que a
luz se apaga e o silêncio quase absoluto novamente se instaura.
Repetem o ritual uma, duas, três vezes. Depois disso, a mãe desiste
e decide que a única solução razoável é deixá-lo à própria
sorte, pensando, talvez, que o amadurecimento também pede certos
sacrifícios. Isso porque, àquela hora, não seria nem prático nem
razoável ceder à fraqueza do menino, também porque seus pais
morassem a pelo menos 40 minutos de carro dali.
Levantou-se, então,
a avó, não sem alguma dificuldade. Não porque ao corpo envelhecido
faltasse força, mas porque lhe faltava equilíbrio, e o andar
cambaleante se justificava à medida que sua passagem espalhava o
cheiro de álcool, que lhe evadia do corpo, pelo hálito e pelos
poros - pelo hálito, principalmente.
A essa altura,
conversavam as crianças com a luz do quarto acesa. Porque Felipe não
conseguisse dormir, compreendera Luis que, também ele, não
dormiria, oferecendo-se, então, como única opção, e opção mais
correta, aquela de oferecer companhia ao colega, ainda que deitado à
cama e com lençóis esticados sobre o corpo, dos pés ao peito.
A avó entrou no
quarto e, junto com ela, o cheiro de alcool. Ficaram os dois em
silêncio, mas os olhos vermelhos e umedecidos de Felipe acusavam o
choro que precipitou toda a situação.
“O que tá
acontecendo aqui?” - Perguntou a avó, e soluçou uma vez.
Explicou Luis: “O
Felipe não consegue dormir.”
“Não consegue
dormir por que?” - Retrucou a avó sem muita delicadeza.
Nesse instante, a
figura ameaçadora da mulher embreagada e pouco compassiva,
pressionava ainda mais o sentimento de insegurança que se acumulava
dentro do menino que, antes de uma resposta de Luis em vista, tomou
parte no diálogo, não conseguindo, no entanto, evitar as lágrimas
e o choro à medida que dizia: “Eu... sinto... falta da minha… da
minha mãe. Eu preciso... da minha mãe...”
A senhora engoliu a
seco a própria pergunta em espanto. Estava absolutamente surpresa
que um rapaz daquela idade ainda se dispusesse a caprichos como
aquele. Mas o espanto passou e logo deu lugar a irritação. Ela
perguntou uma vez: “Precisa da sua mãe?!” - e repetiu, mudando o
rítmo da sentença, impregnando nela um misto de zombaria e
despeito: “Precisa da sua mãe, é?!” - acrescentou ainda:
“Precisa da sua mãe pra que?! Pra te dar ‘mamá’?!” - já
quando a zombaria se tornava tão evidente, que sobrava às
crianças apenas a atenção e os olhos arregalados. Deixou cair a
alça do sutiã, puxou para fora com a mão direta o seio do mesmo
lado, que imediatamente murchou e se espalhou sobre a mão enrugada,
ao mesmo tempo sustentando e balançando o peito na frente do garoto,
enquanto gritava: “Mama aqui, ó! Você quer mamá?! Então mama
aqui, seu muleque mimado! Mama!”
Performou durante
quase 1 minuto, até retornar a um estado de animo mais ameno e se
retirar do quarto, sem dizer mais nada. Com ela, foi-se embora o
cheiro de álcool. As crianças apagaram as luzes e fecharam os
olhos, não se sabe porque dispostas mesmo a dormir e tentar esquecer
por algumas horas a nada ortodoxa cena, ou apenas por medo de que
acontecesse mais uma vez, ainda que já naquele instante, no escuro
das palpebras, ruminavam os traumas prováveis que naquela noite
tiveram origem.
A avó voltou ao seu
quarto, apoiando-se pelas paredes. Pensava, quase arrependida: “Será
que eu fui muito longe?!” - mas logo se justificativa: “Não se
deve dar moleza a uma criança mimada. Hoje chora porque está longe
da mãe, amanhã porque não conseguiu a vaga de emprego. O mundo é
um lugar dificil...”
Nem trauma, nem
disciplina. Para ela, cada um a lidar com suas próprias emoções.
As dela, certamente afloradas pela bebida, repercutiam naqueles a sua
volta como as deles repercutiam nela. O menino roubou-lhe o sono,
teve em resposta o que teve. Cada um conduzindo a si mesmo - e por
conta própria – ao que se deve tornar. “O que não nos mata, nos
deixa mais fortes”, teria ela pensado se a fraseologia nietzschiana
lhe estivesse à disposição. Não estava, ainda que o espírito
dionisíaco lhe caísse a caráter.
Deitou a cabeça no
travesseiro, virou-se para o lado e começou a roncar.