domingo, 27 de maio de 2018

Uma crônica bem humorada






A van pára e a porta se abre, deslizando como um pedaço inerte de matéria sendo movido por um dispositivo autômato qualquer, uma mulher de mãos dadas com uma criança - de, talvez, 6 anos de idade – segura a mochila do filho pela alça, enquanto projeta a criança para dentro da van, oferecendo o impulso necessário para que o pequeno ultrapasse o obstáculo que é a alta soleira do veículo para as suas reduzidas dimensões. Depois de concluída essa ação, pede ao menino que se segure enquanto coloca a mochila também lá dentro. O próximo passo é subir ela mesma, com as dificuldades que seu peso corporal, aparentemente, impõe. Apesar do esforço, ela tem êxito na tarefa e agora procura um lugar para si e para o filho, quando ouve, vindo de trás do veículo, uma voz carregada de intimidade se dirigindo a ela:

- Dona Neuza! O que tá fazendo a essa hora na rua?! Fazendo hora extra – Diz o homem, provavelmente, em referência ao horário em questão, algumas poucas horas depois do final do chamado expediente comercial.

A mulher identifica imediatamente um assento e dirige a ele o seu filho, antes mesmo de responder ao senhor que lhe teve a palavra. Ele sentado, ela devolve: “Minha hora extra é essa aqui!” - enquanto sacode levemente o menino pelo pulso, fazendo dele ao mesmo tempo seu protegido e objeto da conversa que tem em mente. Mas o menino é já suficientemente perspicaz para entender do que se trata e reage, sem nem ser convidado na conversa: “Sou hora extra não! Sou filho!”

A mãe ironiza a fala do menor, pouco versado nas paródias sociais da qual ela toma parte: “É filho?! Filho de quem?! Do seu pai?” - o garoto permanece silente, sem resposta, enquanto ela completa – "Só se for filho dele mesmo, porque pra mim você só dá trabalho.”

O menino fecha a cara e faz bico, sem argumentos para defender sua própria condição de produto de uma cadeia familiar específica, enquanto a mulher se desvia dele e retoma a conversa que se havia iniciado com o senhor no fundo.

- Hora extra que nada! O patrão perde os dedos pra não dar hora extra, seu Walter. - se refere ela ao fato do custo de um tal expediente não ser vantajoso para o seu empregador, mas também deixando emergir da sua fala um julgamento da personalidade do homem em questão - ganancioso a tal ponto que entregaria falanges e metacarpos para não se ver estreitado pelas margens nos seus preciosos rendimentos.

- É, dona Neuza... Se não tá fácil pra eles, imagina pra nós. - diz seu Walter, sempre com um toque de irreverência na voz, como quem pratica alguma intencionada política de coleguismo, mas sem deixar de mencionar que existe no enredo um “nós” e um “eles”, porque é, afinal, um senso particular de identidade que media sua relação amena com a mulher em diálogo e, porque, o outro é quase sempre, por alguma razão, aquele que os expõe a uma situação de transporte como aquela, que se não é a pior possível, tampouco é de algum modo agradável.

“Não tá fácil pra eles?!” - ela questiona a fala do homem - “Que isso, seu Walter?! O senhor já ouviu reclamação de patrão? - e completou como quem muito antes já houvesse domesticado a resposta - “Reclamação de patrão é sempre coisa pouca e bobagem.”

E arracou do “velho” umas boas risadas que, de tão honestas, contagiaram a mulher e provocaram sorrisos coadjuvantes à volta. Pois, riram os dois sonoramente e por alguns segundos mais e quando cessaram, foram imediatamente capturados pelo rosto enfurecido do menino que, a um só tempo decidido e atrapalhado em continência do choro iminente, falava alto, gritava quase: “João! João! Meu nome é joão e eu sou filho! Hora extra o caramba!”

Teriam todos gargalhado por horas a fio não fosse o cansaço do dia acumulado e a obrigação de, em algum momento, retirar o dinheiro do bolso e entregá-lo ao motorista.

Dinheiro na mão e um rosto sério e esse é o retrato final. Pois nem dona Neuza, nem seu Walter têm de sobra tempo, nem ânimo pra fazer da história contada uma “crônica bem humorada”, como o seu condutor gostaria.



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