sábado, 22 de julho de 2017

O Capuccino

Sentado numa mesa lateral em um café esperando alguém. Vira-se para o garçon e pede um capuccino. Retorna, em seguida, a si, com olhar baixo, e inicia consigo mesmo o diálogo, em silêncio:

Como começar uma conversa com um amigo que não se vê há tempos? Pergunto pela família? Eu soube que ele se divorciou da mulher e, em algum lugar da memória, encontro a vaga menção a um filho doente.. leucemia, caxumba? Não tenho certeza agora. Talvez seja melhor não fazer referência a família e, para não pagar de deseducado, lançar um comentário na iminência da despedida; algo como: “espero que esteja tudo bem com a família”. Assim, evito as complicações do assunto e ao mesmo tempo faço menção a estes outros indeterminados, com boa fé cristã e simpatia moderada - desobrigando-o, de qualquer modo, de uma resposta provavelmente inoportuna. Posso perguntar sobre o trabalho. Não, isso não! Nesses tempos de crise, paira sempre a possibilidade de se estar desempregado. Além disso, estamos em uma idade em que, se não é a crise econômica a nos chicotear, uma crise interna vem nos dizer com frequência da insignificância e inutilidade social daquilo que fazemos no exercício da profissão (certa vez conheci um perfumista: e a lembrança certamente vale para ilustrar o caso). Responder-me-ia com pesar no primeiro caso e provavelmente evasivo no segundo. Ninguém aprecia, de fato, a ideia de desabafar as próprias frustrações e fracassos com o amigo eventual, dos encontros bienais quando muito. Aliás, pra tais frustrações o melhor amigo é o próprio ego, que não nos poupa por comiseração as suas verdades, mas, fazendo-o em silêncio, assegura-nos ao menos a imensa vantagem da discrição. De uma forma ou de outra, perguntar-lhe a essa altura sobre o trabalho teria sido um tiro no pé - e entre um tiro no pé e um na cabeça, difícil escolher o pior. Há quem valorize mais a vida que o orgulho próprio, mas vergonha é uma senda que não se ultrapassa sem algum dano maior permanente. É preciso iniciar a conversa com leveza, sob o risco sempre iminente de tornar-se o diálogo e, por consequência, o encontro, um fardo - tão logo se perceba não haver ali afinidade imediata. Nesse caso, o convite para o café teria sido um equívoco.

Nesse momento, abre-se a porta do café e a atenção do homem foge de seus pensamentos consigo e vaga até o senhor que agora caminha em sua direção. Alto, magro e barbado de uma orelha a outra, vestido casualmente, com calça jeans e camisa de flanela xadrez sobre uma camiseta branca sem estampa. Ele, então, passa pela sua mesa e mais duas, e vai sentar-se junto a um grupo onde dois outros já estavam, em uma cena de pratos e copos quase vazios, a não ser pelo resíduo visível de suas refeições em consumo.

Em sua própria mesa, o garçon acabara de repousar o pires e a xícara. Ele apoia a visão na espuma esbranquiçada sobre o líquido marrom, do qual um faixo estreito de vapor sobe continuamente, dando nota provável em respeito a temperatura da bebida. Ele agradece olhando para o garçon e devolve o olhar à xícara, liberando novamente sua atenção para os seus pensamentos:

Podemos pular já de cara para temas dinâmicos e atuais como política ou economia? Eu li esses dias que o presidente seria indiciado por corrupção passiva. Se ele esta a par da notícia, certamente terá jà formado uma opinião qualquer a respeito – e se há algo que as pessoas dispensam gratuitamente e aparentemente ao menos com algum prazer de uma forma ou de outra declarado são suas opiniões sobre o caráter do outro. Se ele, todavia, a desconhece, talvez sinta-se constrangido pela ignorância presumida sobre os acontecimentos do próprio país. Por isso mesmo, respaldamos os jornais para a função das notícias. De outro modo, pareceria sempre nos querer esfregar na cara o conhecimento antecipado dos fatos um amigo que nos viesse contar dos acontecimentos políticos últimos. Aos jornalistas, em todo caso, colocamos à disposição uma reserva tal sob a justificativa de que são eles pagos exatamente para isso. Afinal, política é um terreno conflituoso que se deve evitar quando se desconhece as posições mais gerais do seu interlocutor e sempre tendo em vista o risco da ignorância política do seu eventual interlocutor emergir como tal. Afinal, quem é mesmo que gosta de ser chamado de ignorante ainda quando da adjetivação apenas insinuada?

Ele alcança um sachê de açúcar no centro da mesa, segura-o na ponta dos dedos indicador e polegar e bate delicadamente com o dedo médio da outra mão, assentando o açúcar na base do envelope e liberando alguns milímetros de espaço no topo, justamente onde ele posiciona os polegares e indicadores das duas mãos, rasgando o recipiente de papel e dando passagem ao granulado, que ele quase imediatamente despeja sobre o café. Repete o gesto mais duas vezes e com uma pequena espátula de plástico, a disposição na mesa, bem ao lado dos sachês, faz circular o café dentro da xícara durante mais ou menos 12 segundos.

Devo evitar iniciar a conversa chamando atenção para a minha pessoa, mas nada me impede de deixar espaço para que ele mesmo inicie a conversa. Mas assim sendo, eu pareceria, talvez, omisso e desinteressado. Fui eu mesmo quem fiz o convite, de todo modo, devo assumir a responsabilidade de dar o pontapé inicial, ao menos. Aliás, seria de bom tom oferecer-me para pagar a conta. Parece que essa é uma implicação instituída do convite, que invariavelmente pesa sobre o... falta-me agora a palavra disponível na língua para nomear aquele que convida. “Convidador” parece morfologicamente adequado, mas soa como uma arbitrariedade sem tamanho. “Convitante” não soa tão mal. Duvido que exista na língua portuguesa, mas talvez funcione em italiano... quem sabe? O caso é que eu preciso articular com algum bom senso um inicio de conversa que ofereça à ocasião alguma possibilidade de desdobramento. Tendo cumprido esta etapa, é provável que a conversa tome seu próprio rumo, como geralmente tomam as conversas. Não sendo o rumo deliberado de uma singularidade vinda de um ou de outro, mas o meio termo entre interesses e opiniões dos envolvidos. E se não interesses e opiniões reais, ao menos de um senso social qualquer que espreita inexplicavelmente nessas criaturas que circulam pela cidade, abordando e sendo abordadas umas pelas outras. Já ouvi chamarem a isso de “presença de espírito”, mas não estou certo de que a expressão valha exatamente para essa capacidade notável de dizer com frequência a coisa certa entre as várias coisas erradas possíveis. Afinal, a cabeça é um universo inteiro de coisas que na linguagem se coagulam, quando justamente abandonam a abstração das sensações, sentimentos e outras imagens disformes – que a própria linguagem encontra dificuldades em designar mesmo que imprecisamente – e se inauguram como possibilidades reais. Cumpre que dentre essas tantas coisas que constituem um tal universo, apenas algumas poucas são as “coisas certas” a dizer em ocasiões determinadas, do que se infere que a estatística deveria estar imensamente a favor das “coisas erradas”, ou ao menos das coisas outras que, não sendo as "erradas", definitivamente também não são as “certas”. Eis que essa capacidade individual se instila no corpo e na mente das criaturas sociais mais diversas, fazendo equilibrar a estatística e tornando possível, talvez mesmo provável, que as pessoas se relacionem umas com as outras. Por isso mesmo, preciso eu iniciar essa conversa de forma apropriada. Sob a mácula de um começo ruim, pode todo o diálogo se perder num abismo interminável de proposições suspeitas ou mesmo enunciações sem propósito. Quando perguntado sobre o simbolismo presente na imagem de um anúncio publicitário, um homem de pouca instrução formal, digamos um pescador, por exemplo, humilde que seja em seu reconhecimento de si num mundo de coisas tão diversas quanto o átomo e uma música de George Michael, ou quanto a teoria da relatividade geral e um espremedor de alho, concluirá de seu interlocutor que, se não é louco, ao menos falta-lhe alguma peça na engrenagem que condiciona atividades sociais em geral. Do mesmo modo que, quando perguntado sobre o preço da gasolina, o filósofo mais habilidoso se encontrará numa situação desgostosa, perturbado e indeciso entre o sentido imediatamente prático da pergunta, direcionada a ele como usuário em potencial de um automóvel e as implicações teóricas do problema do valor abstrato, se deslocando entre noções como as de valor de uso, valor de troca, etc. Talvez, por isso, seja tão comum ouvir-se sobre assuntos como o clima, que independentemente da situação social dos envolvidos num diálogo qualquer, afeta-os diretamente e podem eles dar, senão uma opinião cientificamente fundamentada, ao menos um relato qualquer sobre sua experiência direta com ele. O homem de casaco dirá, provavelmente, que faz frio, enquanto o de camiseta que o tempo é fresco ou que sente algum calor. Pode ser que os dois concordem e por um segundo se identifiquem por meio de uma sensação comum, tremendo debaixo das próprias roupas ou enxugando ininterruptamente o suor que desce da testa, mas o caso é que podem compreender do que se trata e quem sabe até destilar dali alguma empatia mesmo que a opinião do outro seja diametralmente diversa da sua. Certo é que se irá ali encontrar comunicação válida e não precisarão nenhum dos envolvidos especular sobre a sanidade do outro - ou da falta dela. No meu caso, no entanto, o assunto não se justifica. O convite feito ao amigo de longa data, mas com o qual, por circunstância qualquer, não me engajo em diálogo há tempo considerável, requer que haja mais trato no expediente das primeiras palavras.

Ocorre-me agora que eu poderia muito bem ter feito uma pesquisa na rede. Certamente encontraria ali uma lista infindável de assuntos possíveis e apropriados para uma ocasião como esta. É certo que essa ocasião em questão possui suas particularidades, quais sejam as dos dois indivíduos que estão prestes a se engajar em diálogo, cada qual com as singularidades medidas de sua experiência de vida e, além disso, os termos estabelecidos de sua relação um com o outro, que manual algum poderia antecipar. Mas é provável que ao menos um bem intencionado qualquer teórico já se tenha ocupado de analisar, a partir de estudos de caso oportunos e das generalizações consequentes necessárias, conversas e situações sociais análogas, nas diversas esferas da vida moderna e entre elementos ocupantes de posições particulares em situações análogas, considerando questões contextuais como hierarquia, idade, gênero, etc. Mas esse insight agora de pouco me serve. Uma investida metalinguística como essa, colocando em pauta minha própria dificuldade em iniciar a conversa, soaria a ele como uma menção intencional a distância que nos separa, quando o diálogo pede justamente - nos termos de sua própria natureza e propósito - uma conexão em vista. Aquele que inicia uma conversa tem em mente, em geral, uma inclinação a associação com o outro, ou ao menos o apelo a uma reciprocidade qualquer. Não fosse isso, contentar-se-ia com sua fala resultando em uma ofensa ou no estandarte de uma fantasia determinada com a qual se faça identificá-lo com o público a volta, mediante um julgamento imediato sobre as palavras ditas, mas sem a continuidade explicativa do diálogo, como quando um entrevistado dando suas palavras como resposta ao entrevistador, oferece-a ao público sem muito se preocupar com o que irá pensar dela o próprio entrevistador. Nos dois casos, não haveria conversa.

Levantou a xícara, trazendo-a lentamente até a boca. Já não havia vapor aparente. Virou tudo de uma golada só e repousou a xícara novamente na mesa. Catou um guardanapo entre os muitos que se enfileiravam no mesmo recipiente de madeira que mantinha os envelopes de açúcar e as pequenas espátulas de plástico juntos, e esfregou-o nos lábios e ao redor. Dobrou-o em duas partes e repetiu, colocando na mesa o guardanapo sujo após a ação concluída.

Olhou a volta e percebeu que a disposição das pessoas no recinto havia mudado. O grupo que antes ocupava a mesa atrás de duas outras em relação a sua não estava mais lá. No seu lugar, um casal de idosos conversava discretamente, enquanto gesticulavam os dois funcionalmente sobre as xícaras diante de si, cada qual investido em sua relação própria com a bebida que tinha a frente, e a conversa fluía entre a atenção dirigida ao outro e a atenção dirigida a bebida, sem que um ou outro apresentasse empecilho algum ao fenômeno que entre eles se desenrolava.

Retornou a si sem, no entanto, tirar os olhos do casal:

A intimidade torna tudo mais fácil. Relações que, sem ela, de outro modo, improváveis seriam, revestem-se de uma naturalidade análoga àquela dos vegetais que crescem no campo. A intimidade - seja lá o que for que a palavra signifique – não apenas predispõe ao diálogo todos os enredados por essa força incomensurável que paira entre os animais mais diversos, como parece reembaralhar todos os elementos inteligíveis de uma situação de diálogo, redimensionando em proporção vantajosa para ambas as partes as “coisas certas” com relação a todas as outras, isto é, um indivíduo que se encontre em diálogo com alguém de quem é íntimo terá maior probabilidade de que as coisas que diga sejam as “coisas certas”, quaisquer que sejam elas, na medida mesma da sua intimidade com aquele com quem dialoga. Imagino o questionamento feito sobre a sanidade ou a inteligência de seu esposo, quando após 35 anos de uma relação diária e estável, sentados à mesa de jantar, ele diz a ela: “Me bateu uma imensa vontade de lamber o pús da ferida de um cachorro!”. Ainda assim, por mais improvável e mesmo repugnante que sejam as palavras em questão, o choque e a surpresa terão dado lugar ao abandono dos pormenores semânticos em favor da familiaridade com aquela voz. Possível até mesmo, aliás, que possam ficar confortáveis em silêncio um em frente ao outro, desde que a intimidade entre eles seja assim colossal. Numa situação como essa, no entanto, um observador externo terá mesmo dificuldade em precisar se aquilo que testemunha é fruto de intimidade tamanha ou da completa indiferença. E desconfio que seja justamente a intimidade que desenvolvem os homens consigo mesmos que os permite ficar em silêncio com seus próprios pensamentos, porque neles a intimidade com as ideias e os sentimentos que circulam dentro de si não prescreve outra atitude senão a simples e manifesta indiferença para com estes. Provavelmente, a mesma que emerge dentro de nós diante de uma notícia já conhecida ou de uma piada velha. E quem de nós já não se encontrou moderadamente surpreso com os próprios pensamentos? Se me deixo correr a revelia do tema e do propósito, por exemplo, me encontro com toda sorte de pensamentos: Um urso usando chapéu, uma máquina-de-lavar segurando um sorvete de casquinha, um número quase infinito de palavras-imagens enfileiradas em frente a um balcão, aguardando seu momento de estréia... Há, inclusive, quem encontre na intimidade o segredo de todas as coisas. A perpétua lei dos Hindus, a consciência espiritual como intimidade plena com o mundo, a intimidade do ser com todas as coisas, vivas e não vivas, entoada numa só palavra que se repete através da linguagem dos homens, dos ventos, dos rios. É, afinal, a intimidade com certa música que nos projeta a um estado de divertimento irrefletido quando repetimos, palavra por palavra, a letra e a melodia de uma canção conhecida. Ou, na sua forma mais frequentemente descrita, o acolhimento incondicional da família. Muitas vezes me perguntei se o amor em todo canto idealizado entre mãe e filho não seria apenas uma variação particular dos modos de intimidade possível entre duas pessoas.

Mas isso tampouco me ajuda. Intimidade é coisa que com ele não tenho e que, de outro modo, requer uma situação favorável para brotar. Situação essa que eu provavelmente não terei se não dispuser de um começo de conversa ao menos adequado. Talvez se eu evocar um tema da história - tão distante no tempo quanto possível, que retroceda às primeiras dinastias egípcias, ou antes ainda, aos sumérios - eu possa suscitar nele essa familiaridade objetiva, ainda que inexplicável que nos faz reconhecermos homens entre homens mesmo quando diferimos nos mais diversos aspectos da vida. Quem sabe se a distância que nos separa não pareça assim tão relevante desde a perspectiva da história das civilizações? Como se pudéssemos encontrar num tema assim objetivado e de tal modo externo as nossas pequenas aventuras pessoais, o terreno comum onde possam encontrar-se esses dois universos distintos que povoam nossas cabeças, diante de uma possibilidade real de comunicação; como uma pedra de Roseta ou uma inscrição de Behistum dos nossos próprios idioletos... Ou do contrário, se eu mencionar os investimentos em curso para tornar possível a colonização de outros planetas? Se essa perspectiva futura que a cada dia se revela menos improvável, não venha desmentir também, quem sabe, a improbabilidade de nos encontrarmos nós dois, de repente, em meio a uma conversa natural ou mesmo agradável? Se, assim, o preço do combustível para foguetes não seria um tema oportuno como outro qualquer, pedindo ao filósofo dentro de nós a presença de espírito necessária para reconhecer o sentido de cada palavra, objetivo como um comando remotamente enviado. Se o nome Curiosity serviu àquela criatura de poucos antecedentes sobre a superfície de Marte, por que não nos poderíamos servir de um assunto tão genuinamente humano para iniciarmos uma conversa em que a curiosidade seja, afinal, um agente ou um reagente propulsor? Mas e, então, se ele se questionasse sobre a impessoalidade do tema e nossa conversação jamais conseguisse escapar ao âmbito dessas matérias gerais, conquanto universais que sejam, e ele não pudesse evitar a absoluta ausência de empatia, como aquela que experimentamos ao nos relacionarmos com um manual de instruções ou a um dispositivo didático qualquer? Ainda que Carlos e Maurício sejam criaturas absolutamente idiossincráticas, ao discorrerem sobre um tema como este, é possível que os dois reproduzam diálogo, senão idêntico, ao menos possivelmente similar ao diálogo entabulado por Roberto e Elaine sobre o mesmo tema. Aliás, raramente se vê o leitor de um manual qualquer preocupado com a autoria daquele documento. Que diferença faz saber quem é a pessoa que, do outro lado, nos diz que não se deve separar o sujeito do verbo por meio de vírgula, esteja já de antemão a sua autoridade instituída?

Ele emerge novamente de seus pensamentos e estende o pescoço vasculhando ao redor à procura do garçon. Levanta a mão assim que o avista e aponta para xícara a sua frente enquanto articula a expressão “mais um” com a boca, sem emitir sequer um som. O garçon acena positivamente enquanto se dirige a uma outra mesa. Ele o observa fixamente. Nesse momento sua cabeça está vazia, limita-se a registrar a experiência visual para a qual se direcionam seus olhos. O garçon se inclina diante da mesa onde duas mulheres na faixa de seus quarenta anos descrevem a ele os seus pedidos. O garçon toma nota e assim que retorna à cozinha, escapando ao seu campo intencional de visão, ele baixa novamente a cabeça e aquele mundo interior cheio de dúvidas novamente se abre:

E se eu perguntar simplesmente “como vai a vida” ?! Deixo ao seu critério o que é ou não de interesse dele expor a minha pessoa, evitando assim colocá-lo em uma situação de constrangimento.
Mas e se ele reconhece da questão formulada não o interesse genuíno nos aspectos gerais dessa situação, de todo modo indeterminada, a que damos o nome de vida, mas a proposição fática, simplesmente? Provável até que me responda com um daqueles artifícios genéricos de redundância verbal, como o já conhecido “vai indo”, e a imagem da vida que vai uma vez mais e contínua, ininterruptamente, lançar-me-á num desfiladeiro sem fim de questionamentos sobre essa vida que vai: Tem ela um nome? Uma cor favorita? Prefere jazz ou samba? É a vida dele, afinal. Um outro modo de descrevê-la seria, então, a coleção absoluta das suas experiências de vida, dos seus impulsos biológicos e da sua consciência imanente. Ainda que ele entenda a pergunta, nem saberia por onde começar. Eu mesmo deveria questionar-me o interesse diante do movimento de vida de pessoa tão ordinária.

“Com licença!” - interfere o garçon: “Aqui seu capuccino” - e, com todo cuidado, apoia pires e xícara na mesa e recolhe os já vazios. Ele permanece estático, seu olhar não faz menção em ir ao encontro do rapaz, que após 3 segundos de constrangimento se retira, sem ouvir sequer um “obrigado”.

Pessoa ordinária... Tantos questionamentos e não tenho a perspectiva de encontrar nada além de uma pessoa ordinária, isto é, uma pessoa quase como todas as outras, ainda que das suas particularidades inalienáveis. Não somos todos, afinal, pessoas ordinárias? Ou justifica-se mesmo essa autoridade inexplicável das mídias públicas, que nos projetam a imagem de um e outro, impondo a nós a ideia de que sejam estes privilegiados pessoas inigualavelmente especiais. Ora, quão ordinário seja ele, interessa é que eu o tenha convidado para um café. Tendo convidado a ele especificamente, e não esperando neste momento nenhuma outra pessoa que não seja o convidado, há que se reconhecer ao menos um desvio circunstancial na ordinariedade que obnubila a personalidade de figura alguma indeterminada.

Nesse instante, um barulho contínuo, agudo e grave ao mesmo tempo, ressoa e ganha volume; as janelas do estabelecimento tremem; a vibração se intensifica a cada centésimo de segundo e, então, a atenção de todos ali parece voltada para uma resolução iminente: As paredes começam, em seguida, a tremer também - e o barulho, a essa altura, é já ensurdecedor; pequenos pedaços do teto se desprendem e caem quase ao mesmo tempo em que se pode reconhecer o som de um objeto gigantesco de metal impactando na estrutura do edifício. O homem se levanta e vê, como que em câmera lenta, o bico de um jato atravessando o teto e vir varrendo tudo à sua frente. O pequeno aeroplano cruza toda a extensão da loja, deixando um canal de desolamento entre a mesa do homem e a cozinha do lugar, agora abertamente exposta ao público, com paredes tombadas e o balcão a frente delas tendo sido carregado pelo avião. Curiosamente, apesar de algumas janelas rachadas, a estrutura atrás dele permanece de pé e, com ela, a porta de entrada, por onde agora entra um homem baixo, calvo e casualmente vestido, com jaqueta jeans e calça preta, e uma camiseta na qual a estampa chama menos atenção que a marca de uma barriga saliente pressionando para frente o tecido. Ele reconhece o amigo e acena. O homem à espera, que já estava de pé, dá um passo a frente para receber o amigo e estende-lhe a mão, oferecendo-a em aperto.

Tudo bem?

Tudo bem. E contigo?

Tudo bem.

Cessam, então, o aperto de mão e, enquanto um se prepara para voltar a seu assento, o outro, recém-chegado, põe as duas mãos na cintura e olha para o cenário. Cerra os olhos, esforçando-se para reconhecer em detalhes a imagem que tem em vista. Suspira. Olha para o chão, de um lado ao outro, e levanta novamente a cabeça, retornando o olhar frontal que parece se escorar no interior da cozinha à sua frente. Retornando, em seguida, o olhar para o amigo:

Vamos a outro lugar? Eu pretendia comer algo, mas fiquei um pouco frustrado com o que vejo dessa cozinha.

Os dois saem pela porta. O segundo capuccino permanece na mesa... intocado. Ao redor daquelas tantas ideias sobre mutualidade e a natureza associativa do diálogo, a conta não paga parece apenas detalhe que não deveria valer nem a pena mencionar.


O jato era um Citation Mustang 510 da CESSNA. Não havia passageiros a bordo, mas é provável que o piloto tenha morrido.    

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