O rapaz entrou no
ônibus e se dirigiu diretamente a última fileira, avistando lugar
ao lado de um senhor de idade, de cabelos ralos e brancos e pele
escura, que conversava com uma mulher negra sentada num banco
imediatamente a frente. Pediu licença, conforme tomava em mãos a
mochila – volumosa o suficiente para incomodar caso viesse ali
presa as costas - e sentou-se, olhando para moça que mantinha o
rosto virado para trás, uma vez engajada que estava no diálogo com
o homem já descrito.
A mulher, então, olhou
nos olhos do rapaz com tal profundidade, que capturou seu olhar a
medida que entregava a ele também um sorriso. Ele sentiu-se como se
não pudesse mais desvia-lo; sentiu-se deselegante com a simples
ideia de ignorar a atenção que a moça dirigia ao seu rosto, mesmo
que naquele momento as palavras dela ainda tivessem como ouvinte o
senhor ao seu lado. Além do que, tratava-se de um sorriso
verdadeiramente cativante. A medida que as luzes do sol invadiam o
ônibus – por volta das 16 horas, numa tarde ensolarada –
alcançavam a superfície branca dos dentes engenhosamente
enfileirados na parte de dentro da boca da mulher, e eram
imediatamente refletidas aos olhos de qualquer um que se dispusesse a
dar testemunho ao sorriso da moça, cuja beleza tampouco era de se
ignorar.
O olhar dela, então,
voltou ao senhor a quem ela dizia: “Ele sabe de tudo que acontece e
tudo o que acontece, acontece porque ele quer”. Concordava o homem
com um aceno enfático de cabeça, e ela prosseguia: “Não há quem
esconda nada dele, porque ele tudo sabe e tudo vê”. E o homem mais
uma vez confirmava em acordo com a sentença da moça, repetindo
laconicamente o enredo: “Ele vê tudo!”. A mulher se alongava
naquele poema, que agora parecia requisitar dela uma expressão mais
intensa do corpo, que se mexia energicamente conforme ela subia
também o tom de voz: “Ele que tudo pode e que tudo faz, nada faz
que não seja para o bem, e nada quer que não seja o nosso bem!”.
O homem acompanhava como se suas linhas servissem agora de
contraponto as melodias que já se ensaiavam na voz dela: “Ele tudo
pode!”.
Nesse instante, o olhar
da mulher vagava um a um os passageiros do ônibus, encarava aqueles
que se atreviam a olhar pra ela, e se insinuava para aqueles que a
ignoravam. As mãos gesticulavam com o dedo em riste, dando gravidade
às sentenças que proferia e, já ali, se havia perdido a discreção
antes recolhida no diálogo com o senhor. Ela encontrava agora no
ônibus quase cheio uma platéia em potencial.
“A vida é ele quem
dá e é ele quem tira!” - Dizia ela, seguida pelo comentário
abafado do senhor atrás de si: “Ele tudo sabe!”.
Levantou-se, então, de
sobressalto e agregou àqueles versos uma melodia já então
formalizada. Seguiu pelo corredor do ônibus, cantando – e, agora,
mal se ouvia o senhor de idade, que fazia de tudo para que a sua
parte, apesar do baixo volume, mantivesse para com a voz da novissa
uma afinação coerente.
“Ele tudo saaaaabe,
ele tuuudo vêee! Ele tudo poooode e tuuuudo faaaaz......”
Terminou a performance
alogando a nota entoada com a última vogal e fazendo tremer a voz,
vibrando controladamente as cordas vocais. Sem voltar a sentar-se,
esperou pela próxima parada e desceu do ônibus.
O senhor permaneceu,
bem ao lado do jovem com a mochila no colo. Olharam-se por um breve
instante e um silêncio sem jeito tomou forma entre os dois, sentados
lado ao lado, enquanto lá fora, ecoava o ronco barulhento dos carros
e a paranóia ininterrupta da cidade.
Aos poucos, o impacto
deixado pela lírica envagelizadora da mulher se dissolvia nas
conversas amenas que nasciam da composição humana daquele ônibus,
com as pessoas dispostas lado a lado, de uma ponta a outra.
O ônibus parou
novamente e, dessa vez, entrou um homem carregando uma grande sacola,
constituida de numerosas sacolas menores, todas presas a um cabo que
se prendia, no topo, a um gancho. Apoiou a sacola pelo gancho no
corrimão preso ao teto do ônibus e disse: “Senhoras e senhores,
estou aqui para lhes oferecer essa excelente oferta. Cada saquinho
desse contém 10 balinhas de côco: macias e açucaradas, para
entreter a vossa viagem. Mas isso não é tudo” - e fez uma pausa,
certo de que o que tinha a dizer a seguir justificava o drama
acrescido - “São balinhas de jesus! Cada balinha dessa foi
abençoada por Deus-meu senhor-Jesus Cristo. E cada um de vocês que
comprar e chupar uma balinha dessas, será também abençoado por
ele! Isso tudo pela mísera quantia de 2 reais. Dois reais pelo doce
e também pela benção de nosso senhor Jesus Cristo.”
Tirou a sacola do
gancho e atravessou o corredor do ônibus, recolhendo o dinheiro e
entregando as balas às dezenas de passageiros que lhe estendiam as
mãos. Chegou até o fundo do ônibus, onde estavam o senhor e o
rapaz com a mochila no colo. Olhou desconfiado e fundo nos olhos do
rapaz com a mochila e, sem recolher o olhar, puxou um pacotinho de
balas e ofereceu ao senhor ao lado, que estendeu a mão e aceitou sem
haver tirado do bolso uma moedinha sequer. Virou-se lentamente, e
seguiu, descendo do carro no ponto seguinte.
O velho, lentamente,
abriu o saquinho e levou à boca uma bala. Sem dizer uma palavra,
virou-se para aquele ao seu lado e ofereceu do saquinho que tinha em
mãos. O outro fez que não e agradeceu. Guardou ele, então, o
saquinho no bolso e cruzou os braços. Seguiram os dois lado a lado,
ainda em silêncio. Ao rapaz restava a superfície áspera da mochila
a pesar em seu colo e os seus pecados todos, incautos, a pesarem na
consciência. Ao senhor, apenas o doce gosto do açúcar e do côco,
e o balanço do ônibus, ritmado...
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