sábado, 11 de outubro de 2014

Pietra e a representação da vontade

Caminhavam de mãos dadas mãe e filha pelo jardim, quando a menina perguntou: "Mãe, a lagarta gosta de queimar a gente?"

- Não filha, ela queima pra se defender - respondeu a mãe e ficou a criança em silêncio por alguns segundos, mas não porque estivesse satisfeita com a resposta que recebera, pelo contrário. Para ela seria impossível compreender a razão da incompatibilidade entre a defesa da qual era praticante a lagarta e um gosto possível pelo qual se tivesse, então, motivado.

- Ela não gosta, então? - perguntou esperando a confirmação da resposta que a mãe deixou para ela subentendida. A mãe, então, percebeu o problema que tinha em mãos: não tinha a filha suficiente intimidade com o tema para supor da primeira resposta uma separação evidente entre vontade e necessidade. Convenientemente, havia a menina lhe entregue a chance de ali concluir, fazendo-a aceitar que entre a ação e a vontade da lagarta não existia mais que uma relação de mera circunstância e, então, reduzindo a curiosidade da criança a autoridade de seu julgamento pela negação resoluta. Mas o instinto pedagógico materno  lhe sugeriu que seguisse adiante com o questionamento da menina.

- Não é que ela não goste, filha. Mas goste ou não, a lagarta queima porque precisa. Não é pra ela possível não fazê-lo.

Estava exposto o expediente: Havia a lagarta sido reduzida à condição de criatura acrásica e, sem poder para determinar a si mesma, não poderia ser tomada por um capricho de gosto, ou qualquer coisa parecida com isso, por conta da reação da qual era a fonte.

Mas para menina, a relação entre a vontade e a ação era inalienável, mecânica ou quase isso, não sendo possível à criança conceber qualquer representação do inseto que não fosse individualizada; talvez, um espelho da sua própria existência como sujeito. Pois, se o prazer e a vontade não a impeliam aos termos da sua defesa, deveria haver ali vontade ou prazer outros, quem sabe opostos até as consequências que se tinham em vista:  "Ela tenta não queimar a gente, mas não consegue parar, né? É tão rápido que quando ela vai ver, já queimou sem querer... - fazia, assim, a menina o retrato de uma lagarta desgovernada, inconsequente e vítima da sua determinação biológica, como a mãe a havia ensinado, mas não sem o drama de uma criatura que sente, que julga e que sofre; contornava ao redor da lagarta uma psicologia tão delicadamente humanizada, que seria possível imputar sobre ela um juízo moral qualquer. Mas para a menina era preciso, acima de tudo, defendê-la até às últimas consequências do estigma e do vilanismo que atribuímos aos nossos algozes assim como se fazia nos desenhos que sua imaginação frequentava. - Ela não faz por mal, né mãe? - completou com  ponderação amável até, como se justificasse a si mesma a impossibilidade de fazer carinho no inseto, como provavelmente alguma vez pretendeu um segundo antes que algum adulto a tivesse aconselhado a não fazer.

A mulher, em cujos conhecimentos se alimentava uma visão mais sóbria e relativa, tratou de explicar a filha que não seria razoável projetar-se no pequeno ser vivo. Que há dois universos distintos para as motivações humanas e as motivações das lagartas. Destituindo, novamente, a lagarta da humanidade que a filha insistia em retomar: "Não filha, ela não faz por mal porque ela nem sabe o que é mal. Ninguém ensinou pra ela o que é certo ou errado e mesmo se se tentasse ensinar, é muito pouco provável que ela conseguisse aprender."

Mas a criança, reproduzindo a partir de seu próprio entendimento o descaso da mãe para com o intelecto do bicho, perguntou uma última vez: ˜Você diz isso porque já tentou ensinar alguma lagarta e ela não aprendeu, né mãe? - seria preciso agora explicar porque a mesma suposição que a mãe fazia da ignorância da lagarta em respeito a noções tão humanas como bem e mal, não se aplicaria a mãe sobre os desígnios profundos do inseto, já que, certamente, grande conhecedora essa não era da psiquê da lagarta.

Mas a filosofia é uma disciplina que requer do seu interlocutor a maturidade de uma vida de experiências e conhecimento profundo da fisiologia do mundo, onde lagartas são lagartas e homens são homens; e ninguém pode culpar aquela mãe de não ter dado o melhor de si.

Criança não entende nada mesmo...

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