sexta-feira, 20 de junho de 2014

Pequenas crônicas sobre grandes cidades: O bosque de Frederico



Ao sair da estação, do confinamento relativo ao espaço aberto, sentindo o calor dispersar-se através da noite, reconhecerá, na placa que anuncia a rua sobre a qual agora caminha, referência ao nome da cidade na qual teve lugar o célebre tratado, que teria como consequência guerra bem mais fria que os corações que agora ali se movem: Warschauer Straße.

Dezenas, talvez centenas impelidos na direção que traça a rua, nos dois sentidos possíveis sobre a ponte e sobre os trilhos a ponte. A procura por resposta alguma nos corpos de desconhecidos fará daquele estranho um inimigo latente em cada olhar a ele dirigido. Estão todos armados, pensará ele; desde a perspectiva que o nomeia, o completo desconhecido será, então, também, persona non grata; aqueles corpos em marcha avançarão sobre qualquer um que venha em sentido oposto; e uma nova guerra se anuncia silenciosamente sob o texto da Cidade.

Mas compreendendo a fisiologia que postula aquela espécie irremediavelmente bélica, da frieza e indiferença dos olhares e afora, será possível reconhecer o calor sanguíneo que circula sob aqueles casacos, pois cada corpo sob a esfera imprecisa que o movimenta é também um universo inteiro. Correrá o risco, no entanto, de perder-se no abismo dos textos possíveis que se projetam atrás daqueles olhos se não se puder comprometer com os seus. Precisará reconhecer-se, assim, na posição que ora ocupa e sob o domínio do tempo que o acolhe se se quiser afirmar ou não se deixar perder simplesmente no movimento ininterrupto que a cidade impõe sobre ele.

Viro à direita e adentro na Revaler Straße e me pergunto se há mudança alguma na direção que traço ou se o caminho dado é mesmo aquele, como uma linha desenhada ao mapa, indicando ao aventureiro o trajeto que deve seguir. Mas meu questionamento é interrompido pela escuridão que paira nos cantos, sob a sombra de corpos menos densos, carregados de intenções suspeitas atrás de olhares que me enfrentam, ininterruptamente, como se esperassem de volta resposta, um aceno, um pedido. Sussurram em uma língua cuja sintaxe é o próprio contexto. Não reconheço as palavras, mas compreendo. Avanço, contudo, e com uma breve pausa na indiferença para dizer-lhes que me são indiferentes: Nein!

À esquerda, depois da Libauer Straße, sigo pela margem direita na Simon-Dach-Straße e um sinal luminoso e quente me oferece abrigo ao olhar através da escuridão: Primitiv. Nomeando não somente o lugar oportuno à saciedade que se pede em vista, mas o estado mesmo em que nascem aqueles desejos. Die Lust hat mich bezwungen, zu fahren in den Wald – são as palavras do poeta; e como a voz dele oculta na noite, outras diversas ecoam ao redor. O sussurro de antes, todavia, tem agora volume exacerbado, como a iluminação nada primitiva do estabelecimento homônimo - Wo durch der Vögel Zungen/ die Ganz Luft esrschallt. Em todo caso, demasiado arbítrio seria designar os desejos de outros passáros, quando mesmo os meus me são ocultos: Ihr strebet nicht nach Schätzen/ durch Abgunst Müh und Neid. - Devo, então, apenas atribuí-los ao cenário, como o autor que oferece ao seu público, não as razões profundas da alma, mas o figurino e o panorama. - Der Wald ist eu´r Ergötzen/ Die Federn euer Kleid.

As vozes que ainda cantam, contudo, tem coloração diversa a cada passo com o qual sigo adentro naquela rua, pois como os topos dos prédios à volta, minha canção segue desígnios distintos dos desígnios do telhado de Simon – e nem mesmo o espanhol de Bolívar soava como o daqueles que o impuseram a língua. Que língua é essa, então, que me inspira devaneios e me apresenta à cidade? Eu me pergunto, pois, qualquer que seja ela, a interrogação é dos tesouros que cumpre ao estranho, mas também ao nativo, guardar. Mas meu embaraço línguistico encontra repouso no nome que se estampa a frente da loja a qual me dirijo: Esperanto. Sigo até o refrigerador, pego a garrafa - cuja mensagem contida é simplesmente o desejo a saciar -, carrego até o caixa que me anuncia o preço: Ein und fünfsig! - Retiro do bolso as moedas e as organizo em tempo de fazer-me compreender pelo outro, que espera de mim tão somente uma operação matemática e, sobretudo, conformidade moral àquela bem estabelecida norma do capital. Tudo tão simples como deve soar uma língua universal. Pago, recolho a garrafa e devolvo uma palavra: “Obrigado!”, sem nem me dar conta de que meu agredecimento protocolar é incompreensível ao homem.

Na saída, há poucos metros dali, uma outra sombra se aproxima, mas desta vez consigo distinguir as palavras em meio ao sussurro: Willst du Weiß? Mas nem por isso o texto é mais claro. Na verdade, o texto é o mesmo: cada interprete encontra, isso sim, no estilo uma forma distinta de apresentá-lo. Mas alguns passos adiante, deixo para trás o perigo. A Simon-Dach-Straße segue - com retidão impecável se se ignora o espaço intersticial deixado pela Koperniku-Straße ao atravessá-la - mas já não é o mesmo obscuro habitat de antes. A selva das vozes noturnas dá, então, novamente lugar ao movimento dos corpos objetivados. E a lição de Copérnico me obriga a rever minhas considerações: Cada corpo revela em seu movimento não somente a fixação relativa de seu eixo, como também as forças que nele exercem os corpos outros ao seu redor; e porque o Sol é o maior dos astros, ao redor dele devem girar esses outros, quase insignificantes, nomeados aqui por “corpos”. Mas deixa-nos sem resposta, entrementes, uma outra pergunta não menos importante: Ao redor de quem gira o Sol? Desconhecida como a língua de um pássaro migrando sem bando é, ainda, essa força a mover tão prontamente o corpo que vos narra o trajeto.

“Minha terra tem palmeiras onde canta o sabiá” - Mas por que canta? E em que língua? É preciso, antes de tudo, resolver o indeterminado de uma terra que seja mesmo minha.


3 comentários:

  1. Bruno

    Não tem muito a ver (ou talvez tenha tudo a ver) mas a leitura deste texto sobre a tua experiência face a uma grande e estranha cidade fez-me lembrar um poema belíssimo do Pedro Homem do Melo chamado "Fria Claridade" . Lembro-me sempre deste poema quando tenho o privilégio de percorrer sozinho e sem destino bem definido uma cidade que me é estranha. E o teu texto fez-me lembrar essa sensação.

    "No meio da claridade,
    daquele tão triste dia,
    grande, grande era a cidade,
    e ninguém me conhecia!

    Então passaram por mim
    dois olhos lindos, depois,
    julguei sonhar, vendo enfim,
    dois olhos, como há só dois.

    Em todos os meus sentidos,
    tive presságios de Deus.
    e aqueles olhos tão lindos
    afastaram-se dos meus!

    Acordei, a claridade
    fez-se maior e mais fria.
    grande, grande era a cidade,
    e ninguém me conhecia!"


    ----------------------------

    Um forte abraço

    Rui B.

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  2. Rui,

    Você tem razão, é a mesma sensação que se quer projetar... mas ele é tão simples e tão direto que fiquei me sentindo em excesso com as palavras depois de ler o poema do Pedro que era Homem assim como o Fernando era Pessoa: não deve ser coincidência...

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