Ao sair da estação,
do confinamento relativo ao espaço aberto, sentindo o calor
dispersar-se através da noite, reconhecerá, na placa que anuncia a
rua sobre a qual agora caminha, referência ao nome da cidade na qual
teve lugar o célebre tratado, que teria como consequência guerra bem
mais fria que os corações que agora ali se movem: Warschauer
Straße.
Dezenas, talvez
centenas impelidos na direção que traça a rua, nos dois sentidos
possíveis sobre a ponte e sobre os trilhos a ponte. A procura por
resposta alguma nos corpos de desconhecidos fará daquele estranho um
inimigo latente em cada olhar a ele dirigido. Estão todos armados,
pensará ele; desde a perspectiva que o nomeia, o completo
desconhecido será, então, também, persona non grata;
aqueles corpos em marcha avançarão sobre qualquer um que venha em
sentido oposto; e uma nova guerra se anuncia silenciosamente sob o
texto da Cidade.
Mas compreendendo a
fisiologia que postula aquela espécie irremediavelmente bélica, da
frieza e indiferença dos olhares e afora, será possível reconhecer
o calor sanguíneo que circula sob aqueles casacos, pois cada corpo
sob a esfera imprecisa que o movimenta é também um universo
inteiro. Correrá o risco, no
entanto, de perder-se no abismo dos textos possíveis que se projetam
atrás daqueles olhos se não se puder comprometer com os seus. Precisará
reconhecer-se, assim, na posição que ora ocupa e sob o domínio do
tempo que o acolhe se se quiser afirmar ou não se deixar perder
simplesmente no movimento ininterrupto que a cidade impõe sobre ele.
Viro à direita e adentro na
Revaler Straße e me pergunto se há mudança alguma na direção que
traço ou se o caminho dado é mesmo aquele, como uma linha desenhada
ao mapa, indicando ao aventureiro o trajeto que deve seguir. Mas
meu questionamento é interrompido pela escuridão que paira nos
cantos, sob a sombra de corpos menos densos, carregados de intenções
suspeitas atrás de olhares que me enfrentam, ininterruptamente, como
se esperassem de volta resposta, um aceno, um pedido. Sussurram em
uma língua cuja sintaxe é o próprio contexto. Não reconheço as
palavras, mas compreendo. Avanço, contudo, e com uma breve pausa na
indiferença para dizer-lhes que me são indiferentes: Nein!
À esquerda, depois da
Libauer Straße, sigo pela margem direita na Simon-Dach-Straße e um
sinal luminoso e quente me oferece abrigo ao olhar através da
escuridão: Primitiv. Nomeando não somente o lugar oportuno à
saciedade que se pede em vista, mas o estado mesmo em que nascem
aqueles desejos. Die Lust hat mich bezwungen, zu fahren in den Wald –
são as palavras do poeta; e como a voz dele oculta na noite,
outras diversas ecoam ao redor. O sussurro de antes, todavia, tem
agora volume exacerbado, como a iluminação nada primitiva do
estabelecimento homônimo - Wo durch der Vögel Zungen/ die Ganz Luft
esrschallt. Em todo caso, demasiado arbítrio seria designar os
desejos de outros passáros, quando mesmo os meus me são
ocultos: Ihr strebet nicht nach Schätzen/ durch Abgunst Müh und
Neid. - Devo, então, apenas atribuí-los ao cenário, como o autor
que oferece ao seu público, não as razões profundas da alma, mas o
figurino e o panorama. - Der Wald
ist eu´r Ergötzen/ Die Federn euer Kleid.
As vozes que ainda
cantam, contudo, tem coloração diversa a cada passo com o qual sigo
adentro naquela rua, pois como os topos dos prédios à volta, minha
canção segue desígnios distintos dos desígnios do telhado de Simon – e nem
mesmo o espanhol de Bolívar soava como o daqueles que o
impuseram a língua. Que língua é essa,
então, que me inspira devaneios e me apresenta à cidade? Eu me
pergunto, pois, qualquer que seja ela, a interrogação é dos
tesouros que cumpre ao estranho, mas também ao nativo, guardar. Mas meu embaraço línguistico
encontra repouso no nome que se estampa a frente da loja a qual me
dirijo: Esperanto. Sigo até o refrigerador, pego a garrafa - cuja
mensagem contida é simplesmente o desejo a saciar -, carrego até o
caixa que me anuncia o preço: Ein und fünfsig! - Retiro do bolso as
moedas e as organizo em tempo de fazer-me compreender pelo outro, que
espera de mim tão somente uma operação matemática e, sobretudo,
conformidade moral àquela bem estabelecida norma do capital. Tudo
tão simples como deve soar uma língua universal. Pago, recolho
a garrafa e devolvo uma palavra: “Obrigado!”, sem nem me dar
conta de que meu agredecimento protocolar é incompreensível ao
homem.
Na saída, há poucos
metros dali, uma outra sombra se aproxima, mas desta vez consigo
distinguir as palavras em meio ao sussurro: Willst du Weiß? Mas nem
por isso o texto é mais claro. Na verdade, o texto é o mesmo: cada
interprete encontra, isso sim, no estilo uma forma distinta de
apresentá-lo. Mas alguns passos
adiante, deixo para trás o perigo. A Simon-Dach-Straße segue - com
retidão impecável se se ignora o espaço intersticial deixado pela
Koperniku-Straße ao atravessá-la - mas já não é o mesmo obscuro
habitat de antes. A selva das vozes noturnas dá, então, novamente
lugar ao movimento dos corpos objetivados. E a lição de Copérnico
me obriga a rever minhas considerações: Cada corpo revela em seu movimento
não somente a fixação relativa de seu eixo, como também as forças
que nele exercem os corpos outros ao seu redor; e porque o Sol é o
maior dos astros, ao redor dele devem girar esses outros,
quase insignificantes, nomeados aqui por “corpos”. Mas
deixa-nos sem resposta, entrementes, uma outra pergunta não menos importante: Ao redor
de quem gira o Sol? Desconhecida como a língua de um pássaro migrando sem bando é, ainda, essa força a mover tão prontamente o
corpo que vos narra o trajeto.
“Minha terra tem
palmeiras onde canta o sabiá” - Mas por que canta? E em que
língua? É preciso, antes de tudo, resolver o indeterminado de uma
terra que seja mesmo minha.
Bruno
ResponderExcluirNão tem muito a ver (ou talvez tenha tudo a ver) mas a leitura deste texto sobre a tua experiência face a uma grande e estranha cidade fez-me lembrar um poema belíssimo do Pedro Homem do Melo chamado "Fria Claridade" . Lembro-me sempre deste poema quando tenho o privilégio de percorrer sozinho e sem destino bem definido uma cidade que me é estranha. E o teu texto fez-me lembrar essa sensação.
"No meio da claridade,
daquele tão triste dia,
grande, grande era a cidade,
e ninguém me conhecia!
Então passaram por mim
dois olhos lindos, depois,
julguei sonhar, vendo enfim,
dois olhos, como há só dois.
Em todos os meus sentidos,
tive presságios de Deus.
e aqueles olhos tão lindos
afastaram-se dos meus!
Acordei, a claridade
fez-se maior e mais fria.
grande, grande era a cidade,
e ninguém me conhecia!"
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Um forte abraço
Rui B.
Rui,
ResponderExcluirVocê tem razão, é a mesma sensação que se quer projetar... mas ele é tão simples e tão direto que fiquei me sentindo em excesso com as palavras depois de ler o poema do Pedro que era Homem assim como o Fernando era Pessoa: não deve ser coincidência...
grande abraço!
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