sexta-feira, 20 de junho de 2014

O código e a cátedra


Numa academia qualquer na região central de Berlim, preparo-me para realizar um exercício que me exigirá concentração e força. Sorrateiramente, a música que se espalha pelo salão através das caixas de som do lugar penetra meus ouvidos. A princípio, reconheço o som do tipo eletrônico que torna tão célebres as noites dessa cidade. Algumas palavras se repetem como que entrecortadas pelo vazio cinético que faz da poesia declamada uma variação mecânica. Acostumado que estou a política semântica do gênero, deixo correrem as palavras como se o significado lhes fosse indiferente. Mas porque a distância me insufla impulsos nostálgicos, não deixo de reparar que o texto se desenvolve num código familiar:

“Essa boca linda, uma boca linda, essa boca linda, uma boca linda...”

Meu ceticismo, naturalmente, faz me recolher a uma curiosa coincidência fonética em que palavras - assim dispostas em uma língua desconhecida a mim (possivelmente advindas do continente africano, onde a simplicidade silábica outras vezes me fez restar em confusão similar) – assumem o aspecto refletido de minha língua nativa. Mas meu cepticismo é apenas um obstáculo a ser superado quando ponho em razão a alternância entre o pronome demonstrativo e o artigo indefinido, que pede a leitura da sentença como se um verbo de ligação fizesse da primeira expressão um sujeito enquanto a que segue se dispõe como predicado: Apontando para os lábios, possivelmente de seu interlocutor, uma voz feminina faz encômio da inexpressiva tautologia - essa boca linda é uma boca linda.

Mas seguindo conforme um ruído a me desconcentrar da atividade que tenho em espera, e porque, talvez, o filme que se projeta em minha mente a partir daquelas palavras seja demasiado enfadonho, espero com ânsia pelo fim da canção. Ela acaba e, olhando ao meu redor, pareço ser único afetado pelo produto daquele código que espreita inocente no uso grosseiro que dele se faz.

Reconheço-me eu mesmo do outro lado quando ponho em perspectiva o contexto e em relação à memória que tenho do gênero musical em questão em terras latinas, onde o código estrangeiro pede que releguemos a um segundo plano o conteúdo literal.

Não que eu milite contra, como também não a favor, dessa música amiúde mecânica e contemporânea como nenhuma outra. E há, também, quem clame a universalidade do estilo, transpondo barreiras como nunca antes a literatura. Mas é, de algum modo, assustador, reconhecer que a universalidade em referência reside no bruto solo da ineficiência do verbo.

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