quinta-feira, 17 de outubro de 2013

O homem e os homens


Somos.

Uma das frases mais lindas da língua portuguesa, não apenas por sua simetria, mas em particular pelo fato de resumir-se a uma palavra. Mencione-se, ainda, em favor desse juízo, que o sujeito da frase, sendo aquele que enuncia, faz-se imperativo da síntese em que é ele também o enunciado. Some a isso a razão de que, definindo-se o sujeito na unidade de uma sentença tão poderosa, quase se deixa escapar que é, na verdade, na pluralidade em que resta sua semântica. São sujeitos a enunciar e a serem enunciados - a enunciarem-se.

Aquele que ouve palavra-frase como essa deve estar atento e vigilante, porque não há ali apenas uma apresentação vulgar; quando é a voz plural em uníssono que toma o palanque tal qual o canto gregoriano de homens que se submetem a uma vontade maior, o ouvido que escuta silencioso, que ocupa lugar na platéia sozinho com seus pensamentos, deve abaixar suas armas, sabendo não existir espírito guerreiro algum capaz de vencer sozinho batalha que não é sua e em vista da qual este é apenas um obstáculo a ser superado.

O vigor dos corpos ressoa com sua marcha voluntariosa e a dureza do chão abaixo de seus pés não é senão o abrigo por excenlência dessa vontade. Mas é o som que emana de sua boca que prefigura a retidão do destino a sua frente: sua causa. Derrubará muros, destruirá castelos, atravessará oceanos ser for preciso, enquanto ao seu redor indivíduos imperturbáveis celebrarão sua ignorância e, com o rigor de suas limitações, revogarão a estes corpos o direito a serem também indivíduos, como o são estes que julgam, com os traseiros sentados e atados sobre o assento particular: um ponto preciso no espaço descrito pelos acentos e números de latitude e longitude e de suas contas bancárias.

Mas a palavra, ao contrário dos corpos que seguem o curso de sua marcha, não sucumbirá sob os escombros da guerra. É a palavra, outrossim, quem diz da guerra o horror ou sua beleza. Não há um só elogio às guerras que não se oriente na razão de que são homens que a tornam possíveis, jamais indivíduos. Mas apenas porque tais elogios são obras de indivíduos e não de homens, que soam e soarão impróprios, como a hipocrisia que se acomoda no fato de que são também os homens as vítimas do terror dessas guerras e não seus antagonistas autodeclarados.

O que diferencia, afinal, indivíduos de homens é o fato de que enquanto os primeiros são incapazes de reconhecer-se num outro, os homens são, simplesmente. Aceitam a alcunha com a mesma presteza que se dispõem e se empenham à coletividade. No entanto, é com essa mesma presteza e disponibilidade incauta que os homens se comportam como indivíduos ao lançarem-se contra e sobre a causa de outros homens. A palavra é uma arma inconsequente se os homens que a empunham não conhecem sua natureza e significado. Indivíduos dirão ser essa a fraqueza dos homens, estes inaptos ao conhecimento e desprovidos que são da incondicional razão, esse princípio diáfano e sem curvas. Dirão, ainda, que as causas são apenas forças-limite, ou as ânsias desmedidas de um grupo concentradas em currais estreitos e prontas a servirem-se do direito de outros como glutões a fartarem-se do alimento disponível apenas porque disponível se encontra.

Esquecem-se, todavia, que assim como há a razão antes da causa, há também e sempre causa antes de uma qualquer razão. A razão, com efeito, não é unidade alguma antes que homens tenham tornado a unidade possível clamando como um a condição de todos. Estes inconciliados senhores se devorarão amiúde e impiedosamente enquanto não puderem ser um e outro e ao mesmo tempo indivíduos e homens; que são distintos em suas condições, mas cumprem destino comum.


Desconsiderar o caminho do todo às partes tanto quanto o outro possível das partes ao todo é não estar apto a reconhecer a sublime revelação e inocente ignorância que pulsa nos corpos daqueles que se entrincheiram sob uma mesma palavra. Como há também beleza e cinismo nas palavras muitas que se alçam afora de discursos de um só.   

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