Somos.
Uma das frases mais
lindas da língua portuguesa, não apenas por sua simetria, mas em particular pelo fato de resumir-se
a uma palavra. Mencione-se, ainda, em favor desse juízo, que o
sujeito da frase, sendo aquele que enuncia, faz-se imperativo da
síntese em que é ele também o enunciado. Some a isso a razão de
que, definindo-se o sujeito na unidade de uma sentença tão
poderosa, quase se deixa escapar que é, na verdade, na pluralidade
em que resta sua semântica. São sujeitos a enunciar e a serem
enunciados - a enunciarem-se.
Aquele que ouve
palavra-frase como essa deve estar atento e vigilante, porque não há
ali apenas uma apresentação vulgar; quando é a voz plural em
uníssono que toma o palanque tal qual o canto gregoriano de homens
que se submetem a uma vontade maior, o ouvido que escuta silencioso,
que ocupa lugar na platéia sozinho com seus pensamentos, deve
abaixar suas armas, sabendo não existir espírito guerreiro algum
capaz de vencer sozinho batalha que não é sua e em vista da qual
este é apenas um obstáculo a ser superado.
O vigor dos corpos
ressoa com sua marcha voluntariosa e a dureza do chão abaixo de seus
pés não é senão o abrigo por excenlência dessa vontade. Mas é o
som que emana de sua boca que prefigura a retidão do destino a sua
frente: sua causa. Derrubará muros, destruirá castelos, atravessará
oceanos ser for preciso, enquanto ao seu redor indivíduos
imperturbáveis celebrarão sua ignorância e, com o rigor de suas
limitações, revogarão a estes corpos o direito a serem também
indivíduos, como o são estes que julgam, com os traseiros sentados
e atados sobre o assento particular: um ponto preciso no espaço
descrito pelos acentos e números de latitude e longitude e de suas
contas bancárias.
Mas a palavra, ao
contrário dos corpos que seguem o curso de sua marcha, não
sucumbirá sob os escombros da guerra. É a palavra, outrossim, quem
diz da guerra o horror ou sua beleza. Não há um só elogio às
guerras que não se oriente na razão de que são homens que a tornam
possíveis, jamais indivíduos. Mas apenas porque tais elogios são
obras de indivíduos e não de homens, que soam e soarão impróprios,
como a hipocrisia que se acomoda no fato de que são também os
homens as vítimas do terror dessas guerras e não seus antagonistas
autodeclarados.
O que diferencia,
afinal, indivíduos de homens é o fato de que enquanto os primeiros
são incapazes de reconhecer-se num outro, os homens são,
simplesmente. Aceitam a alcunha com a mesma presteza que se dispõem
e se empenham à coletividade. No entanto, é com essa mesma presteza
e disponibilidade incauta que os homens se comportam como indivíduos
ao lançarem-se contra e sobre a causa de outros homens. A palavra é
uma arma inconsequente se os homens que a empunham não conhecem sua
natureza e significado. Indivíduos dirão ser essa a fraqueza dos
homens, estes inaptos ao conhecimento e desprovidos que são da
incondicional razão, esse princípio diáfano e sem curvas. Dirão,
ainda, que as causas são apenas forças-limite, ou as ânsias
desmedidas de um grupo concentradas em currais estreitos e prontas a
servirem-se do direito de outros como glutões a fartarem-se do
alimento disponível apenas porque disponível se encontra.
Esquecem-se, todavia,
que assim como há a razão antes da causa, há também e sempre
causa antes de uma qualquer razão. A razão, com efeito, não é
unidade alguma antes que homens tenham tornado a unidade possível
clamando como um a condição de todos. Estes inconciliados senhores
se devorarão amiúde e impiedosamente enquanto não puderem ser um e
outro e ao mesmo tempo indivíduos e homens; que são distintos em
suas condições, mas cumprem destino comum.
Desconsiderar o caminho
do todo às partes tanto quanto o outro possível das partes ao todo
é não estar apto a reconhecer a sublime revelação e inocente
ignorância que pulsa nos corpos daqueles que se entrincheiram sob
uma mesma palavra. Como há também beleza e cinismo nas palavras
muitas que se alçam afora de discursos de um só.
Nenhum comentário:
Postar um comentário